"Um Estranho No Ninho" - читать интересную книгу автора (Kesey Ken)

PARTE I

Eles estão lá fora.

Três crioulos de uniformes brancos bem na minha frente, fazendo sexo no corredor e esfregando tudo antes que eu possa apanhá-los.

Eles estão fazendo limpeza quando eu saio do dormitório, todos os três, mal-humorados e odiando tudo, a hora do dia, o lugar aqui onde estão, as pessoas com quem têm de trabalhar. Quando sentem todo esse ódio, melhor que não me vejam. Vou esgueirando-me encostado na parede, silencioso como a poeira, com meus sapatos de lona, mas eles estão equipados com uma sensibilidade excepcional que detecta o meu medo e todos eles erguem o olhar, os três ao mesmo tempo, os olhos brilhando nos rostos negros como o faiscar duro de válvulas no interior de um velho rádio.

– Olhem só, aí está o chefe. O chefão, gente. O velho chefe Vassoura. Vai em frente, chefe Vassoura…

Enfiam um esfregão na minha mão e mostram o lugar que eles querem que eu limpe hoje, e eu vou. Um bate com violência na parte de trás das minhas pernas, com um cabo de vassoura, para que eu ande depressa.

– Puxa, olha só pra ele, não é um barato? De um tamanhão que dá pra enxergar por cima da minha cabeça e me explora como se fosse um bebê.

Eles riem e então os ouço a cochichar atrás de mim, as cabeças bem juntas. Zumbido de maquinaria negra, zumbindo ódio e morte e outros segredos de hospital. Não se dão ao trabalho de não falar em voz alta sobre seus ódios secretos quando estou por perto, porque pensam que sou surdo e mudo. Todo mundo pensa isso. Sou suficientemente vivo para enganá-los a esse ponto. Se o fato de eu ser meio índio alguma vez me ajudou nesta vida suja, ajudou-me a ser vivo, ajudou-me durante todos esses anos.

Estou esfregando perto da porta da enfermaria quando uma chave gira na porta do outro lado, e sei que é a Chefona pela maneira como os encaixes da fechadura cedem à penetração da chave, suave, rápida e familiar, tanto tempo vem ela lidando com fechaduras. Ela entra com uma lufada de frio, tranca a porta atrás de si e vejo seus dedos deslizarem pelo aço polido – a ponta de cada dedo da mesma cor que seus lábios. Um laranja esquisito. Como a ponta de um ferro de soldar. Uma cor tão quente ou tão fria que se ela nos toca com ela a gente não sabe dizer qual das duas.

Carrega sua bolsa de vime trançado, como as que a tribo Umpqua vende em quantidade à beira da estrada quente, em agosto, uma bolsa com o formato de uma caixa de ferramentas, com uma alça de cânhamo. Ela sempre usou esta bolsa em todos os anos em que estive aqui. O ponto é aberto e posso ver lá dentro; não há estojo de pó de arroz ou batom ou coisas de mulher, ela mantém aquela bolsa cheia de milhares de componentes que tenciona uti-lizar no cumprimento de seus deveres quotidianos – rodas e engrenagens, dentes de engate, polidos a ponto de mos-trarem um brilho violento, minúsculas pílulas que cinti-lam como porcelana, agulhas, fórceps, alicates de relojoei-ro, carretéis de fio de cobre…

Ela me cumprimenta com um aceno de cabeça quan-do passa. Largo o esfregão, recuo, encostando-me na pa-rede, sorrio e tento enganar os detectores dela o máximo possível, não deixando que veja meus olhos – ninguém pode saber muita coisa a seu respeito se estiver com os olhos fechados.

Na sombra onde estou, ouço seus saltos de borracha contra os azulejos e as tralhas na bolsa de vime se chocarem umas com as outras, fazendo barulho, com o choque do seu caminhar quando ela passa por mim no corredor. Ela pisa duro. Quando abro os olhos, está lá no fim do corredor, já quase virando para entrar pela porta de vidro da Sala das Enfermeiras, onde passará o dia sentada diante de sua escrivaninha, olhando para fora, pela janela, e to-mando apontamentos sobre o que está acontecendo à sua frente, na enfermaria onde passamos o dia, durante as próximas oito horas. O rosto dela assume um ar satisfeito e tranqüilo, com este pensamento.

– Então… ela avista aqueles crioulos. Eles ainda estão juntos, lá embaixo, cochichando entre si. Não a ouviram entrar na enfermaria. Agora, sentem que ela está olhando fixa e penetrantemente para eles, mas é tarde demais. Não deveriam ser estúpidos a ponto de se agruparem e ficarem a cochichar na hora em que ela deveria chegar. Os rostos deles agitam-se, separando-se, confusos. Ela se abaixa e vai avançando para onde eles estão encurralados num amontoado, na extremidade do corredor. Sabe o que estiveram dizendo, e posso ver que está furiosa, absolutamente descontrolada. Vai estraçalhar os bastardos negros, membro por membro, tão furiosa ela está. Vai inflando-se, incha até que suas costas estejam pulando para fora do uniforme branco e ela tenha estendido os braços longe o suficiente para envolver e apertar os três, cinco, seis vezes. Olha em volta com um giro da enorme cabeça. Ninguém acordado para ver, só o velho Vassoura Bromden, o índio mestiço, ali atrás, escondendo-se atrás do esfregão, e que não pode falar para pedir ajuda. Assim, ela realmente fica à vontade e o sorriso pintado se contorce, se estica, transformando-se num franco rosnado, e ela se enche de ar, ficando cada vez maior, grande como um trator, tão grande que posso sentir o cheiro da máquina lá dentro, como se sente o cheiro de um motor puxando uma carga pesada demais. Prendo a respiração e penso, meu Deus, desta vez eles vão fazê-lo! Desta vez eles deixarão o ódio crescer demais e passar da medida, e vão estraçalhar-se uns aos outros, reduzindo-se a pedaços antes que se dêem conta do que estão fazendo! Mas bem no momento em que ela começa a entortar aqueles braços musculosos em torno dos garotos negros e eles começam a golpeá-la na parte inferior do corpo com os cabos de vassoura, todos os pacientes começam a sair dos dormitórios para ver o que é aquela confusão, e ela tem de voltar a ser o que era, antes de ser apanhada sob a sua horrenda e verdadeira forma. Mas quando os pacientes acabam de esfregar os olhos de modo a perceberem qual a razão de todo o tumulto, tudo o que vêem é a enfermeira-chefe, sorridente, calma e fria como de hábito, dizendo aos três crioulos que seria melhor se eles não ficassem em grupo tagarelando quando é manhã de segunda-feira, e tanta coisa para ser feita na primeira manhã da semana…

– … quer dizer, segunda-feira de manhã, vocês sabem, rapazes…

– Sim, Dona Ratched…

– … nós temos uma quantidade considerável de compromissos esta manhã, assim, talvez, se não for uma coisa muito urgente, ficarem de pé aí conversando em grupinho…

– Sim, Dona Ratched…

Ela pára e cumprimenta com a cabeça alguns dos pacientes que se aproximaram e olham com os olhos vermelhos e inchados de sono. Ela cumprimenta um por um. Um gesto preciso, automático. O rosto dela é liso, calculado e feito com precisão, como o de uma boneca de alto preço, a pele como esmalte cor de carne, mistura de branco e creme, e olhos azul-bebê, nariz pequeno, pequenas narinas cor-de-rosa – tudo combinando muito bem, exceto a cor dos lábios e das unhas e o tamanho dos peitos. Seja como for, um erro foi cometido na hora da produção, colocando-se aqueles seios grandes de mulher, no que, não fosse por isso, teria sido um trabalho perfeito, e a gente pode ver o quanto isso a amargura.

Os homens ainda estão de pé e esperando para ver por que é que ela estava em cima dos crioulos; então ela se lembra de ter-me visto e diz:

– E uma vez que é segunda-feira, rapazes, por que não começamos bem a semana fazendo primeiro a barba do coitadinho do Sr. Bromden esta manhã, antes do corre-corre de depois do café à barbearia, para vermos se podemos evitar um pouco do… ah!… tumulto que ele costuma criar, não acham?

Antes que qualquer pessoa se pudesse virar para procurar-me, enfiei-me depressa no armário das vassouras, fechei a porta com um puxão e, no escuro, prendi a respiração. Fazer a barba antes de tomar o café é a pior hora. Quando a gente tem alguma coisa na barriga, fica-se mais forte e bem mais desperto, e os miseráveis que trabalham para a Liga não têm tanta possibilidade de enfiar um dos aparelhos deles dentro da gente, em vez de um barbeador elétrico. Mas quando barbeiam a gente antes do café, como ela me obriga a fazer certas manhãs – seis e meia da manhã, numa sala toda de paredes e bacias brancas, e longas lâmpadas de luz fluorescente no teto para assegurar que não haja nenhuma sombra, e rostos por toda parte encurralando a gente, gritando atrás dos espelhos – então, qual é a chance que se tem contra uma das máquinas deles?

Eu me escondo no armário das vassouras e escuto, meu coração batendo na escuridão, e tento impedir-me de ficar com medo, tento dirigir meus pensamentos para fora dali, para algum outro lugar – tento pensar no passado e recordar coisas sobre o vilarejo e o grande rio Columbia, pensar sobre, ah!, uma vez quando papai e eu estávamos caçando aves entre cedros, perto de The Dalles… Mas, como sempre acontece quando tento dirigir meus pensamentos para o passado e ali me esconder, o medo muito próximo se infiltra através da memória. Posso sentir aquele crioulo menor de todos lá fora aproximando-se pelo corredor acima, farejando em busca do meu medo. Abre as narinas como funis negros, a cabeça desproporcional virando-se para um lado e para o outro enquanto ele fareja, e suga o medo vindo de toda a ala. Agora ele me está farejando, posso ouvi-lo roncar. Não sabe onde estou escondido, mas está farejando e procurando. Tento ficar quieto…

(Papai me diz para ficar quieto, diz que o cachorro está pegando o rastro de uma ave em algum lugar bem perto. Tomamos um perdigueiro emprestado de um homem em The Dalles. Todos os cachorros do vilarejo são vira-latas imprestáveis, é o que papai diz, comedores de tripas de peixe e sem classe ne-nhu-ma; esse cachorro aqui, ele tem ichtinto! Eu nada digo, mas já vejo a ave lá em cima numa moita, encolhida num bolo de penas cinzentas. O cachorro correndo em círculos, embaixo, rastro demais por todo lado para que ele aponte com segurança. O pássaro a salvo, enquanto se mantiver quieto. Ele se está agüentando bastante bem, mas o cachorro continua farejando, em círculos, cada vez mais perto. Então o pássaro não resiste e se lança, soltando penas, para fora da moita para encontrar o tiro da arma de papai.)

O crioulo menor e um dos maiores me apanham antes que eu consiga dar 10 passos fora da armário das vassouras, e me arrastam de volta para a barbearia. Não luto nem faço qualquer ruído. Se você gritar, é pior para você. Eu seguro os gritos. Seguro até que eles cheguem às minhas têmporas. Não tenho certeza se é uma daquelas outras máquinas e não um barbeador até que chega às minhas têmporas; então não consigo segurar. Não é mais uma questão de força de vontade quando eles chegam às minhas têmporas. É um… botão que, apertado, diz "reide aéreo, reide aéreo", me liga e berro tão alto que é como se não houvesse nenhum som, todo mundo gritando comigo, mãos tapando os ouvidos por trás de uma parede de vidro, rostos se mexendo por toda a volta, em conversas, mas nenhum som saindo das bocas. O meu som absorve todos os outros. Eles ligam a máquina de neblina outra vez e está nevando frio e branco por cima de todo o meu corpo, como leite desnatado, tão espesso que eu poderia até mé esconder ali dentro se eles não me estivessem segurando. Não consigo ver além de um palmo a minha frente, através da neblina, e a única coisa que consigo ouvir acima do grito que estou dando é a Chefona a berrar e avançar pelo corredor acima, enquanto atira pacientes para fora do seu caminho com aquela bolsa de vime. Ouço-a aproximar-se, mas não consigo calar-me. Grito até que ela chegue ali. Eles me seguram enquanto ela enfia a bolsa de vime e tudo pela minha boca adentro e empurra para baixo com um cabo de vassoura.

(Um cão de caça late acuado lá fora na neblina, correndo assustado e perdido porque não pode ver. Não há rastros no chão, exceto os que ele está deixando, e ele fareja em todas as direções com o seu focinho frio, que parece uma borracha, e não consegue acompanhar nenhum outro rastro a não ser o de seu próprio medo, que o vai penetrando, queimando por dentro como vapor.) Vai queimar-me exatamente desse jeito, finalmente contando tudo isto, sobre o hospital, e ela, e os caras - e sobre McMurphy. Estive calado durante tanto tempo, que agora isso vai jorrar para fora de mim como águas de uma enchente e se você pensa que o cara que está contando isto está exagerando e delirando, meu Deus; você acha que isto é horrível demais para ter acontecido realmente, isto é pavoroso demais para ser verdade! Mas, por favor. Ainda é difícil para mim manter a mente clara quando penso nisso. Mas é a verdade, mesmo que não tenha acontecido.


* * *

Quando a neblina se dissipa, permitindo que eu veja novamente, estou sentado na enfermaria onde passamos o dia. Eles não me levaram para a Sala do Choque desta vez. Lembro-me de que me tiraram da barbearia e me trancaram no isolamento. Não me lembro se tomei café. Provavelmente não. Posso trazer de volta à memória algumas manhãs que passei trancado no isolamento em que os crioulos ficavam trazendo porções repetidas de tudo – supostamente eram para mim, mas, em vez disso, eles comiam – até que os três tomavam café, enquanto eu continuava deitado ali naquele colchão fedendo a mijo, observando-os comerem ovos com torradas. Posso sentir o cheiro da gordura e ouvi-los a mastigar as torradas. Em outras manhãs, eles me trazem mingau frio e me obrigam a comê-lo sem ao menos ter posto sal.

Desta manhã simplesmente não me lembro. Eles me fizeram engolir um bocado dessas coisas que chamam de pílulas, de forma que nada sei até que ouvi a porta da enfermaria se abrir. Aquele abrir daquela porta significa que são pelo menos oito horas, significa que se passou talvez uma hora e meia durante a qual estive apagado naquela sala de isolamento, quando os técnicos poderiam ter entrado e instalado qualquer coisa que a Chefona tivesse ordenado e eu não teria a mais remota idéia do que fosse.

