"Viagem ao Oriente" - читать интересную книгу автора (Hesse Hermann)3VENHO pensando constantemente em minha decisão, desde que escrevi os capítulos anteriores, tentando solucionar minhas dificuldades. E não encontrei uma saída. Ainda me acho confuso. Mas estou determinado a não desistir, e no momento em que assim decidi, atravessou-me a mente uma agradável lembrança. Foi o mesmo que me ocorreu, quando iniciamos a expedição; àquela época, havíamo-nos dedicado a uma empresa aparentemente impossível, viajávamos nas trevas, sem conhecer nossos rumos e planos. E, apesar disso, tínhamos dentro de nós uma força roais possante que a realidade ou a probabilidade, que era a fé nos desígnios e na necessidade de nossa ação. Tive um estremecimento ao recordar este sentimento, e naquele abençoado momento tudo tornou-se novamente claro e possível. Decidi executar meus planos. Ainda que seja necessário recomeçar dez, cem vezes minha narrativa, chegando sempre ao mesmo Durante esse intervalo, fiz uma sincera tentativa de abordar meus objetivos de uma maneira prática e judiciosa. Procurei um amigo de juventude que mora nesta cidade e é diretor de um jornal. Seu nome é Lucas. Participou da Grande Guerra e publicou um livro de grande tiragem sobre o assunto. Lucas recebeu-me calorosamente. Como é natural, tinha prazer em rever um antigo companheiro de colégio. Tive duas longas conversas com ele. Tentei fazê-lo compreender minha situação. Deixei de lado as evasivas. Disse-lhe com toda a franqueza que participara daquela magnífica jornada da qual ele também já deveria ter ouvido falar, a Ele deixou clara sua opinião, a de um cético bem intencionado. Todos os que ouviram sua história, mas dela não haviam participado, talvez tivessem pensado o mesmo sobre a Confraria e a Viagem ao Oriente. Não tinha a intenção de convencer Lucas, mas prestei-lhe algumas informações esclarecedoras. Por exemplo, disse-lhe que nossa Confraria não era uma conseqíiência do após-guerra, mas que atravessara toda a história universal, é claro que, algumas vezes, de maneira discreta, porém formando uma linha contínua; que, mesmo certas fases, como a da Grande Guerra, não passaram de estágios da nossa história; e também que Zoroastro, Lao-Tsé, Plato, Xenofon, Pitágoras, Albertus Magnus, Don Quixote, Tristram Shandy, Novalis e Baudelaire eram co-fundadores e membros da Confraria. Ele sorriu exatamente da maneira que eu esperava. — Bem — disse eu — não vim aqui para informá-lo, mas para que você me transmita alguns conhecimentos. Tenho um enorme desejo de escrever, talvez não a história da Confraria (nem um exército de eruditos seria capaz de fazê-lo), mas contar, de maneira simplificada a história de nossa viagem. No entanto, tenho dificuldades até em iniciar o assunto. Não se trata de capacidade literária; esta eu creio possuir. E, além do mais, não alimento ambições a esse respeito. Não, acontece que a realidade que outrora experimentei, ao lado de meus companheiros, não mais existe, e embora as lembranças que dela guardo sejam as mais preciosas e vívidas que possuo, parecem-me tão distantes, compostas de tão diversas tramas, que é como se nascessem de outras estrelas, em outros milênios, ou fossem alucinações. — Eu o compreendo! — exclamou Lucas, agitado. Agora nossa conversa começava a interessá-lo. — Compreendo perfeitamente! É precisamente o que ocorre comigo em relação às minhas experiências de guerra. Sentia havê-las vivido clara e intensamente, suas imagens quase explodiam em minha mente; era como se houvesse em minha cabeça um rolo de filme, com milhares de metros de comprimento. Mas quando sentei-me em minha mesa de trabalho, as aldeias e bosques destruídos, os tremores de terra provocados pelo pesado bombardeio, a conglomeração de torpeza e magnitude, de medo e heroísmo, de estômagos e mentes embrulhados, do terror da morte e do humor sombrio, encontravam-se infinitamente remotos, como se fosse um sonho, sem qualquer relação com a realidade. Você sabe que, apesar de tudo, acabei por escrever minhas memórias de guerra, que são atualmente lidas e discutidas em toda parte. Mas, quer saber de uma coisa? Não creio que dez livros como este, dez vezes melhores e mais precisos que o meu, poderiam apresentar uma imagem real da guerra ao mais sério leitor, se ele próprio dela não houvesse participado. E não foram muitos. Mesmo aqueles que participaram, não a experimentaram por muito tempo. E se fossem muitos — tornariam a esquecer-se dela. O maior desejo de um homem ansioso por experimentar alguma coisa talvez seja dela se esquecer. Permaneceu por algum tempo em silêncio, parecendo perplexo e perdido em suas reflexões. Suas palavras haviam confirmado minha própria experiência e pensamentos. Após algum tempo perguntei-lhe cautelosamente: — Então, como foi possível escrever o livro? Ele meditou por alguns momentos; despertando