Ouço barulho na porta da enfermaria, bem lá no fim do corredor, fora do meu raio de visão. Aquela porta começa a se abrir às oito horas e se abre e fecha um milhão de vezes por dia, crac, clic. Todas as manhãs nós nos sentamos enfileirados de cada lado da enfermaria onde passamos o dia, armando quebra-cabeças depois do café, esperando ouvir uma chave girar na fechadura, e aguardando para ver o que é que está entrando. Não há muito mais que fazer. Às vezes, na porta, surge um jovem residente que chegou cedo de forma a poder ver como é que somos. Antes da Medicação. A M. é como eles dizem. Outras vezes, é uma esposa em visita, de saltos altos, com a bolsa apertada sobre a barriga. Ou então é uma ninhada de professoras primárias levadas em excursão por aquele idiota das Relações-Públicas, que está sempre batendo palmas com as mãos úmidas e dizendo o quanto ele se sente feliz porque os hospitais para doentes mentais eliminaram toda a crueldade ultrapassada: "Que atmosfera festiva, não acham?" Ele se alvoroça, batendo palmas, em volta das professoras que se reúnem num grupo compacto por medida de segurança. "Oh, quando eu penso em antigamente, na imundície, na comida ruim, e mesmo, sim, na brutalidade, oh, só então percebo, senhoras, que já percorremos um longo caminho vitorioso na nossa campanha!" Quem quer que entre pela porta é geralmente alguém desapontador, mas há sempre uma oportunidade de que seja diferente e, quando uma chave gira na fechadura, todas as cabeças se levantam, como se estivessem presas por cordéis.

Hoje de manhã a lingüeta da fechadura estala de maneira estranha; não é um visitante habitual que está na porta. A voz de um Acompanhante de Homem grita irritada e impaciente:

– Admissão, venham assinar por ele – e os crioulos vão.

Admissão. Todo mundo pára de jogar cartas e monopólio e se vira na direção da porta da enfermaria. Normalmente, eu estaria lá fora varrendo o corredor e veria quem eles estão admitindo, mas nesta manhã, como já expliquei, a Chefona me fez engolir um milhão de coisas, e não posso levantar-me da cadeira. Quase sempre, sou o primeiro a ver a Admissão. Observo o recém-chegado a arrastar-se pela porta adentro e deslizar ao longo da parede, ficar de pé apavorado até que os crioulos venham assinar por ele e levá-lo para a sala do chuveiro, onde o despem e o deixam tremendo, com a porta aberta, enquanto os três correm, sorrindo com malícia, para baixo e para cima pelos corredores, procurando a vaselina. "Nós precisamos daquela vaselina", dirão à Chefona, "para o termômetro". Ela olha de um para o outro: "Tenho certeza de que precisam", e lhes entrega um pote contendo no mínimo um galão, "mas prestem atenção, rapazes, não fiquem todos juntos lá dentro". Então, vejo dois, talvez os três lá dentro, naquela sala do chuveiro, com a Admissão, mergulhando e untando aquele termômetro na gordura até que fique coberto por uma camada do tamanho do seu dedo, murmurando: "É, isso aí, mamãe, é isso aí", e então eles fecham a porta e abrem todos os chuveiros até que não se possa ouvir mais nada senão o barulho da água contra o ladrilho verde. Estou lá fora, na maioria dos dias, e vejo isso assim.

Mas esta manhã tenho de ficar sentado na cadeira e apenas os escuto trazê-lo para dentro. Entretanto, ainda que eu não possa vê-lo, sei que não é uma Admissão comum. Não o ouço deslizar apavorado ao longo da parede e, quando eles lhe falam a respeito do chuveiro, ele não se submete simplesmente com um sim esquálido, ele lhes responde direto, numa voz alta e impudente, que já está mais do que muitíssimo limpo, obrigado.

– Eles me puseram no chuveiro, hoje de manhã, no tribunal, e ontem à noite na cadeia. E eu juro que acredito que me teriam lavado as orelhas durante a corrida do táxi até aqui, se tivessem podido encontrar um jeito. Pô, cara, parece que toda vez que eles me despacham para algum lugar, eu tenho de ser bem esfregado e lavado antes, depois e durante a operação. Estou ficando de um tal jeito que só o barulho da água me faz começar a juntar as minhas coisas. E saia de perto de mim com esse termômetro, Sam, e me dê um minuto pra dar uma olhada no meu novo lar; nunca estive num Instituto de Psicologia antes.

Os pacientes olham uns para os outros com expressões intrigadas, depois outra vez para a porta de onde a voz dele ainda está vindo. Falando mais alto do que seria preciso, se os crioulos estivessem em qualquer lugar perto dele. Ele fala como se estivesse longe, muito acima deles, falando para baixo, como se estivesse velejando 50 jardas acima, gritando para aqueles lá embaixo, no chão. Fala como um homem grande. Eu o ouço a aproximar-se pelo corredor e parece grande pela maneira de andar, e ele não desliza mesmo, tem chapa de ferro nos saltos e os faz estalar no chão como ferraduras. Surge na porta e pára, enfia os polegares nos bolsos, as botas bem separadas, e fica ali, com os outros olhando para ele.

– Bom dia, amigos.

Há um morcego de papel da festa das bruxas pendurado num cordão acima de sua cabeça; ele levanta o braço e dá um piparote no morcego, que começa a girar.

– Dia de outono bem agradável – continua ele. Fala um pouco do jeito como papai costumava falar, voz alta, selvagem mesmo, mas não se parece com papai; papai era um índio puro de Columbia – um chefe – e duro e brilhante como uma coronha de arma. Esse cara é ruivo, com longas costeletas vermelhas, e um emaranhado de cachos saindo por baixo do boné, está precisando de dar um corte no cabelo há muito tempo, e é tão robusto quanto papai era alto, queixo, ombros e peito largos, um largo sorriso diabólico, muito branco, e é duro de uma maneira diferente do que papai era, mais ou menos do jeito que uma bola de beisebol é dura sob o couro gasto. Uma cicatriz lhe atravessa o nariz e uma das maçãs do rosto, no lugar em que alguém o acertou numa briga, e os pontos ainda estão no corte. Ele fica de pé ali, esperando, e, quando ninguém toma a iniciativa de lhe responder alguma coisa, começa a rir. Ninguém é capaz de dizer exatamente por que ele ri; não há nada de engraçado acontecendo. Mas não é da maneira como aquele Relações-Públicas ri, é um riso livre e alto que sai da sua larga boca e se espalha em ondas cada vez maiores até ir de encontro às paredes por toda a ala. Não como aquele riso do gordo Relações-Públicas. Este som é verdadeiro. Eu me dou conta de repente de que é a primeira gargalhada que ouço há anos.

Ele fica de pé, olhando para nós, balançando-se para trás nas botas, e ri e ri. Cruza os dedos sobre a barriga sem tirar os polegares dos bolsos. Vejo como suas mãos são grandes e grossas. Todo mundo na ala, pacientes, pessoal e o resto, está pasmo e abobalhado diante dele e da sua risada. Não há qualquer movimento para fazê-lo parar, nenhuma iniciativa para dizer alguma coisa. Ele então interrompe a risada, por algum tempo, e vem andando, entrando na enfermaria. Mesmo quando não está rindo, aquele ressoar do seu riso paira a sua volta, da mesma maneira com o som paira em torno de um grande sino que acabou de ser tocado – está em seus olhos, na maneira como sorri, na maneira como fala.

– Meu nome é McMurphy, companheiros, R. P. McMurphy, e sou um jogador idiota. – Ele pisca o olho e canta um pedacinho de uma canção: -… "e sempre eu ponho… meu dinheiro… na mesa" – e ri de novo.

Vai andando até um dos jogos de cartas, vira para cima as cartas de um dos Agudos *, com um dedo grosso e pesado, olha de soslaio para a mão e sacode a cabeça:

– Sim senhor, foi pra isso que vim para este estabelecimento, para trazer pra vocês, coleguinhas, alegria e divertimento na mesa de jogo. Não havia mais ninguém naquela Colônia Penal de Pendleton para tornar os meus dias interessantes, assim eu requeri uma transferência, entenderam? Precisava de algum sangue novo. Que horror! Olha só o jeito como esse cara segura as cartas, mostrando pra todo mundo no quarteirão! Vou esfolar vocês, crianças, como carneirinhos.

Cheswick junta e apanha as suas cartas. O homem ruivo estende a mão para que Cheswick a aperte.

– Oi, companheiro; que é que você está jogando? Pinocle *? Jesus, não é de admirar que não se importe em mostrar as suas cartas. Vocês não têm aqui um baralho comum? Bem, aqui vamos nós, eu trouxe comigo o meu baralho, só por via das dúvidas. Ele tem algo mais do que cartas figuradas… e vejam as fotografias, hum? Cada uma é diferente. Cinqüenta e duas posições.

Cheswick já tem os olhos esbugalhados, e o que ele vê naquelas cartas não ajuda o seu estado.

– Calma, agora, não lambuze tudo; temos muito tempo muitos jogos diante de nós. Gosto de usar este meu baralho aqui porque leva pelo menos uma semana para que os outros jogadores cheguem ao ponto em que são capazes mesmo de ver a seqüência…

Está vestido com as calças e a camisa da colônia penal, desbotadas pelo sol a ponto de terem ficado da cor de leite aguado. Seu rosto, pescoço e braços são da cor de couro curtido avermelhado, por ter trabalhado muito tempo nos campos. Na cabeça, um gorro de motociclista e, dobrado no braço, uma jaqueta de couro. Usa botas cinzentas e empoeiradas, suficientemente pesadas para partir um homem ao meio com um pontapé. Afasta-se de Cheswick, tira o gorro e, batendo com ele na coxa, levanta uma nuvem de poeira. Um dos crioulos anda a sua volta com o termômetro, mas ele é rápido demais para eles; escapole, metendo-se entre os Agudos, e começa a andar de um lado para outro, apertando mãos, antes que o crioulo possa fazer boa pontaria. A maneira como ele fala, sua piscadela, sua conversa espalhafatosa, sua fanfarronice, tudo me lembra um vendedor de automóveis, ou um leiloeiro – ou um daqueles homens com o rosto pintado de preto, que a gente vê em palcos de espetáculos de variedades de segunda classe, lá na frente das suas bandeiras tremulantes, de pé com uma camisa listrada com botões amarelados, atraindo os rostos para fora da serragem como se fosse um ímã.

– O que aconteceu, sabem, pra dizer a pura verdade, foi que me meti num par de brigas na colônia penal e a corte me declarou um psicopata. E acham que eu vou discutir com a corte? Pois sim, podem apostar até o seu último dólar como não vou. Se isso me tira daqueles malditos campos de ervilha, serei o que quer que os coraçõezinhos deles desejarem, seja psicopata, cachorro louco ou lobisomem, porque o que quero é nunca mais ver uma enxada até o dia da minha morte. Agora, eles me dizem que um psicopata é um cara que briga, demais e trepa demais, mas eles não estão totalmente certos, não acham? Quero dizer, quem foi que já ouviu falar de um homem que tivesse trepado demais? Alô, companheiro, como é que eles chamam você? Meu nome é McMurphy e aposto dois dólares aqui e agora que você não é capaz de me dizer quantos pontos você tem nessa mão de pinocle, que está segurando, não olhe. Dois dólares; que é que acha? Porra, que droga, Sam! Será que não pode esperar meio minuto antes de me cutucar com esse seu maldito termômetro?

O recém-chegado fica parado, observando tudo por um momento, para ter uma visão completa da enfermaria.

De um lado da sala, os pacientes mais jovens, conhecidos como Agudos – porque os médicos acham que eles ainda têm possibilidade de ser curados – praticam queda-de-braço e truques com cartas em que somam e subtraem e tiram fora tantas para encontrar-se uma determinada carta. Billy Bibbit tenta aprender a enrolar um cigarro feito a mão, e Martini anda de um lado para outro, procurando coisas debaixo das mesas e das cadeiras. Os Agudos se movimentam um bocado. Contam piadas uns para os outros e riem em silêncio, cobrindo o rosto com as mãos (ninguém ousa nunca se soltar e rir, o pessoal inteiro do hospital apareceria com blocos de anotações e um monte de perguntas) e escrevem cartas com minúsculos lápis amarelos mastigados.

Eles se espionam uns aos outros. Às vezes, um homem diz alguma coisa a respeito de si mesmo que não tinha intenção de deixar escapar, e um de seus companheiros, na mesa onde ele falou, boceja, levanta-se e vai sorrateiramente até o grande livro de registro diário que fica junto da Sala das Enfermeiras e anota ali a informação que ouviu – de interesse terapêutico para todos. Pelo menos, a Chefona afirma que é para isso que o diário serve, mas eu sei que ela espera apenas obter informações suficientes para mandar um cara qualquer ser recondicionado no Prédio Principal, vistoriado lá por dentro da cabeça para resolver o problema.

O cara que escreveu a informação no diário, esse ganha uma estrela ao lado do seu nome na lista, e vai dormir tarde no dia seguinte.

Do lado oposto da sala, defronte aos Agudos, ficam os refugos da Liga, os Crônicos. Estes não estão no hospital para serem tratados, mas apenas para que sejam impedidos de andar por aí pelas ruas fazendo má propaganda do hospital. Os Crônicos estão internados para sempre, o pessoal do hospital reconhece. Os Crônicos estão divididos em Caminhantes, como eu, que ainda andam por aí, se forem mantidos alimentados, Circulantes e Vegetais. Na verdade, os Crônicos – ou a maioria de nós – não passam de máquinas com defeitos internos que não podem ser reparados, defeitos provocados por tantos anos que o cara passou dando cabeçadas, de tal forma que, quando o hospital o encontrou, ele estava sangrando apaticamente num terreno baldio qualquer.

Mas existem alguns Crônicos em quem o pessoal cometeu um par de erros há anos; alguns de nós que éramos Agudos, quando entramos, e fomos modificados. Ellis é um Crônico que quando entrou era um Agudo e foi definitivamente danificado quando eles carregaram demais em cima dele, naquela pútrida sala assassina de cérebros que os crioulos chamam de "Loja de Choque". Agora, ele está pregado na parede no mesmo estado em que eles o tiraram da mesa pela última vez, na mesma posição, os braços abertos, as palmas das mãos encolhidas, com o mesmo terror no rosto. Fica pregado na parede assim, como um troféu empalhado. Eles arrancam os pregos quando está na hora de comer ou na hora de levá-lo para a cama, ou ainda quando querem que ele saia dali, para que eu possa limpar a poça que se forme no local. Anteriormente, ele permaneceu tanto tempo num mesmo ponto, que a urina apodreceu o assoalho e as próprias vigas, e ele vivia caindo pelo buraco ali aberto para o andar inferior, dando todos os tipos de dores de cabeça lá embaixo, quando faziam a contagem de verificação.

Ruckly é um outro Crônico que entrou há poucos anos como um Agudo, mas com ele carregaram demais de uma maneira diferente: cometeram um erro numa das instalações de cabeça existentes lá. Ele estava sendo uma inconveniência geral por toda parte, chutando os crioulos, mordendo as pernas das estudantes de enfermagem, de forma que o levaram embora para ser consertado. Eles o amarraram àquela mesa e a última coisa que todo mundo viu dele foi pouco antes de eles fecharem a porta; ele piscou, no minuto antes de a porta se fechar, e disse aos crioulos, quando se iam afastando: "Vocês pagarão por isso, seus malditos moleques de piche."

E eles o trouxeram de volta para a enfermaria, duas semanas depois, careca e a frente do seu rosto uma ferida só, vermelha, melada, e tinha dois pininhos do tamanho de botões, costurados um em cima de cada olho. Pelos olhos, a gente pode ver como eles o fundiram por completo lá dentro; os olhos dele são esfumaçados, cinzentos e vazios por dentro como fusíveis queimados. Agora, ele não faz outra coisa o dia inteiro senão segurar uma velha fotografia diante daquele rosto destruído, revirando-a sem parar em seus dedos frios; a fotografia com todo aquele manusear ficou gasta e cinzenta, dos dois lados, como os seus olhos, de forma que não se pode mais dizer o que é que era.

Agora, o pessoal, bem, eles consideram Ruckly um de seus fracassos, mas não tenho certeza de como ele poderia estar melhor, se a instalação tivesse sido perfeita. As instalações que eles fazem, atualmente, em geral são bem sucedidas. Os técnicos adquiriram mais habilidade e experiência. Nada mais de buracos de botões na testa, nenhum corte mesmo – eles vão através das cavidades dos olhos. Às vezes, um cara vai até lá para fazer tratamento, deixa a enfermaria furioso e louco e xingando o mundo inteiro, e volta poucas semanas depois, com os olhos roxos, cobertos de hematomas, como se tivesse tomado parte numa briga de socos, e é a coisa mais doce, mais boazinha, mais bem comportada que jamais se viu. Ele talvez até vá para casa dentro de um mês ou dois, com um chapéu bem puxado sobre o rosto de um sonâmbulo, vagueando por um sonho simples e feliz. Um sucesso, eles dizem, mas digo que ele é apenas mais um robô para a Liga e estaria melhor se fosse um fracasso como Ruckly, sentado ali, revirando e babando em cima da fotografia. Ele nunca faz nada de muito diferente. O crioulo Pigmeu vez por outra consegue arrancar-lhe uma reação violenta quando, inclinando-se bem perto dele, pergunta: "Ei, Ruckly, que é que você imagina que a sua mulherzinha esteja fazendo na cidade hoje à noite?" A cabeça de Ruckly se levanta. A memória sussurra em algum lugar naquele aparelho danificado. Ele fica vermelho e as veias saltam num lado da testa. Isto o incha de tal maneira que ele mal pode emitir um som estrangulado na garganta. Uma baba começa a escorrer-lhe pelo canto da boca, de tal maneira ele força o maxilar para dizer alguma coisa. Quando finalmente chega ao ponto em que pode dizer alguma coisa, é um ruído baixo e estrangulado que se ouve, capaz de arrepiar a pele da gente: "Fffffffoda a mulher! Ffffffoda a mulher!", e desmaia direto por causa do esforço.

Ellis e Ruckly são os Crônicos mais jovens. O Coronel Matterson é o mais velho, um velho soldado petrificado de cavalaria da Primeira Guerra Mundial, que é dado a levantar, com a bengala, as saias das enfermeiras que passam, ou a ensinar uma espécie de história saída do texto na sua mão esquerda para qualquer um que queira ouvir. É o mais velho da enfermaria, mas não o que está aqui há mais tempo – a esposa dele o internou há apenas alguns anos, quando chegou ao ponto em que não tinha mais condições de cuidar dele.

Sou eu o que está aqui na enfermaria há mais tempo, desde a Segunda Guerra Mundial. Estou aqui há mais tempo que qualquer outra pessoa. Mais tempo que qualquer dos outros pacientes. A Chefona está aqui há mais tempo que eu.

Os Crônicos e os Agudos geralmente não se misturam. Cada grupo fica do seu lado na enfermaria, da maneira como os crioulos querem. Os crioulos dizem que é mais arrumado assim e dão a entender a todo mundo que é assim que querem que continue. Eles nos levam para lá depois do café e observam a separação dos grupos e movem a cabeça com satisfação. "É isso mesmo, senhores, é assim mesmo. Agora mantenham desse jeito."

Na realidade não há muita necessidade de eles dizerem coisa alguma, porque, a não ser por mim, os Crônicos não se movimentam para onde quer que seja, e os Agudos dizem que prefefem mesmo ficar lá no lado deles, alegando que o lado dos Crônicos fede mais que fralda suja. Mas eu sei que não é tanto o fedor que os mantém longe do lado dos Crônicos, mas o fato de que não gostam de ser lembrados de que ali está o que pode vir a acontecer com eles qualquer dia. A Chefona percebe esse medo e sabe como explorá-lo; ela deixará claro para um Agudo, sempre que ele se emburre: "Vocês, meninos, sejam bons meninos e cooperem com a política do pessoal que tem em mente a sua cura, ou vocês acabarão ali, naquele lado."

(Todo mundo na enfermaria terá orgulho da maneira como os pacientes cooperam. Nós recebemos uma plaqueta de metal presa num pedaço de bordo que vem gravado assim: PARABÉNS POR SE DAREM BEM COM O MENOR NÚMERO DE FUNCIONÁRIOS DE QUALQUER DAS ENFERMARIAS DO HOSPITAL. É um prêmio pela cooperação. Fica pendurada bem em cima do livro de registro, exatamente no meio, entre os Crônicos e os Agudos.)

Essa nova Admissão, o ruivo, McMurphy, sabe muito bem que não é um Crônico. Depois de ter examinado a enfermaria por um minuto, ele vê que está destinado ao lado dos Agudos e vai direto para lá, sorrindo e apertando as mãos de todo mundo que encontra. De início, vejo que ele está fazendo todo mundo do lado de lá sentir-se pouco à vontade, com todas as suas brincadeiras e palhaçadas e com a maneira atrevida com que grita com o crioulo, que ainda está atrás dele com um termômetro, e especialmente com aquela sua grande risada aberta. Os indicadores tremem no painel de controles com o seu ressoar. Os Agudos ficam com um ar assustado e inquieto quando ele ri, assim como ficam as crianças numa sala de aula quando algum garoto está fazendo bagunça demais, com a professora fora da sala. Elas estão todas com medo de que a professora possa voltar de repente, e meter na cabeça que todos eles têm de ficar de castigo depois. Estão todos se remexendo, agitando-se, em reação aos indicadores no painel de controle; vejo que McMurphy percebe que está fazendo com que se sintam inquietos, mas ele não deixa que isso o detenha.

– Porra, mas que coleção de caras mais tristes. Vocês aí não me parecem assim tão loucos. – Ele tenta fazer com que eles se descontraiam, assim como a gente vê um leiloeiro que diz piadas para descontrair o público antes de começar o pregão. – Qual de vocês alega ser o mais louco? Qual é o maior lunático? Quem dirige estes jogos de cartas? É o meu primeiro dia, e o que gosto de fazer é causar uma boa impressão logo de início no homem certo, se ele me puder provar que é o homem certo. Quem é o ganso machão de doidos?

Está dizendo isso diretamente para Billy Bibbit. Ele se inclina e olha fixo com tanta dureza para Billy que este se sente compelido a gaguejar que ele ainda não é o gan-gan-gan-so macho dos doidos, embora seja o próximo na li-li-linha de sucessão para o posto.

McMurphy estende a manopla para baixo na frente de Billy, e Billy não pode fazer outra coisa senão apertá-la.

– Bem, companheiro – diz ele a Billy -, estou realmente satisfeito que você seja o próximo na li-linha para o posto, mas uma vez que estou pensando em assumir o comando deste espetáculo inteiro eu mesmo, de ponta a ponta, talvez seja melhor eu falar com o homem de cima. – Ele olha em volta, até onde alguns Agudos pararam de jogar cartas, cobre uma das mãos com a outra e estala os dedos todos de uma vez. – Estou querendo ser, sabe, companheiro, uma espécie de magnata da jogatina nesta enfermaria, incrementar um vinte-e-um violento. Assim, é melhor você me levar ao seu chefe e nós vamos resolver quem vai ser o machão aqui dentro.

Ninguém sabe ao certo se este homem, forte como um touro, com a cicatriz e o sorriso selvagem, está fazendo uma simples encenação ou se é suficientemente louco para estar de acordo com a maneira como fala, ou ambas as coisas, mas eles estão começando a divertir-se com as tiradas dele. Observam, enquanto ele fecha aquela grande mão vermelha no braço magro de Billy, esperando para ver a resposta de Billy. Billy percebe que agora cabe a ele quebrar o silêncio, assim olha em volta e escolhe um dos jogadores de pinocle:

– Harding – diz Billy. – Acho que seria você. Você é o presidente do Conselho de Pa-Pa-Pacientes. Es-Es-este homem quer falar com você.

Agora os Agudos estão sorrindo, já não mais tão inquietos, satisfeitos porque algo fora da rotina está acontecendo. Todos riem de Harding, perguntam-lhe se é o machão dos maníacos. Ele põe as suas cartas na mesa.

Harding é um homem simplório e nervoso, com um rosto que às vezes faz a gente pensar que já o viu no cinema, um rosto bonito demais para ser apenas um qualquer na rua. Ele tem ombros largos e magros e os curva sobre o peito quando está tentando esconder-se dentro de si mesmo. Tem mãos tão compridas, brancas e elegantes que acho que elas se esculpiram uma à outra de um bloco de sabão, e às vezes elas se soltam e flutuam no ar na frente dele, livres como dois passarinhos brancos, até que ele perceba e as prenda entre os joelhos; desagrada-lhe o fato de ter mãos bonitas.

Ele é o presidente do Conselho de Pacientes, porque tem um papel que diz que se formou numa universidade. O papel está numa moldura e fica na sua mesinha de cabeceira, ao lado de um retrato de uma mulher de maiô que também parece que a gente já viu no cinema – tem uns seios muito grandes e está segurando a parte de cima do maiô sobre eles com os dedos, e olhando de esguelha para a câmara. A gente pode ver Harding sentado numa toalha atrás dela, parecendo muito magricela nos seus calções, como se ele estivesse esperando por algum sujeito grandalhão para chutar areia em cima dele. Harding se gaba muito de ter uma mulher daquelas como esposa, diz que ela é a mulher mais sexy do mundo e que ela não se cansa de tê-lo todas as noites.

Quando Billy o aponta, Harding se recosta na cadeira e assume um ar de importância, fala para cima, para o teto, sem olhar nem para Billy nem para McMurphy.

– Por acaso este… cavalheiro tem entrevista marcada, Sr. Bibbit?

– O senhor tem entrevista marcada, Sr. McM-m-murphy? O Sr. Harding é um homem ocupado, ninguém o vê sem ter hora ma-marcada.

– Esse homem ocupado, o Sr. Harding, ele é o machão dos malucos? – Ele olha para Billy com um olho e Billy concorda abanando a cabeça para cima e para baixo bem depressa; Billy está deliciado com toda a atenção que está recebendo.

– Então diga ao machão dos doidos Harding que R. P. McMurphy está esperando para vê-lo, porque este hospital não é bastante grande para nós dois. Estou acostumado a ser o chefe. Fui um machão de conversador de trouxas pra tudo que foi tramóia entre os madeireiros, no noroeste, e machão dos jogadores durante a guerra na Coréia e fui até o maior mondadeiro de ervilhas naquela plantação em Pendleton – assim, creio que se estou condenado a ser um lunático, então estou destinado a ser um que seja mesmo bom. Diga a esse Harding que ou ele me enfrenta de homem para homem ou ele é um garganta esculhambada e é melhor que esteja fora da cidade antes do pôr do sol.

Harding ainda se recosta mais para trás, enfia os polegares nas lapelas.

– Bibbit, diga a este jovem carreirista, McMurphy, que eu o encontrarei no vestíbulo principal ao meio-dia em ponto e que resolveremos este caso de uma vez por todas, de libidos inflamadas.

Harding tenta falar com a voz arrastada como McMurphy; soa engraçado, com sua voz fina e ansiosa:

– Também poderia avisá-lo, só para ser justo, que sou o maior maníaco lunático machão doido desta enfermaria há quase dois anos seguidos, e que sou mais maluco do que qualquer homem vivo.

– Sr. Bibbit, o senhor poderia avisar a este Sr. Harding que sou tão maluco que admito ter votado no Eisenhower.

– Bibbit! Diga ao Sr. McMurphy que sou tão maluco que votei no Eisenhower duas vezes!

– E então diga logo ao Sr. Harding – ele apóia as duas mãos sobre a mesa e se inclina, a voz ficando mais baixa – que sou tão maluco que planejo votar no Eisenhower outra vez, agora em novembro.

– Eu tiro o chapéu – Harding diz, inclina a cabeça e depois aperta a mão de McMurphy. – Não há dúvida na minha mente de que McMurphy tenha vencido, mas o que não tenho bem certeza é do quê.

Todos os outros Agudos deixam de lado o que estavam fazendo e vêm aproximando-se para ver de que espécie nova é este sujeito. Ninguém como ele jamais esteve na enfermaria antes. Estão perguntando-lhe de onde ele vem e o que é que ele faz, de uma maneira como nunca os vi fazer antes. Ele diz que é um homem com uma missão. Diz que era apenas um vagabundo errante e um madeireiro, antes que o Exército o apanhasse e lhe ensinasse qual era sua vocação natural, exatamente como eles ensinam a arte da evasão, a alguns homens a arte da mistificação e a alguns outros, como haviam bancado os dados, diz ele, eles ensinaram a jogar pôquer. Desde então ele se acomodou e se dedicou ao jogo em todos os níveis. Apenas jogar pôquer e continuar solteiro e viver onde e como quisesse, se as pessoas o deixassem.

– Mas – diz ele – vocês sabem como a sociedade persegue um homem dedicado. Desde que encontrei minha vocação, já estive preso em tantas cadeias de cidades pequenas que poderia escrever um livro. Dizem que sou um desordeiro incorrigível. Como se eu brigasse um bocado. Merda. Eles não se importavam tanto quando eu era um madeireiro estúpido e me metia numa briga; isto é descupável, eles dizem, é um sujeito trabalhador que dá duro, botando pra fora o vapor. Mas se você é um jogador, se eles sabem que você é cara de topar um jogo de fundo de salão de vez em quando, tudo que você tem de fazer é cuspir atravessado e você é um criminoso maldito. Puxa, estava estourando o orçamento aquela história de me levar e de me trazer para a cadeia de carro, naquele tempo.

Ele sacode a cabeça, infla as bochechas e continua:

– Mas aquilo foi só num certo período. Aprendi os truques. Para dizer a verdade, aquela pena por assalto, que eu estava cumprindo em Pendleton, foi a primeira cadeia em perto de um ano. Foi por isso que acabei estourado. Estava fora de forma; o cara conseguiu se levantar do chão e chamar os tiras antes que eu abandonasse a cidade. Um sujeito muito duro…

Ele ri de novo e vai apertando mãos e se senta para jogar queda-de-braço toda vez que o crioulo chega perto demais com o termômetro, até ter conhecido todo mundo do lado dos Agudos. E quando acaba de apertar a mão do último Agudo continua direto e vem até os Crônicos, como se não fôssemos nada de diferente. Não se pode saber se ele é realmente simpático ou se tem alguma razão de jogador para tentar aproximar-se e conhecer caras já tão pirados que muitos deles não sabem nem os próprios nomes.