do devaneio, disse: — Pude fazê-lo apenas porque era necessário. Ou escrevia o livro, ou via-me tomado pelo desespero; era o único meio de escapar da inanidade, do caos e do suicídio. Escrevi o livro sob essa terrível pressão, e isso me trouxe a cura esperada, simplesmente porque fora escrito, não importando que fosse bom ou mau. Era a única coisa que importava. Ao escrevê-lo, não pensei em outros leitores, mas exclusivamente em mim, quando muito em um ou outro companheiro de guerra mais chegado, e não pensava então nos sobreviventes, mas nos que tombaram mortos na guerra. Era como se delirasse ou estivesse louco, cercado de corpos mutilados; foi assim que produzi o livro. E concluiu nossa primeira conversa, dizendo subitamente: — Perdoe-me, nada mais posso dizer, nem uma só palavra. Não posso realmente. Adeus. E fez com que me retirasse. Em nosso segundo encontro achei-o novamente calmo e senhor de si, com o mesmo sorriso irônico nos lábios, embora tratasse meu problema com seriedade e demonstrasse compreendê-lo em toda a extensão. Deu-me algumas sugestões que, no entanto, pareceram-me de certo modo inúteis. Ao final de nossa segunda e última conversa, disse em tom quase casual: — Ouça, você está sempre retornando ao episódio do serviçal Leo. Isto não me agrada; creio que representa um obstáculo em seu caminho. Liberte-se, deixe Leo de lado; acho que isso se tornou para você uma idéia fixa. Estava a ponto de argumentar que não se podiam escrever livros sem idéias fixas, quando fui surpreendido por uma pergunta inesperada: — Ele se chamava realmente Leo? Minha fronte cobriu-se de suor. — Sim, — respondi — é claro que se chamava Leo. — E este era o seu nome de batismo? Gaguejei. — Não, seu nome de batismo era ... era ... não me recordo. Leo era seu sobrenome. Era assim que todos o chamavam. Enquanto eu ainda falava, Lucas tomou nas mãos um grosso livro em sua mesa e o folheou. Com impressionante rapidez encontrou e marcou com o dedo um ponto da página aberta. Era um catálogo, e seu dedo indicava o nome Leo. — Veja — riu ele — nós já temos um Leo. Andreas Leo, Seilergraben, 69A. Não se trata de um nome comum; talvez este homem saiba alguma coisa sobre o seu Leo. Procure-o. Quem sabe não lhe dirá o que você deseja saber. Eu não posso. Se me permite, não tenho muito tempo. Foi um grande prazer vê-lo. Caminhei vacilante, estupefato e agitado, até que fechou a porta atrás de mim. Ele estava certo, nada mais poderia aconselhar-me. Naquele mesmo dia fui a Seilergraben, em busca da casa, e perguntei sobre o Sr. Andreas Leo. Morava em um quarto no terceiro andar. Às vezes ficava em casa aos domingos e durante a noite; de dia, saía para trabalhar. Indaguei sobre sua ocupação. Fazia de tudo, disseram-me. Manicurava unhas, praticava quiropodia e massagens; fazia também curas com unguentos e ervas. Nas ocasiões difíceis, quando o trabalho era escasso, ocupava-se no treinamento e tratamento de cães. Retornei decidido a não mais procurar aquele homem, ou então de não lhe revelar minhas intenções. Não obstante, estava bastante curioso para encontrá-lo. Assim sendo, passei os dias seguintes observando sua casa durante minhas freqíientes caminhadas, e hoje lá retornarei, pois até agora não me foi possível encontrar Andreas Leo face a face. Tudo isso está me levando ao desespero, e ao mesmo tempo deixa-me feliz, ou melhor, agitado e ansioso. Sinto que minha vida e eu mesmo somos novamente importantes, e que vivi em uma grande lacuna. É provável que os clínicos e psicólogos, que atribuem todas as atitudes humanas aos desejos egoístas, estejam certos; não posso compreender como um homem que defende uma causa durante toda a vida, que abandona os prazeres e o bem-estar, que se sacrifica por algo determinado, aja do mesmo modo que um traficante de escravos ou negociante de materiais bélicos, e dissipe seus lucros numa vida de prazeres. Mas eu seria imediatamente derrotado numa discussão com tais psicólogos, pois tratam-se de pessoas que vencem sempre. Assim, tudo o mais que eu tenha considerado bom e justo, coisas pelas quais me sacrifiquei, não passaram de desejos egoístas. Na verdade, a cada dia que passa vejo mais claramente meu egoísmo presente em meus planos de escrever a história da Viagem ao Oriente. De início, pareceu-me que abraçava uma árdua tarefa em nome de uma nobre causa, mas aos poucos chego à conclusão que, através da descrição da jornada, viso o mesmo que o Sr. Lucas com seu livro sobre a guerra: melhor dizendo, desejo salvar minha vida, dando-lhe novamente sentido. Se pudesse encontrar o caminho! Se pudesse apenas dar o primeiro passo! — Deixe Leo de lado, liberte-se dele! — exortara-me Lucas. Eu só poderia livrar-me dele destruindo meus pensamentos e a revolta que sentia em meu estômago! Oh, Deus, ajude-me. |
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