Ele está ali puxando a mão de Ellis da parede e sacudindo, igualzinho como se fosse um político, candidato a alguma coisa, e o voto de Ellis fosse tão bom como o de todo mundo.

– Companheiro – diz a Ellis numa voz solene – meu nome é R. P. McMurphy e não gosto de ver um homem barbado chapinhando na sua própria água. Por que é que você não se enxuga?

Ellis olha para baixo, para a poça em volta de seus pés com o maior dos espantos.

– Ora, obrigado – diz ele, e até se afasta uns poucos passos em direção à latrina antes que os pregos puxem suas mãos de volta para a parede.

McMurphy vem descendo a fileira de Crônicos, aperta a mão do Coronel Matterson, de Ruckly e do Velho Pete. Aperta mãos de Circulantes, Caminhantes e Vegetais, aperta mãos que ele tem de levantar dos colos como se estivesse apanhando passarinhos mortos, passarinhos mecânicos, maravilhas de ossos minúsculos e fios cuja corda acabou e caíram. Aperta a mão de todo mundo que encontra, exceto a do George Grande, o maníaco por limpeza, que sorri e recua, afastando-se daquela mão anti-higiênica; assim, McMurphy apenas o saúda e diz para a sua própria mão direita quando se vai afastando:

– Mão, como é que você acha que aquele sujeito ali descobriu todo o mal em que você já esteve metida?

Ninguém consegue imaginar qual é o objetivo dele, ou por que ele está fazendo tamanha encenação para conhecer todo mundo, mas é melhor do que fazer quebra-cabeças. Ele fica dizendo o tempo todo que é uma coisa necessária circular e conhecer os homens com quem irá lidar, parte do trabalho de um jogador. Mas ele deve saber que não vai tratar com nenhum demente de 80 anos que não poderia fazer mais nada com uma carta de baralho senão enfiá-la na boca e mascá-la durante algum tempo. Entretanto, parece que se está divertindo, como se fosse o tipo de pessoa que gosta de rir dos outros.

Eu sou o último. Ainda amarrado na cadeira no canto. McMurphy pára quando chega até onde estou, enfia novamente os polegares nos bolsos e se inclina para trás para rir, como se visse alguma coisa mais engraçada em mim do que em qualquer outra pessoa. De repente fiquei apavorado. Quem sabe, ele estivesse rindo porque soubesse que a maneira como eu estava sentado ali, com os joelhos puxados para cima e os braços em volta deles, olhando fixo para a frente, como se nada pudesse ouvir, não passava de encenação.

– Oobaa – disse ele – olha só o que nós temos aqui.

Lembro-me de toda essa parte realmente muito bem. Eu me lembro da maneira como ele fechou um olho e inclinou a cabeça para trás e olhou para baixo, rindo de mim por sobre aquela cicatriz cor de vinho no nariz que já estava sarando. De início pensei que estivesse rindo por causa do aspecto engraçado que eu tinha, um rosto de índio e cabelo preto e lustroso de índio, numa pessoa como eu. Pensei que talvez estivesse rindo de como eu parecia fraco. Mas é então que me lembro de ter pensado que ele estava rindo porque não se havia deixado enganar nem por um minuto pela minha encenação de surdo-mudo; não fazia diferença o quanto a encenação fosse habilidosa, ele me tinha apanhado e estava rindo e piscando para que eu soubesse.

– Qual é a sua história, grande chefe? Você parece com o Touro Sentado fazendo greve de ficar sentado. – Olhou para os Agudos, para ver se eles iriam rir da sua piada; quando apenas riram em silêncio, ele tornou a olhar para mim e piscou de novo. – Qual é o seu nome, chefe?

Billy Bibbit gritou do outro lado da sala:

– O n-n-nome dele é Bromden. Chefe Bromden. Mas todo mundo o chama de chefe Vassoura *, porque os enfermeiros o obrigam a varrer o chão uma gr-grande parte do tempo. Acho que não há m-muito mais que ele possa fazer. É surdo. – Billy apoiou o queixo nas mãos. – Se eu fosse s-s-surdo – suspirou – eu me mataria.

McMurphy continuava olhando para mim.

– Quando ele crescer, vai ficar bem grande, não vai? Gostaria de saber qual é a altura dele.

– Acho que alguém o m-m-mediu uma vez, deu mais de dois metros; mas mesmo se ele for grande, tem medo até da sua própria s-s-sombra. É só um gr-grande índio surdo.

– Quando o vi sentado aqui, pensei que ele parecia um índio mesmo. Mas Bromden não é um nome índio. De que tribo é ele?

– Não sei – disse Billy. – Ele já estava aqui qu-quando eu che-cheguei.

– Tenho informação do médico – disse Harding – de que ele só é meio-índio, um índio de Columbia, acho.

É uma tribo extinta de Columbia Gorge. O médico disse que o pai dele era líder da tribo, daí o título desse sujeito, chefe. Quanto a essa parte do nome "Bromden", temo que meus conhecimentos de tradições índias não cheguem até aí.

McMurphy inclinou-se baixando a cabeça bem perto da minha, de tal forma que eu tinha de olhar para ele.

– Isso é verdade? Você é surdo, chefe?

– Ele é su-su-surdo e mudo.

McMurphy franziu os lábios e olhou fixo para o meu rosto durante muito tempo. Então se endireitou novamente e estendeu a mão.

– Bem, que diabo, ele pode apertar mãos, não pode? Surdo, ou seja lá o que for. Por Deus, chefe, você pode ser grande, mas é bom apertar minha mão ou considerarei um insulto. E não é uma boa idéia insultar o novo machão doido do hospital.

Quando ele disse isso, olhou para trás, para Billy e Harding, e fez uma careta, mas deixou aquela mão na minha frente, grande como uma travessa de jantar.

Eu me lembro muito bem do aspecto daquela mão: havia trabalhado numa garagem; havia uma âncora tatuada nas costas da mão; havia um band-aid sujo no meio do nó dos dedos, a ponta descolando. Todo o resto das articulações dos dedos estava coberto de cicatrizes e cortes, antigos e recentes. Lembro que a palma da mão era lisa e dura como osso, de manejar os cabos de madeira de machados e enxadas, não a mão que se pensaria poder lidar com cartas. A palma era calejada, e os calos estavam rachados, e a sujeira entranhada nas rachaduras. Um mapa rodoviário de suas viagens para cima e para baixo pelo Oeste. Aquela palma fez um som arrastado contra a minha mão. Eu me lembro de que os dedos eram grossos e fortes fechando-se sobre os meus, e a minha mão começou a ficar estranha e começou a inchar ali naquela minha vareta de braço, como se ele estivesse transmitindo o seu próprio sangue para dentro dela. Latejava de sangue e força. Floresceu quase que tão grande como a dele, eu me lembro…

– Sr. McMurphy. É a Chefona.

– Sr. McMurphy, poderia vir até aqui, por favor?

É a Chefona. Aquele crioulo com o termômetro foi buscá-la. Ela está de pé ali, batendo com o termômetro no relógio de pulso, os olhos faiscando enquanto tenta avaliar o novo homem. Os lábios estão com aquele formato triangular, como os lábios de uma boneca, prontos para uma mamadeira de mentira.

– O enfermeiro Williams me disse, Sr. Murphy, que o senhor está sendo meio difícil com relação a tomar o banho da admissão. Isso é verdade? Por favor, compreenda, eu aprecio a maneira como tomou ao seu encargo aproximar-se dos outros pacientes, mas tudo no seu devido tempo, Sr. Murphy. Sinto muito interromper o senhor e o Sr. Bromden, mas por favor compreenda: todo mundo… tem de seguir as regras.

Ele inclina a cabeça para trás e dá aquela piscadela, mostrando que ela não o está enganando, da mesma maneira como eu não o enganei, que ele a apanhou. Olha para ela com um olho durante um minuto.

– A senhora sabe, dona – diz ele. – A senhora sabe… isto é exatamente o negócio que alguém sempre me diz a respeito das regras…

Ele sorri. Ambos sorriem, cada um avaliando o outro.

– … bem no momento em que eles descobrem que estou a ponto de fazer o extremo oposto.

Então ele solta minha mão.


* * *

Na saleta de paredes envidraçadas, a Chefona abriu um embrulho vindo de um endereço estrangeiro e está puxando para dentro das seringas hipodérmicas o líquido verde-leitoso que veio em vidrinhos no embrulho. Uma das enfermeirinhas, uma moça com um olho torto, que fica sempre espiando preocupado por sobre o ombro dela, enquanto o outro vai cuidando de suas tarefas rotineiras, apanha a bandeja de seringas cheias, mas não a leva logo embora.

– Srta. Ratched, qual é a sua opinião a respeito desse novo paciente? Quero dizer, puxa, ele é bem-apessoado e simpático e tudo, mas na minha humilde opinião ele realmente domina.

A Chefona experimenta uma agulha na ponta do dedo.

– Temo – ela enfia a agulha na tampa de borracha do vidro e levanta o êmbolo – que isto seja exatamente o que ele está planejando fazer: dominar. Ele é o que costumamos chamar de "manipulador", Srta. Flinn, um homem capaz de usar todo mundo e tudo para atingir seus objetivos pessoais.

– Ah. Mas. Quero dizer, num hospital para doentes mentais? Quais poderiam ser os objetivos dele?

– Uma porção de coisas diferentes. – Ela está calma, sorridente, ocupada no trabalho de encher as seringas. – Conforto e uma vida fácil, por exemplo; o sentimento de poder e de ser respeitado, talvez; vantagens monetárias… talvez todas essas coisas. Às vezes, os objetivos pessoais de um manipulador são simplesmente o rompimento mesmo da ala, apenas pelo prazer do rompimento. Há pessoas assim na nossa sociedade. Um manipulador pode influenciar os outros pacientes e destruí-los a um tal ponto que poderia levar meses para se conseguir fazer com que as coisas voltassem novamente ao normal. Com a atual filosofia permissiva em hospitais para doentes mentais, é fácil para eles escaparem impunemente. Há alguns anos era bem diferente. Lembro-me de que, há uns anos, nós tivemos na enfermaria um paciente, o Sr. Taber, e ele era um intolerável manipulador. Por algum tempo. – Ela desvia o olhar do trabalho, a seringa cheia pela metade diante do seu rosto, como uma batuta. Seus olhos ficam sonhadores e satisfeitos com a lembrança. – Seu Tay-bur – diz ela.

– Mas, puxa – diz a outra enfermeira – que diabo faria um homem querer fazer uma coisa como criar confusão na enfermaria, Srta. Ratched? Qual o motivo possível?…

Ela interrompe a enfermeirinha enfiando bruscamente a agulha na tampa de borracha do frasco, enche a seringa, puxa a agulha e coloca a seringa na bandeja. Eu observo sua mão estender na direção de outra seringa vazia, observo-a tomar impulso, girar sobre a tampa, descer.

– Parece esquecer, Srta. Flinn, que esta é uma instituição para insanos.


A Chefona costuma ficar realmente furiosa se alguma coisa impede o seu aparato de funcionar como uma máquina de precisão, exata e suave. A menor coisa confusa, ou fora de ordem, ou que atrapalhe, a transforma num pequeno nó branco de fúria contida por um sorriso forçado. Ela anda com aquele mesmo sorriso de boneca, pregueado entre o queixo e o nariz, e aquele mesmo brilho calmo saindo dos olhos, mas bem lá dentro está tensa como aço. Eu sei, posso sentir. E ela não descontrai um fio de cabelo, até conseguir afastar o aborrecimento – tê-lo "ajustado ao meio-ambiente", como ela diz.

Sob o seu domínio o Lado de Dentro está quase que completamente ajustado ao meio-ambiente. Mas o problema é que ela não pode estar presente o tempo todo. Tem de passar algum tempo do Lado de Fora. Assim, ela trabalha tendo em vista ajustar também o mundo do Lado de Fora. Trabalhando em conjunto com outros iguais a ela, a quem eu chamo de a Liga, que é uma enorme organização que tem como objetivo ajustar o Lado de Fora tão bem como ela ajustou o de Dentro, ela se tornou uma verdadeira perita em ajustar as coisas. Já era Chefona no lugar antigamente quando eu entrei, vindo do Lado de Fora, há tanto tempo, e já se vinha dedicando ao ajustamento Deus sabe desde quando.

E eu noto que ficou cada vez mais hábil através dos anos. A prática a equilibrou e fortaleceu a tal ponto que agora ela emite uma energia que se espalha em todas as direções através de fios finos como cabelo, pequenos demais para os olhos de qualquer pessoa, exceto os meus; eu a vejo sentar-se no centro dessa teia de fios como um robô vigilante, cuidar da sua rede com uma habilidade mecânica de inseto, saber a cada segundo qual o fio e para onde deve ir, e exatamente qual a corrente que deve enviar para obter os resultados que quer. Eu era assistente de eletricista no campo de treinamento, antes que o Exército me embarcasse para a Alemanha, e estudei um pouco de eletrônica no ano que passei na universidade, e foi assim que aprendi sobre a maneira como essas coisas podem ser aparelhadas.

O que ela está sonhando, ali no centro daqueles fios, é com um mundo de precisão, eficiência e limpeza como um relógio de bolso com as costas de vidro, um mundo em que é impossível quebrar a programação e em que todos os pacientes que não estão do Lado de Fora, obedientes sob o seu foco, são Crônicos em cadeiras de rodas com sondas que descem direto de cada perna de calça para o esgoto sob o assoalho. Ano após ano, ela vai acumulando o seu pessoal ideal: médicos, de todas as idades e tipos, vêm e se erguem diante dela com idéias próprias sobre a maneira como uma enfermeira deveria ser dirigida, alguns com suficiente convicção para defender suas idéias, e ela encara esses médicos com olhos de gelo seco, entra dia, sai dia, até que eles se retiram sentindo calafrios sobrenaturais. "Eu lhe digo que não sei o que é" – dizem ao cara encarregado do pessoal. "Desde que comecei a trabalhar naquela enfermaria com aquela mulher, me sinto como se tivesse amônia correndo nas veias. Eu tremo o tempo todo, meus filhos se recusam a vir sentar-se no meu colo, minha mulher se recusa a dormir comigo. Eu insisto numa transferência… neurologia, tratamento de alcoólatras, pediatria, eu simplesmente não me importo!"

Ela vem mantendo isso assim há anos. Os médicos duram três semanas, três meses. Até que ela finalmente se decide por um homenzinho com uma testa grande e larga, bochechas grandes e caídas, como que espremido entre os olhinhos minúsculos como se outrora tivesse usado óculos que eram pequenos demais, e os tivesse usado durante tanto tempo que eles acabavam fazendo uma prega no meio do rosto dele, de forma que agora ele usa os óculos pendurados numa corrente presa ao botão do colarinho; eles oscilam na ponta do nariz minúsculo e estão sempre escorregando para um lado ou para outro, de forma que ele tem de inclinar a cabeça para trás quando fala, só para manter os óculos equilibrados. Este é o médico que ela escolhe.

Os três crioulos para o trabalho do dia ela consegue depois de anos de testes e recusas de milhares. Eles vêm até ela numa longa fileira negra de máscaras narigudas e mal-humoradas, odiando-a e à sua brancura de boneca de giz a partir do primeiro olhar. Ela os avalia e ao ódio de cada um durante um mês mais ou menos, depois os deixa ir, porque não odeiam o bastante. Quando finalmente arranja os três que ela quer – consegue um de cada vez, através de um período de vários anos, entrelaçando-os no seu plano e em sua rede – tem certeza absoluta de que odeiam o suficiente para serem capazes.

O primeiro, ela conseguiu cinco anos depois de minha vinda para aqui; um anão forte, de espinha torta, da cor de asfalto. A mãe dele foi violentada na Geórgia enquanto o pai estava de pé do lado, amarrado ao forno quente de ferro com tirantes de arado, o sangue escorrendo para dentro dos sapatos. O garoto assistiu a tudo de dentro de um armário, com cinco anos de idade e apertando o olho para espiar através da fenda entre a porta e a ombreira, e ele nunca mais cresceu uma polegada depois disso. Agora suas pálpebras pendem frouxas e finas das sobrancelhas como se tivesse um morcego empoleirado no osso do nariz. Pálpebras como couro cinzento, fino, ele as ergue só um pouco sempre que um novo homem branco entra na enfermaria, espia por baixo delas e examina o homem de alto a baixo e balança a cabeça só uma vez, como se tivesse, isso mesmo, tivesse acabado de obter uma resposta absolutamente positiva de uma coisa de que já tivesse certeza. Ele queria trazer uma meia cheia de chumbo para passarinho, logo no início, quando veio trabalhar, para ir pondo os pacientes em forma, mas ela lhe disse que não se fazia mais daquela maneira, obrigou-o a deixar a meia em casa e lhe ensinou a sua própria técnica; ensinou-lhe a não demonstrar seu ódio e a ficar calmo e esperar, esperar por uma pequena vantagem, um pequeno descuido, e então torcer a corda e manter a pressão constante. O tempo todo. É assim que a gente os põe em forma, ela lhe ensinou.

Os outros dois crioulos vieram dois anos depois, começando a trabalhar com um intervalo de apenas um mês entre eles, e ambos tão parecidos que acho que ela mandou fazer uma cópia do que veio primeiro. São altos, rápidos e ossudos e os rostos estão cinzelados em expressões que nunca mudam, terminam em pontas. Se você roçar no cabelo deles, só isso arranca sua pele de uma vez.

Todos eles pretos como telefones. Quanto mais pretos eles são, ela aprendeu isso com a longa fileira negra que veio antes deles, mais tempo provavelmente se dedicarão a limpar, a esfregar e a manter a enfermaria em ordem. Por exemplo, os uniformes dos três crioulos estão sempre imaculados. Brancos e engomados como os dela.

Todos eles usam calças engomadas, brancas como a neve, e camisas brancas com pressões de metal de um lado, e sapatos brancos, lustrosos como o gelo, com solas vermelhas de borracha, silenciosas como camundongos de um lado para o outro no corredor. Eles nunca fazem barulho quando andam. Materializam-se em lugares diferentes da ala toda vez que um paciente pensa em se examinar sozinho ou contar algum segredo a um outro. Um paciente está sozinho num canto e de repente há um guinchado e gelo se forma nas maçãs do seu rosto, então ela se vira naquela direção, e lá está uma máscara fria de pedra flutuando acima dele, contra a parede. Ele vê apenas o rosto negro. Não há corpo. As paredes são tão brancas quanto os uniformes, limpas e lustrosas como a porta de uma geladeira, e o rosto e as mãos negras parecem flutuar diante daquele fundo como um fantasma.

Anos de treinamento e os três crioulos se afinam cada vez mais com a freqüência da Chefona. Um a um, eles são capazes de desligar os fios diretos e operar através de ondas de energia. Ela nunca dá ordens em voz alta ou deixa instruções escritas, que poderiam ser encontradas por uma esposa ou por uma professora em visita. Não precisa mais fazê-lo. Eles estão em contato numa onda de ódio de alta voltagem, e os crioulos estão lá executando sua ordem antes mesmo que pense nela.

Assim, depois que a enfermeira consegue o seu pessoal, a eficiência tranca a porta da ala como o relógio de um vigia. Tudo que os caras pensam, dizem e fazem, é tudo planejado com meses de antecedência, com base nas pequenas anotações que a enfermeira toma durante o dia. Elas são datilografadas e transmitidas para a máquina que ouço zumbir atrás da porta de aço nos fundos da Sala das Enfermeiras. Uma série de cartões de Ordens Diárias é devolvida, perfuradas com um desenho de buraquinhos quadrados. No início de cada dia, o cartão OD devidamente datado é inserido numa fenda na porta de aço e as paredes zumbem. Luzes se acendem no dormitório às seis e meia: Os Agudos se levantam e saem da cama tão depressa quanto os negrinhos possam cutucá-los para fora, pô-los a trabalhar, encerando o chão, esvaziando cinzeiros, tirando com polimento as marcas de arranhões daquela parede ali, onde um velho entrou em curto-circuito no dia anterior e caiu numa terrível convulsão de fumaça e cheiro de borracha queimada. Os Circulantes giram pernas mortas como toras para o chão e esperam, como estátuas sentadas, que alguém empurre as cadeiras até eles. Os Vegetais mijam na cama, ativando um choque elétrico e um vibrador, que os faz rolar para os ladrilhos, onde os crioulos podem despejar água neles com a mangueira e enfiá-los em pijamas limpos…

Seis e quarenta e cinco, os barbeadores zumbem e os Agudos fazem fila por ordem alfabética diante dos espelhos, A, B, C, D… Os Crônicos, que ainda caminham como eu, entram quando os Agudos acabam; depois, os Circulantes são trazidos nas cadeiras de rodas. Os três velhos que ainda restam, com uma crosta de mofo amarelo na dobra frouxa debaixo do queixo, são barbeados em espreguiçadeiras, na enfermaria, com uma tira de couro em torno da testa para impedi-los de cabecear de um lado para o outro sob o barbeador.

Em algumas manhãs – as de segunda-feira especialmente – eu me escondo e tento resistir ao horário. Em outras ocasiões, acho que é mais inteligente me meter na fila, no lugar entre A e C no alfabeto e ir seguindo adiante como todo mundo, sem levantar os pés – magnetos muito fortes sob o assoalho manobram o pessoal pela enfermaria como se fossem fantoches…

Às sete horas a sala de refeições se abre e a ordem da formatura se inverte: os Circulantes primeiro, então os Caminhantes, depois os Agudos apanham as bandejas, flocos de milho, bacon com ovos e torradas – e hoje de manhã um pêssego em calda num pedaço de alface verde cortada. Alguns dos Agudos trazem as bandejas para os Circulantes. A maioria dos Circulantes é apenas de Crônicos com as pernas ruins, eles se alimentam sozinhos, mas há os três que não têm qualquer movimento do pescoço para baixo, e não muito do pescoço para cima. Esses se chamam Vegetais. Os crioulos os trazem para o refeitório depois que todo mundo já está sentado, empurram as cadeiras de rodas encostando-as numa parede, e lhes trazem bandejas idênticas de comida com um aspecto de lama, com pequenos cartões brancos, indicativos da dieta, presos nas bandejas. Mecanicamente suave – é o que se lê nos cartões da dieta para esses três desdentados: ovos, presunto, torrada, bacon, tudo mastigado 32 vezes cada uma pela máquina de aço inoxidável da cozinha. Eu a vejo franzir os lábios cortados, como o tubo de um aspirador, e cuspir um coágulo de presunto mastigado, num prato, com um som de curral.

Os crioulos enchem as rosadas bocas sugadoras dos Vegetais um pouquinho depressa demais para dar tempo de engolir, e a "mecanicamente suave" escorre descendo pelos queixinhos arredondados até os pijamas verdes. Os crioulos xingam os Vegetais e aumentam-lhes a abertura das bocas com um movimento giratório da colher, como se estivessem descaroçando uma maçã podre: "Esse peido velho do Blastic está caindo aos pedaços na minha frente. Já não posso mais dizer se estou dando a ele papa de bacon ou pedaços da porca da língua dele"…

Às sete e meia voltamos para a enfermaria. A Chefona olha para fora através do seu vidro especial, sempre limpo a tal ponto que não se pode dizer que está ali, e balança a cabeça em sinal de aprovação do que está vendo, estende o braço e arranca uma folha do calendário, um dia mais para perto do objetivo. Aperta um botão para que as coisas comecem. Ouço o ressoar de uma grande folha de zinco sendo sacudida em algum lugar. Todo mundo se coloca em ordem. Agudos: sentem-se do seu lado da enfermaria e esperem que as cartas e os jogos de Monopólio sejam trazidos. Crônicos: sentem-se do seu lado e esperem pelos quebra-cabeças da caixa da Cruz Vermelha. Ellis: vá para o seu lugar na parede, mãos para o alto para receber os pregos e o mijo escorrendo pela perna. Pete: balance a cabeça como um fantoche. Scanlon: trabalhe com as mãos nodosas na mesa a sua frente, construindo uma bomba de faz-de-conta para explodir um mundo de paz. Harding: comece a falar, agitando suas mãos de pombo no ar, depois as prenda debaixo dos braços, porque homens adultos não devem agitar suas bonitas mãos desse jeito. Sefelt: comece a choramingar porque seus dentes doem e o seu cabelo está caindo. Todo mundo: inspire… expire… em perfeita ordem; corações batendo todos no compasso determinado pelos cartões OD. Som de cilindros emparelhados.

Como um mundo de histórias em quadrinhos, onde os personagens são achatados e delineados em preto, movendo-se aos trancos através de uma espécie de história idiota qualquer, que poderia ser realmente engraçada se não fosse pelo fato de os personagens caricaturescos serem de verdade…

Às sete e quarenta e cinco, os crioulos vêm descendo pela fileira de Crônicos, esvaziando as sondas dos que ficam suficientemente quietos para usá-las. As sondas são camisas-de-vênus de segunda mão, as pontas cortadas e presas com fita de borracha a tubos que descem pelas pernas até um saco plástico que traz escrito "PARA JOGAR NO LIXO. NAO DEVE SER UTILIZADO OUTRA VEZ", os quais tenho a tarefa de lavar ao fim de cada dia. Os crioulos fixam a camisa-de-vênus prendendo-a com fita adesiva nos pêlos; os velhos Crônicos de sonda são pelados, como bebês, por causa da remoção da fita…

Às oito horas as paredes zunem e zunem em plena atividade. O alto-falante no teto diz "medicamentos", usando a voz da Chefona. Olhamos para o compartimento de vidro onde ela costuma ficar sentada, mas ela não está em lugar algum perto do microfone; de fato, ela está a 10 passos de distância do microfone, ensinando a uma das enfermeirinhas como se prepara uma bandeja de remédios bem arrumada, com os comprimidos dispostos ordenadamente. Os Agudos formam fila diante da porta de vidro, A, B, C, D, e depois os Crônicos e os Circulantes (os Vegetais recebem os deles depois, misturados numa colher de suco de maçã). Os caras vão avançando, e recebem uma cápsula num copinho de papel – jogam a cápsula no fundo da garganta, o copinho é enchido de água pela enfermeirinha e eles engolem a cápsula. Em raras ocasiões um idiota qualquer era capaz de perguntar o que era que lhe estavam pedindo para engolir.

– Espere só um pouquinho, boneca; que é que são essas duas cápsulas aqui com a minha vitamina?

Eu o conheço. É um Agudo grande e curioso, já começando a ganhar a reputação de criador de casos.

– É apenas um remédio, Sr. Taber, para o senhor. Agora engula.

– Mas eu quero saber que espécie de remédio. Cristo, posso ver que são comprimidos…

– Ora, apenas engula tudo de uma vez, vamos, Sr. Taber… por mim, sim? – Ela lança um olhar rápido na direção da Chefona, para ver como a sua técnica de namorico está sendo recebida, então torno a olhar para o Agudo. Ele ainda não está disposto a engolir uma coisa que não sabe o que é, nem mesmo só por ela.

– Senhorita, não gosto de criar casos, mas também não gosto de engolir uma coisa sem saber o que é. Como é que vou saber se este aqui não é um desses comprimidos esquisitos, que me vão fazer ser o que eu não sou?

– Não fique aborrecido, Sr. Taber…

– Aborrecido? Tudo que eu quero é saber, pelo amor de Deus…

Mas a Chefona se aproximou sem ser notada, fechou a mão sobre o braço dele, paralisando-o por completo até o ombro.

– Está tudo bem, Srta. Flinn – diz ela. – Se o Sr. Taber prefere agir como criança, ele precisa ser tratado como tal. Nós já tentamos ser gentis e ter consideração com ele. É óbvio que esta não é a resposta. Hostilidade, hostilidade, este é o agradecimento que recebemos. O senhor pode ir, Sr. Taber, se não quer tomar a medicação por via oral.

– Tudo que eu queria era saber, pelo amor de…

– O senhor pode ir.

Ele se afasta, resmungando, quando ela lhe solta o braço, e passa o dia rondando em volta da latrina, matutando a respeito dos tais comprimidos. Uma vez eu me livrei, segurando uma daquelas mesmas cápsulas vermelhas debaixo da língua, fiz de conta que tinha engolido, e a abri depois esmagando-a, no armário das vassouras. Por uma fração de segundo, antes que toda ela se transformasse em poeira branca, vi que era um aparelho eletrônico em miniatura, como os que eu ajudei a Equipe de Radar a desenvolver no Exército, fios suportes e transistores, aquele ali feito de maneira a se dissolver em contato com o ar…

Às oito e vinte, as cartas e os quebra-cabeças vão embora…

Às oito e vinte e cinco, um dos Agudos diz que costumava observar a irmã tomando banho; os três caras que estavam na mesa com ele caem uns por cima dos outros para ver quem consegue escrever aquilo no diário…

Oito e meia, a porta da enfermaria se abre e dois técnicos entram em passo de trote, cheirando a álcool; os técnicos sempre se movimentam depressa ou em passo de trote, porque estão sempre se inclinando tanto para a frente que têm de andar depressa para continuar de pé. Eles se inclinam para frente e sempre cheiram como se tivessem esterilizado os instrumentos em vinho. Fecham a porta do laboratório atrás de si, e eu vou varrer bem ali perto e consigo distinguir as vozes sobre o zzzt-zzzt-zzzt maligno de aço sobre a pedra de amolar.

– Que é que nós já temos a essa hora revoltante da manhã?

– Temos de instalar um Comutador Interno de Curiosidade num sujeitinho abelhudo. Ela diz que tem de ser um trabalho rápido, e não tenho certeza se temos uma dessas engenhocas no estoque.

– Poderíamos ter de chamar a IBM para nos mandar uma com urgência; deixe-me verificar lá com o Fornecimento…

– Ei; apanhe uma garrafa daquela boa enquanto estiver lá e traga: está ficando de um jeito que não consigo instalar uma droga de um aparelho dos mais simples sem precisar de um suporte. Bem, que diabo, é melhor do que trabalho de garage…

As vozes deles são forçadas e rápidas demais na resposta para serem parte de uma conversa de verdade – parecem mais com falas de desenho animado. Trato de me afastar e ir varrendo para longe antes que seja apanhado ouvindo atrás da porta.

Os dois crioulos pegam Taber na latrina e o arrastam até o quarto acolchoado. Ele leva um bom chute nas canelas. Está berrando furioso de ódio. Fico surpreendido de ver como parece indefeso quando os negros o seguram, como se estivesse enrolado em faixas de ferro negro.

Eles o atiram de cara sobre o colchão. Um se senta sobre a cabeça dele, e o outro lhe rasga as calças, abrindo a parte de trás, e vai arrancando pedaços de pano até que o traseiro cor de pêssego de Taber fica emoldurado pelo verde-alface esfarrapado. Ele está abafando pragas no colchão, e o crioulo sentado sobre a sua cabeça dizendo: "É isso mesmo, seu Taber, é isso mesmo…" A enfermeira se vem aproximando pelo corredor, espalhando vaselina sobre uma longa agulha, fecha a porta, assim que eles ficam fora de vista durante um segundo. então ela torna a sair, limpando a agulha num farrapo das calças de Taber. Ela deixou o vidro de vaselina no quarto. Antes que o crioulo possa fechar a porta, vejo um deles ainda sentado sobre a cabeça de Taber, alisando-o com um Kleenex. Ficam lá dentro muito tempo antes que a porta se abra novamente e saiam, carregando-o pelo corredor até o laboratório. Agora as calças dele já foram arrancadas mesmo, e ele está enrolado num lençol úmido…

As nove horas, os jovens internos, vestidos em roupas com cotovelos de couro, conversam com os Agudos durante 50 minutos sobre o que eles fizeram quando eram garotinhos. A Chefona desconfia da aparência desses residentes de cabelos cortados curtos e aqueles 50 minutos que eles passam na enfermaria são um período duro para ela. Enquanto estão por ali, a máquina começa a engasgar, e ela está de cenho franzido, tomando nota do que é preciso para examinar os dossiês daqueles rapazes, para descobrir velhas infrações de trânsito e coisas no gênero…

Às nove e cinqüenta, os residentes vão embora e a máquina volta a zumbir macio. A enfermeira observa a enfermaria de dentro do seu compartimento de vidro; a cena diante dela torna a adquirir aquela clareza azul-metálico, aquele movimento limpo e ordenado de um desenho animado.

Taber é tirado do laboratório numa cama Gurney de rodinhas.

– Tivemos de dar mais uma injeção nele quando começou a acordar durante a punção espinhal – diz-lhe o técnico. – Que é que acha de o levarmos direto para o Setor Um e bombardearmos com Est enquanto estivermos por lá… e assim não desperdiçamos o seconal?

– Acho que é uma excelente sugestão. Talvez depois disso possamos levá-lo até o encefalógrafo e verificar a cabeça dele… poderíamos encontrar provas da necessidade de um tratamento cerebral.

Os técnicos saem andando depressa, empurrando o homem na Gurney, como personagens de historietas em quadrinhos – ou como fantoches, fantoches mecânicos num daqueles espetáculos de Punch e Judy, em que se espera que seja engraçado ver o fantoche derrotado pelo Diabo e engolido pela cabeça por um jacaré sorridente…

Às dez horas, chega a correspondência. Às vezes é você quem recebe o envelope rasgado…

Às dez e meia, vem o Relações-Públicas seguido de um grupo de senhoras. Bate palmas com as mãos gordas na porta da enfermaria. "Oh, alô, amigos; animação, animação… Olhem só, meninas; vejam só como é limpo e claro, hem? Esta é a Srta. Ratched. Escolha sempre esta enfermaria porque é a dela. Meninas, ela é como uma mãe. Não estou querendo falar em termos de idade, mas vocês compreendem"…

O colarinho da camisa do Relações-Públicas é tão apertado que faz o rosto dele inchar quando ri, e está rindo a maior parte do tempo, nunca sei de que, rindo alto e depressa como se quisesse poder parar mas sem conseguir. E o rosto está inchado, vermelho e redondo como uma bola, um rosto pintado nela. Ele não tem cabelos, nem no rosto nem na cabeça, de que se possa falar; parece que é como se outrora tivesse colado um pouco de cabelo, mas ficava escorregando e entrando pelos punhos e pelos bolsos da camisa dele, e descendo pelo colarinho. Talvez seja por isso que ele mantém o colarinho tão apertado, para que os pedacinhos de cabelo fiquem do lado de fora.

Talvez seja por isso que fica rindo tanto, porque consegue manter todos os pedacinhos do lado de fora.

Ele conduz essas excursões – mulheres sérias de casacos de malha, balançando a cabeça para ele à medida que vai mostrando quantas coisas melhoraram com o correr dos anos. Mostra a TV, as grandes poltronas de couro, os bebedouros higiênicos; depois, todos eles vão tomar café na Sala das Enfermeiras. Às vezes, ele vem sozinho e apenas fica de pé no meio da enfermaria e bate com as palmas das mãos (a gente pode ouvir como elas estão molhadas), bate palmas duas ou três vezes até que se grudem, então as mantém juntas, sob uma das bochechas, como se estivesse rezando, e começa a girar. Gira, gira e gira ali no meio do chão, olhando selvagem e freneticamente para a TV, os quadros novos nas paredes, bebedouro. E rindo.

O que é que ele vê de tão engraçado nunca nos deixa saber, e a única coisa engraçada que vejo é ele rodando, rodando e rodando ali, como um brinquedo de borracha – se a gente o empurrar para a frente, ele tem um peso no fundo, e logo balança de volta para o lugar, e recomeça a girar. Ele nunca olha para o rosto dos homens…

Dez e quarenta, quarenta e cinco, cinqüenta, os pacientes transitam entrando e saindo de entrevistas na ET ou OT ou PT, ou em salinhas estranhas em algum lugar onde as paredes nunca têm o mesmo tamanho e os assoalhos não são nivelados. Os sons da maquinaria à sua volta atingem uma velocidade de cruzeiro constante.

A enfermaria zumbe da maneira como ouvi uma fábrica de tecido zumbir uma vez, quando o time de futebol jogou com a escola secundária na Califórnia. Depois de uma boa temporada, os promotores da cidade estavam tão orgulhosos e exaltados que pagavam para que fôssemos de avião até a Califórnia para disputar um campeonato de escolas secundárias com o time de lá. Quando chegamos à cidade tivemos de visitar uma indústria local qualquer. Nosso treinador era um daqueles dados a convencer as pessoas de que o atletismo era educativo por causa do aprendizado proporcionado pelas viagens, e em todas as viagens que fazíamos ele carregava com o time para visitar fábricas de laticínios, fazendas de plantação de beterraba e fábricas de conservas, antes do jogo. Na Califórnia foi uma fábrica de tecido. Quando entramos na fábrica, a maior parte do time deu uma olhada rápida e saiu para ir sentar-se no ônibus e jogar pôquer em cima das malas, mas eu fiquei lá dentro num canto, fora do caminho das moças negras que corriam de um lado para outro entre as fileiras de máquinas. A fábrica me colocou numa espécie de sonho, todos aqueles zumbidos e estalos a chocalhar de gente e de máquinas sacudindo-se em espasmos regulares. Foi por isso que eu fiquei quando todos os outros se foram, por isso e porque aquilo me lembrou de alguma forma os homens da tribo que haviam deixado a aldeia nos últimos dias para ir trabalhar na trituradora de pedras para a represa. O padrão frenético, os rostos hipnotizados pela rotina… eu queria ir com o time, mas não pude.

Era de manhã, no princípio do inverno, e eu ainda usava a jaqueta que nos deram quando ganhamos o campeonato – uma jaqueta vermelha e verde com mangas de couro e um emblema com o formato de uma bola de futebol bordado nas costas, dizendo o que havíamos vencido – e ela estava fazendo com que uma porção de moças negras olhassem. Eu a tirei, mas elas continuaram olhando. Eu era muito maior naquela época.

Uma das moças afastou-se de sua máquina e olhou para um lado e para o outro das passagens entre as máquinas, para ver se o capataz estava por perto, depois veio até onde eu estava. Perguntou se íamos jogar na escola secundária naquela noite e me disse que tinha um irmão que jogava como zagueiro para eles. Falamos um pouco a respeito de futebol e coisas assim, e reparei como o rosto dela parecia indistinto, como se houvesse uma névoa entre nós dois. Era a lanugem do algodão pairando no ar.

Falei-lhe a respeito da lanugem. Ela revirou os olhos e cobriu a boca com a mão, para rir, quando eu lhe disse como era parecido com olhar o seu rosto numa manhã enevoada de caça ao pato. E ela disse: "Agora me diga para que é que você quereria nesse bendito mundo estar sozinho comigo lá fora, numa tocaia de pato?" Disse-lhe que ela poderia tomar conta da minha arma, e as moças começaram a rir com a boca escondida atrás das mãos na fábrica inteira. Eu também ri um pouco, vendo como havia parecido inteligente. Ainda estávamos conversando e rindo quando ela agarrou meus pulsos e os apertou com as mãos. Os traços do seu rosto de repente se acentuaram num foco radioso; vi que ela estava aterrorizada por alguma coisa.

– Leve-me – disse ela num murmúrio. – Leve-me mesmo, garotão. Para fora desta fábrica aqui, para fora desta cidade, para fora desta vida. Me leva para uma tocaia de pato qualquer, num lugar qualquer. Num outro lugar qualquer. Hem, garotão, hem?

O seu rosto negro, bonito, cintilava ali na minha frente. Fiquei boquiaberto, tentando pensar em alguma maneira de responder. Ficamos juntos, enlaçados daquela maneira durante alguns segundos; então o som da fábrica saltou num arranco, e alguma coisa começou a puxá-la para trás, afastando-a de mim. Um cordão em algum lugar que eu não via se havia prendido naquela saia vermelha florida e a puxava para trás. As unhas dela foram arranhando minhas mãos e, tão logo ela desfez o contato comigo, seu rosto saiu novamente de foco, tornou-se suave e escorregadio como chocolate derretendo-se atrás daquela neblina de algodão que soprava. Ela riu e girou depressa deixando que eu visse a perna amarela, quando a saia subiu. Lançou-me uma piscadela de olho por sobre o ombro enquanto corria para sua máquina, onde uma pilha de fibra deslizava da mesa para o chão; ela apanhou tudo e saiu correndo sem barulho pela fileira de máquinas para enfiar as fibras num funil de enchimento; depois, desapareceu do meu ângulo de visão virando num canto.

Todos aqueles fusos bobinando e rodando, e lançadeiras saltando por todo lado, e carretéis fustigando o ar com fios, paredes caiadas e máquinas cinza-aço e moças com saias floridas saltitando para a frente e para trás e a coisa toda tecida como uma teia, com linhas brancas corrediças que prendiam a fábrica, mantendo-a unida – aquilo tudo me marcou e de vez em quando alguma coisa na enfermaria o traz de volta à minha mente.

Sim. Isto é o que eu sei. A enfermaria é uma fábrica da Liga. Serve para reparar os enganos cometidos nas vizinhanças, nas escolas e nas igrejas, isso é o que o hospital é. Quando um produto acaba, volta para a sociedade lá fora – todo reparado e bom como se fosse novo, às vezes melhor do que se fosse novo, traz alegria ao coração da Chefona; algo que entrou deformado, todo diferente, agora é um componente em funcionamento e bem-ajustado, um crédito para todo esquema e uma maravilha para ser observado. Observe-o se esgueirando pela terra com um sorriso, encaixando-se em alguma vizinhançazinha, onde estão escavando valas agora mesmo, por toda a rua, para colocar encanamento para a água da cidade. Ele está contente com isso. Ele finalmente está ajustado ao meio-ambiente…

Puxa, nunca vi algo capaz de superar a mudança que houve em Maxwell Taber desde que ele voltou daquele hospital; com umas marcas roxas em volta dos olhos, um pouco mais magro, e, sabe de uma coisa?, ele é um outro homem. Deus, a moderna ciência americana…

E a luz fica acesa na janela de seu porão, muito depois da meia-noite, toda noite, à medida que os Elementos de Reação Retardada, que os técnicos instalaram, emprestam habilidades ligeiras aos seus dedos quando ele se inclina sobre o vulto entorpecido da esposa, das suas garotinhas de apenas quatro e seis anos, o vizinho com quem joga boliche às segundas-feiras; ele os ajusta como foi ajustado. É assim que eles espalham o sistema.

Quando a corda dele finalmente acaba, depois de um número de anos preestabelecido, a cidade o ama carinhosamente e o jornal publica seu retrato ajudando os escoteiros, no ano passado, no Dia de Limpeza do Cemitério, e a esposa dele recebe uma carta do diretor da escola secundária, dizendo como Maxwell Taber era uma figura inspiradora para a juventude da nossa maravilhosa comunidade.

Até embalsamadores, normalmente uns pão-duros, contadores de tostão, ficam influenciados. "É, olhe só para ali: o velho Max Taber era um bom sujeito. Que é que você acha de usarmos aquele peso, 30 mais caro, sem cobrar nenhuma taxa extra da esposa dele? Não, que diabo, vamos fazê-lo por conta da casa."

Um Desfecho bem sucedido como esse é um produto que traz alegria ao coração da Chefona e faz a propaganda da sua arte e da indústria inteira de maneira geral. Todo mundo fica satisfeito com o Desfecho.

Mas uma Admissão é uma história diferente. Mesmo a Admissão mais bem comportada está destinada a precisar de algum trabalho para entrar na rotina e, também, nunca se pode dizer quando poderia entrar justamente aquele determinado tipo, que é suficientemente livre para estragar as coisas à direita e à esquerda, realmente fazer um diabo de uma confusão e constituir uma ameaça a toda a organização bem lubrificada do esquema. E, como já expliquei, a Chefona fica realmente furiosa se qualquer coisa impede seu esquema de funcionar direitinho.


Antes do meio-dia eles estão novamente na máquina de neblina, mas não a ligaram a toda; não está tão espessa assim, posso ver com algum esforço. Um dia desses, deixarei de me esforçar e me deixarei levar por completo, me perderei na neblina como alguns dos Crônicos se perderam, mas por enquanto estou interessado nesse cara novo – quero ver como é que ele vai reagir à Sessão de Grupo que vem aí.

Aos dez para uma, a neblina se dissolve por completo e os crioulos estão dizendo aos Agudos para desimpedir o aposento para a sessão. Todas as mesas são levadas para fora da enfermaria e para a sala da banheira, do outro lado do corredor. "Desocupem o chão", diz McMurphy, como se estivéssemos querendo dar uma festa de dança.

A Chefona observa tudo pela sua janela. Ela não se mexeu daquele lugar, diante daquela janela, durante três horas inteiras, nem mesmo para almoçar. O chão da enfermaria fica livre de mesas e, à uma hora, o médico sai do consultório, no fundo do corredor, cumprimenta a enfermeira com um aceno de cabeça ao passar por onde ela está, observando pela janela, e se instala em sua cadeira, um pouco à esquerda da porta. Os pacientes sentam-se em seguida; e aí as enfermeirinhas e os internos vêm entrando um a um. Quando todo mundo está sentado, a Chefona se levanta por trás da janela e vai até os fundos da Sala de Enfermeiras, até aquele painel de aço, com controles e botões, liga uma espécie qualquer de piloto automático para dirigir as coisas enquanto ela estiver fora e sai para a enfermaria, trazendo o diário e um punhado de anotações. O uniforme dela, mesmo depois de ela ter estado ali durante a metade de um dia, ainda se conserva tão duro de engomado que não se dobra exatamente em lugar algum; estala e se parte nas juntas com um som como o de uma lona congelada ao ser dobrada.

Ela se senta bem à direita da porta.

Tão logo ela se acomoda, o velho Pete Bancini desliza, ficando de pé, e começa a sacudir a cabeça e a ofegar.

– Estou cansado. Ufa. Oh, Senhor. Oh, estou muito cansado… – ele sempre faz assim, toda vez que aparece um cara novo na ala que possa ouvi-lo.

A Chefona nem olha para o Pete. Está examinando os papéis na sua cesta.

– Alguém vá sentar-se ao lado do Sr. Bancini – diz ela. – Acalme-o de maneira a que possamos começar a reunião.

Billy Bibbit vai. Pete virou a cabeça, ficando de frente para McMurphy, e está balançando a cabeça de um lado para outro, como um sinal luminoso de cruzamento de estrada de ferro. Ele trabalhou numa estrada de ferro durante 30 anos; agora está realmente acabado, mas sua memória ainda funciona.

– Tô can-sa-a-do – diz ele, balançando a cabeça para McMurphy.

– Vamos com calma, Pete – diz Billy, pondo a mão sardenta sobre seu joelho.

– … muito cansado…

– Eu sei, Pete – dá uma palmadinha no joelho descarnado de Pete, e Pete levanta a cabeça, percebendo que hoje ninguém vai prestar atenção à sua queixa.

A enfermeira tira o relógio de pulso e olha o relógio da enfermaria, dá corda no relógio de pulso e o coloca virado para ela, na cesta. Pega uma pasta.

– Agora. Vamos dar início à sessão?

Olha em volta para ver se mais alguém está disposto a interrompê-la, sorrindo sempre, enquanto sua cabeça se vira no colarinho. Ninguém enfrenta o olhar dela; estão todos procurando algo nas unhas. Exceto McMurphy. Ele arranjou uma poltrona num canto, está sentado como se tivesse tomado posse dela definitivo. Está observando todos os movimentos dela. Ainda conserva o gorro, bem enterrado na cabeça ruiva, como se fosse um corredor de motocicleta. Um baralho no seu colo se abre para um corte de uma só mão, então se fecha com um estalo, um som alto ampliado pelo silêncio. Os olhos em movimento da enfermeira se detêm sobre ele por um segundo. Ela o esteve observando enquanto jogava pôquer durante a manhã inteira e, embora não tenha visto dinheiro trocar de mãos, desconfia que ele não seja exatamente do tipo que vá ficar satisfeito com o regulamento, que estabelece que só se pode apostar fósforos. O baralho se abre com um farfalhar e se fecha novamente com um estalo, e então desaparece em algum lugar numa daquelas manobras.

A enfermeira torna a olhar para o relógio e tira um pedaço de papel da pasta que tem nas mãos, olha para o papel e torna a colocá-lo na pasta. Põe de lado a pasta e apanha o livro de registro diário. Ellis tosse lá do seu lugar na parede; ela espera até que ele pare.

– Bom. No encerramento da sessão de sexta-feira… estávamos discutindo o problema do Sr. Harding – com relação à sua jovem esposa. Ele declarou que a esposa era extremamente bem servida de busto e que isso o deixava pouco à vontade, porque ela atraía os olhares dos homens na rua. – Ela começa a abrir o livro em determinados lugares; pedacinhos de papel para marcar as páginas saem do alto da lombada do livro. – De acordo com as notas registradas no livro por vários pacientes, o Sr. Harding foi ouvido ao comentar que ela "dá todas as razões para que os bastardos olhem". Também foi ouvido ao dizer que ele poderia ter dado a ela motivos para buscar outras atenções sexuais. Ele foi ouvido ao comentar "a minha esposa querida e doce, mas analfabeta, acha que qualquer palavra ou gesto, que não despertar num estalo uma admirável força física e fantástica brutalidade, é uma palavra ou um gesto de um janota fraco". – Continua a ler o livro em silêncio durante alguns instantes, depois o fecha. – Ele também declarou que o grande busto da esposa às vezes lhe dava um sentimento de inferioridade. É tudo. Alguém está disposto a explorar esse assunto mais um pouco?

Harding fecha os olhos, e ninguém mais diz nada. McMurphy olha em volta examinando os outros, esperando para ver se alguém vai responder à enfermeira, então ergue a mão e estala os dedos, como um colegial numa sala de aulas; a enfermeira volta a cabeça para ele.

– Sr., ah, McMurphy?

– Explorar o quê?

– Quê? Explorar…

– A senhora perguntou, acho, "alguém está disposto a explorar"…

– Explorar o… assunto, Sr. McMurphy, o assunto do problema do Sr. Harding com a esposa.

– Ah. Pensei que se referisse a explorar o caso dela… uma outra coisa.

– Ora, mas o que poderia…

Mas ela pára. Quase ficou desconcertada por um segundo. Alguns dos Agudos escondem sorrisos, e McMurphy se espreguiça longamente, boceja, pisca o olho para Harding. Então a enfermeira, na maior calma, põe o livro de volta na cesta, tira uma outra pasta, abre-a e começa a ler.

– McMurphy, Randle Patrick. Internado pelo Estado, vindo da Colônia Correcional de Pendleton. Para diagnóstico e possível tratamento. Trinta e cinco anos de idade. Solteiro. Cruz de Distinção em Serviço na Coréia, por liderar uma fuga num campo de prisioneiros comunista. Em seguida, expulsão desonrosa por insubordinação. Segunda por uma série de rixas de rua, brigas de bar, e uma série de prisões por bebedeira, tentativa de agressão de fato, por perturbação da ordem, por contumácia em jogos ilícitos, e uma prisão… por estupro.

– Estupro? – O médico deu um salto.

– Estatutório *, com uma moça de…

– Chega! Eles não conseguiram sustentar a acusação no tribunal – diz McMurphy para o médico. – A garota se recusou a testemunhar.

– Com uma criança de 15 anos.

– Ela disse que tinha dezessete, doutor, e estava querendo mesmo.

– Um exame médico de corpo de delito na criança constatou penetração, penetração repetida, o auto declara…

– Estava querendo tanto, de verdade, que eu dei para costurar as calças para mantê-las fechadas.

– A criança se recusou a testemunhar, a despeito do que o médico descobriu. Parece que houve intimidação. O acusado deixou a cidade logo depois do julgamento.

– Puxa, cara, eu tinha de ir embora. Doutor, deixa que eu lhe conte – ele se inclinou para a frente com um cotovelo no joelho, baixando a voz para o médico do outro lado da sala. – Aquela pestinha danada teria acabado realmente me reduzindo a farrapos, quando completasse os 16 anos estabelecidos pela lei. Ela chegou a um ponto em que andava sapateando em cima de mim e me deixando exausto no chão.

A enfermeira fecha a pasta e a entrega ao médico além da porta.

– A nossa nova Admissão, Dr. Spivey – exatamente como se tivesse um homem dobradinho ali dentro daquele papel amarelo e pudesse passá-lo adiante para ser examinado. – Pensei em pô-lo ao corrente do dossiê dele mais tarde, hoje, mas uma vez que ele parece insistir em se afirmar na Sessão de Grupo, poderíamos muito bem cuidar do caso dele agora mesmo.

O médico tira os óculos de dentro do bolso do paletó, puxando o cordão, ajeita-os no nariz diante dos olhos. Estão meio inclinados para a direita, mas ele vira a cabeça para a esquerda e os equilibra. Está sorrindo de leve, enquanto vai folheando a pasta, tão deliciado com a maneira impudente de falar desse cara novo quanto o resto de nós, mas, exatamente como o resto de nós, tem cuidado para não se deixar descontrolar e rir. O médico fecha a pasta quando chega ao fim, e coloca os óculos de volta no bolso. Olha para onde McMurphy ainda está inclinado em sua direção, do outro lado da sala.

– O senhor não tem… parece… nenhuma outra história psiquiátrica, Sr. McMurry?

– McMurphy, doutor.

– Ah? Mas eu pensei… a enfermeira estava dizendo…

Ele torna a abrir a pasta, puxa os óculos, examina novamente o dossiê por mais um minuto antes de fechá-lo, e recoloca os óculos no bolso. – Sim. McMurphy. Está certo. Desculpe-me.

– Não tem importância, doutor. Foi a senhora ali quem começou, ela se enganou. Já conheci gente que era dada a isso. Eu tinha um tio que se chamava Hallahan, e numa ocasião ele andou com uma dona que ficava dando uma de que não conseguia lembrar-se do nome dele direito, e o ficava chamando de Hooligan só para chatear. Isso durou meses, antes que ele a fizesse parar. Também a fez parar de uma vez.

– Ah? Como foi que ele a fez parar? – perguntou o médico.

McMurphy sorriu e esfregou o nariz com o polegar.

– Ah, ah, agora isso eu não posso contar. Mantenho o método do tio Hallahan em segredo absoluto, o senhor sabe, para o caso de eu mesmo precisar utilizá-lo um dia. Disse isso direto para a enfermeira. Ela sorri de volta e ele olha para o médico.

– Agora, o que era que o senhor estava perguntando a respeito do meu dossiê, doutor?

– Sim. Eu estava querendo saber se o senhor teve alguma experiência psiquiátrica anterior. Análise, algum tempo passado numa outra instituição qualquer?

– Bem, contando prisões estaduais e municipais…

– Instituições psiquiátricas.

– Ah. Não, se o caso é esse. Esta é a minha primeira viagem. Mas eu sou louco, doutor. Juro que sou. Bem aqui… deixa que lhe mostre, aqui. Acho que aquele outro médico na colônia penal…

Ele se levanta, enfia o baralho no bolso da jaqueta e atravessa a sala para se inclinar por sobre o ombro do médico e folhear a pasta no seu colo. – Acho que ele escreveu alguma coisa aqui atrás em algum lugar…

– Sim? Eu deixei passar. Só um momento. – O médico torna a puxar os óculos, coloca-os e olha para onde McMurphy está apontando.

– Bem aqui, doutor. A enfermeira deixou essa parte de fora quando estava resumindo meu dossiê. Onde diz "O Sr. McMurphy demonstrou repetidamente…" Só quero ter certeza de que sou totalmente compreendido, doutor. "Repetidamente transportes emocionais exagerados que sugerem o possível diagnóstico de psicopata". Ele me disse que psicopata quer dizer que eu brigo e fo…, perdão, senhoras, quero dizer que eu sou, conforme ele diz, excessivamente zeloso em minhas relações sexuais. Doutor, isto é realmente sério?

Ele perguntou isso com uma tal expressão infantil de preocupação e interesse, espelhada por todo o seu rosto grande e rude, que o médico não conseguiu impedir-se de inclinar a cabeça e esconder um outro risinho silencioso no colarinho, e os óculos caíram-lhe do nariz certinho bem no meio do bolso. Agora, todos os Agudos estão sorrindo também, e até alguns dos Crônicos.

– Eu quero dizer esse excesso de zelo, doutor, o senhor alguma vez já teve algum problema com isso?

O médico esfrega os olhos.

– Não, Sr. McMurphy, devo admitir que não. Entretanto, estou interessado no fato de que o médico da colônia penal tenha acrescentado esta declaração: "Não afastar a possibilidade de que este homem pode estar simulando uma psicose para fugir ao trabalho penoso da colônia penal." – Ele ergueu o olhar para McMurphy. – E o que é que o senhor diz isso?

– Doutor – ele se levanta, alto e ereto, franze a testa e abre os braços, estendidos com franqueza e honestidade para o mundo inteiro. – Eu pareço ser um homem são?

O médico está, outra vez, fazendo tanta força para não rir que não consegue responder. McMurphy gira, afastando-se do médico, e faz a mesma pergunta à Chefona:

– Pareço?

Em vez de responder ela se levanta, toma a pasta de papel pardo do médico e torna a colocá-la de volta na cesta sob sua guarda. Em seguida, se senta.

– Talvez, doutor, o senhor devesse esclarecer o Sr. McMurry a respeito do protocolo destas Sessões de Grupo.

– Dona – diz McMurphy -, eu já lhe falei a respeito do meu tio Hallahan e da mulher que costumava fazer confusão com o nome dele?

Ela olha para ele durante muito tempo sem o seu sorriso característico. Tem a habilidade de transformar aquele sorriso em qualquer expressão que deseja utilizar sobre alguém, mas a aparência que ela lhe dá nada tem de diferente, é apenas uma expressão calculada e mecânica para servir aos seus propósitos. Finalmente diz:

– Desculpe-me Mack-Murph-y. – Vira-se novamente para o médico. – Agora, doutor, se quiser explicar…

O médico cruza as mãos e se recosta.

– Sim. Creio que o que devo fazer é explicar a teoria toda da nossa Comunidade Terapêutica, uma vez que estamos aqui. Embora eu normalmente deixe isso para mais tarde. Uma boa idéia, Srta. Ratched, ótima idéia.

– Certamente que a teoria também, doutor, mas o que eu tinha em mente era a regra de que os pacientes têm de permanecer sentados durante o curso da sessão.

– Sim. É claro. Depois explicarei a teoria. Sr. McMurphy, uma das primeiras coisas é que os pacientes permaneçam sentados durante a sessão. É a única forma, sabe, de mantermos a ordem.

– Claro, doutor. Eu só me levantei para lhe mostrar uma coisa no meu dossiê.

Ele vai até a sua cadeira, torna a se espreguiçar longamente, dá um grande bocejo e se remexe um pouco, como um cachorro se ajeitando para descansar. Quando se sente confortável, olha para o médico, esperando.

– Quanto à teoria … – O médico inspira profundamente, satisfeito.

– Ffffoda a mulher – diz Ruckly. McMurphy esconde a boca atrás das costas da mão e atira para o outro lado da sala, para Ruckly, num sussurro áspero:

– Mulher de quem?

A cabeça de Martini se levanta num salto, os olhos arregalados e fixos.

– É – diz ele. – Mulher de quem? Oh, ela? Sim, eu a vejo. Ééé.

– Eu daria um bocado para ter os olhos desse homem – diz McMurphy a respeito de Martini e depois nada mais diz durante o resto da sessão. Apenas fica sentado ali, observa e nada perde do que acontece, nem uma palavra que é dita. O médico fala sobre a sua teoria até que a Chefona finalmente decide que ele já gastou tempo suficiente e lhe pede que se cale para que possam continuar com o problema de Harding, e falam durante todo o resto da sessão a esse respeito.

McMurphy se inclina para frente na cadeira umas duas vezes durante a sessão, como se tivesse alguma coisa a dizer, mas pensa melhor e torna a se recostar. Há uma expressão de perplexidade em seu rosto. Alguma coisa estranha está acontecendo ali, está descobrindo. Não consegue dizer exatamente o que é. Como, por exemplo, a maneira como ninguém ri. Ora, ele achou que haveria com certeza uma risada geral quando perguntou a Ruckly: "Mulher de quem?" Mas não houve nem sinal de uma. O ar está comprimido para dentro das paredes, comprimido demais para se rir. Há alguma coisa estranha a respeito de um lugar onde os homens não se permitem descontrair-se e rir, alguma coisa estranha na maneira como todos se submetem àquela matrona velha, sorridente, de rosto cor de farinha, com o batom vermelho demais e os peitos exageradamente grandes. E ele pensa que vai só esperar um pouco para ver qual é a história nesse lugar novo, antes de fazer qualquer espécie de jogada. Esta é uma boa regra para um jogador: observar o jogo durante algum tempo antes de pegar uma mão.


Já ouvi aquela teoria da Comunidade Terapêutica um número suficiente de vezes para repeti-las de trás para frente e da frente para trás – como alguém tem de aprender a sair-se bem num grupo antes de estar apto a funcionar numa sociedade normal; como o grupo pode ajudar alguém, mostrando-lhe onde é que ele está fora do lugar; como é a sociedade que decide quem é são e quem não o é, assim, é preciso estar à altura. Todo esse negócio. Toda vez que recebemos um novo paciente na enfermaria, o médico mergulha na teoria com os dois pés; é praticamente a única ocasião em que ele assume o comando das coisas e dirige a sessão. Ele diz como o objetivo da Comunidade Terapêutica é uma enfermaria democrática, completamente dirigida pelos pacientes e pelos seus votos, trabalhando com o objetivo de fazer cidadãos válidos para voltarem para o Lado de Fora, para a rua. Qualquer problema, qualquer aborrecimento, qualquer coisa que você queira que se modifique, diz ele, deverá ser apresentada e exposta ao grupo e discutida, em vez de deixar que lhe envenene o espírito. Você também deverá sentir-se à vontade no seu ambiente a ponto de poder discutir livremente problemas emocionais diante dos pacientes e do pessoal. Converse, diz ele, discuta, confesse. E, se ouvir um amigo dizer alguma coisa durante a conversa cotidiana, então registre no diário, para que o pessoal veja. Isto não é, como o cinema diz, "alcagoetar", é ajudar o companheiro. Traga esses velhos pecados à tona, onde eles podem ser apagados ficando à vista de todos. E participe da Discussão do Grupo. Ajude a si mesmo e aos seus amigos a vasculhar os segredos do subconsciente. Não deve haver necessidade de segredos entre amigos.

Nossa intenção, ele normalmente chega ao fim dizendo isso, é fazer daqui um lugar tão parecido quanto possível com as suas comunidades de origem, livres e democráticas – um pequeno mundo do Lado de Dentro que é um protótipo em escala menor do grande mundo do Lado de Fora, onde um dia você ocupará novamente seu lugar.

Talvez ele tenha mais coisas a dizer, mas, quando atinge esse ponto, a Chefona geralmente o faz calar, e na calmaria o velho Pete se levanta e sacode aquela cabeça que parece uma panela de cobre amassada e diz a todo mundo como ele está cansado, e a enfermeira diz a alguém que vá fazê-lo calar a boca também, de forma que a sessão possa continuar, e geralmente Pete fica calado e a sessão continua.

Uma vez, só uma vez que eu me lembre, há uns quatro ou cinco anos, foi um pouco diferente. O médico acabara de dizer a sua arenga e a enfermeira tinha começado direto com: "Bem. Quem vai começar? Vamos deixar sair esses velhos segredos." E ela havia posto os Agudos em transe, ficando sentada ali em silêncio durante 20 minutos depois da pergunta, silenciosa como um despertador prestes a tocar, esperando que alguém começasse a contar alguma coisa a respeito de si mesmo. Os olhos dela corriam sobre eles de um lado para o outro, firmes como raios de luz girando num farol. A enfermaria ficou fechada em absoluto silêncio durante 20 longos minutos, com todos os pacientes atordoados nos lugares em que estavam. Depois que se haviam passado 20 minutos, ela olhou para o relógio e disse: "Devo concluir que não há um único homem entre vocês que tenha praticado algum ato que nunca admitiu?" Remexeu a cesta para apanhar o livro de anotações. "Será que vamos ter de rever história antiga?"

Aquilo disparou alguma coisa, alguma engenhosa acústica nas paredes, preparadas para entrar em funcionamento apenas diante do som daquelas palavras, saídas de sua boca. Os Agudos se enrijeceram. Suas bocas se abriram em uníssono. Os olhos dela, que corriam, se detiveram no primeiro homem ao longo da parede.

A boca se moveu. "Eu assaltei a caixa registradora de um posto de gasolina."

Ela passou para o homem seguinte.

"Eu tentei levar minha irmã mais moça para a cama."

Os olhos dela passaram para o homem seguinte; cada um saltou como um alvo de uma galeria de tiro.

"Eu… uma vez… queria levar meu irmão para a cama."

"Eu matei minha gata quando tinha seis anos. Oh, Deus me perdoe, eu a apedrejei até a morte e disse que o vizinho é que tinha feito isso."

"Eu menti quando disse que tinha tentado. Realmente trepei com minha irmã!"

"Eu também! Eu também!"

"E eu! E eu!"

Fora melhor do que ela havia sonhado. Estavam todos gritando para se superarem uns aos outros, indo adiante e mais adiante, sem jeito de parar, dizendo coisas que nunca mais lhes permitiriam se olharem de frente outra vez. A enfermeira assentindo a cada confissão e repetindo sim, sim, sim.

Então o velho Pete ficou de pé. "Estou cansado!", foi o que ele gritou, com um tom forte, zangado e metálico na voz que ninguém jamais ouvira antes.

Todo mundo se calou. Estavam como que envergonhados. Era como se, de repente, ele tivesse dito alguma coisa que era real e verdadeira e importante e aquilo tivesse coberto de vergonha toda aquela gritaria infantil. A Chefona ficou furiosa. Virou-se e o olhou com ódio, o sorriso escorrendo-lhe por sobre o queixo; ela havia conseguido que tudo estivesse tão bem.

"Alguém, por favor, vá atender ao pobre Sr. Bancini", dissera ela.

Dois ou três se levantaram. Tentaram acalmá-lo, deram-lhe palmadinhas no ombro. Mas Pete não ia deixar que o calassem. "Cansado! Cansado!", continuou.

Finalmente a enfermeira mandou um dos crioulos levá-lo para fora da enfermaria à força. Ela se esqueceu de que os crioulos não tinham nenhum controle sobre pessoas como Pete.

Pete foi um Crônico a vida inteira. Embora não tenha vindo para o hospital senão com mais de 50 anos, sempre fora um Crônico. A cabeça dele tem duas grandes mossas, uma de cada lado, onde o médico que assistia sua mãe na hora do parto lhe apertou o crânio, tentando puxá-lo para fora. Pete havia olhado para fora, primeiro, e visto toda a aparelhagem da sala de parto a sua espera e de alguma forma se dera conta da coisa para onde estava nascendo, e se agarrara a tudo que estava a seu alcance ali dentro para tentar impedir-se de nascer. O médico tateou lá dentro e o apanhou pela cabeça com um par de tenazes cegas e o puxou com um arranco, e concluiu que estava tudo bem. Mas a cabeça de Pete ainda era nova demais, ainda macia como gesso, e, quando endureceu, aquelas duas mossas deixadas pelas tenazes permaneceram. E aquilo fez com que ele fosse simples a ponto de precisar de todos os seus mais valentes esforços, concentração e força de vontade, para executar apenas as tarefas que eram fáceis para uma criança de seis anos.

Mas uma coisa boa – o fato de ser simples assim – o colocou fora do alcance das garras da Liga. Não foram capazes de transformá-lo numa ferida. Assim o deixaram arranjar um emprego simples numa ferrovia, onde tudo que tinha de fazer era sentar-se numa casinha de madeira bem longe, lá no interior, num desvio solitário, e balançar uma lanterna vermelha para os trens, se o desvio fosse para uma mão, e uma verde, se fosse para a outra, e uma amarela, se houvesse um trem em algum lugar mais adiante. E ele o fez, com a força condutora e a garra que eles não conseguiram espremer para fora de sua cabeça, sozinho naquele desvio. E nunca nenhum controle foi instalado.

É por isso que os crioulos não tinham nenhuma autoridade sobre ele. Mas o crioulo não pensou naquilo naquele momento, da mesma forma que a enfermeira não pensou quando mandou que Pete fosse levado para fora da enfermaria. O crioulo aproximou-se depressa e deu um puxão no braço de Pete na direção da porta, exatamente como a gente puxa as rédeas de um cavalo para virá-lo.

– É isso mesmo, Pete. Vam'bora pro dormitório. Você incomodando todo mundo.

Pete sacudiu o braço, soltando-se.

– Estou cansado - advertiu.

– Vam'bora, velho 'cê tá criando caso. Vamos lá, deitar na cama e ficar quieto como um garoto bem comportado.

– Cansado…

– Eu disse que você vai pro dormitório, velho!

O crioulo tornou a lhe dar um puxão no braço, e Pete parou de balançar a cabeça. Enrijeceu-se, endireitou o corpo e ficou firme, e seus olhos se desanuviaram de repente. Normalmente, os olhos de Pete estão semicerrados e embaciados, como se houvesse leite neles, mas daquela vez eles se abriram claros como néon azul. E a mão naquele braço que o crioulo estava segurando começou a inchar. Os funcionários e a maioria do resto dos pacientes estavam falando entre si, sem prestar atenção àquele velho e a sua velha história de que estava cansado, imaginando que ele seria acalmado como de hábito e que a sessão continuaria. Eles não viram a mão na extremidade daquele braço ir latejando e ficando cada vez maior, à medida que ele a abria e fechava. Eu fui o único que viu. Eu a vi inchar-se e se fechar apertado, flutuar diante dos meus olhos, tornar-se lisa – dura. Uma grande bola de ferro enferrujado na ponta de uma corrente. Olhei fixo para ela e esperei, enquanto o crioulo dava um outro puxão no braço de Pete em direção ao dormitório.

– Velho, eu disse que 'cê tem…

Ele viu a mão. Tentou recuar e escapar dela, dizendo "você é um bom garoto, Peter", mas era um pouco tarde demais. Pete balançava a bola tomando impulso desde o joelho. O crioulo foi achatado contra a parede e ficou pregado ali um instante, depois deslizou até o chão como se a parede ali estivesse escorregadia. Ouvi canos estourarem e curtos-circuitos por toda parte dentro da parede, e o estuque se partiu exatamente no formato em que ele bateu.

Os outros dois – o menor e outro grandão – ficaram parados, estupidificados. A enfermeira estalou os dedos, e eles despertaram de repente. Movimento imediato, deslizando pelo assoalho. O pequeno ao lado do grande como uma imagem refletida num espelho de diminuir. Estavam quase alcançando Pete quando de repente lhes ocorreu o que o outro crioulo devia ter sabido, que Pete não estava preso sob controle como o resto de nós, que ele não se ia importar nem um pouco só por eles lhe darem uma ordem ou um puxão no braço. Se fossem realmente levá-lo, teriam de levá-lo como se leva um urso ou um touro selvagem, e com um do trio fora de ação de cara no rodapé, os outros dois crioulos não quiseram arriscar-se.

Este pensamento ocorreu a ambos ao mesmo tempo, e eles pararam imóveis, o grande e o seu reflexo minúsculo, exatamente na mesma posição, o pé esquerdo na frente, a mão direita estendida, a meio caminho entre Pete e a Chefona. Aquela bola de ferro balançando na frente deles e aquela raiva branca como neve atrás deles, eles tremeram, soltaram fumaça e eu podia ouvir as engrenagens rangendo. Podia vê-los se contorcerem confusos, como máquinas aceleradas ao máximo e com os freios empurrados até o fundo.

Pete ficou de pé ali, no meio do assoalho, balançando a bola, para trás e para a frente, ao lado do corpo, todo inclinado por causa do peso. Todo mundo o observava, agora. Ele olhou do crioulo grande para o pequeno, e quando viu que não iriam chegar mais perto, virou-se para os pacientes.

– Vocês vêem… é um monte de besteiras – disse-lhes. – É tudo um monte de besteiras.

A Chefona se havia esgueirado da cadeira e se dirigia sorrateiramente para sua bolsa de vime encostada na porta.

– Sim, sim, Sr. Bancini – murmurou ela. – Agora, se apenas o senhor se acalmasse…

– É isso que tudo é, nada mais que um monte de besteiras. – A voz dele perdeu a força metálica e tornou-se tensa e desesperada como se ele não tivesse muito tempo para terminar o que tinha de dizer. – Vocês vêem, eu não posso fazer nada, não posso… não vêem? Eu nasci morto. Vocês não. Vocês não nasceram mortos. Ah h h h, tem sido tão difícil…

Ele começou a chorar. Não conseguia mais fazer as palavras saírem direitas; abria e fechava a boca para falar, mas não conseguia mais arrumar as palavras em frases. Sacudia a cabeça para desanuviá-la e pestanejou, olhando para os Agudos.

– Ah h h h, eu… digo a 'ocês … eu digo a vocês. Começou a afundar de novo, e a bola de ferro tornou a reduzir-se a uma mão. Ele a mantinha estendida semi-aberta a sua frente, como se estivesse oferecendo alguma coisa aos pacientes.

– Eu não posso fazer nada. Eu nasci um aborto. Ouvi tantos insultos que morri. Não posso fazer nada. Estou cansado. Estou desistindo de tentar. Vocês têm chances. Eu ouvi tantos insultos que nasci morto. Vocês conseguiram fácil. Eu nasci morto e a vida foi difícil. Estou cansado. Estou exausto de falar e de ficar em pé. Eu estive morto 55 anos.

A Chefona o apanhou de jeito pelo outro lado da sala, mesmo através das calças. Ela saltou para trás sem tirar a agulha depois da injeção, e aquilo ficou pendurado nas calças dele como um rabinho de vidro e aço, o velho Pete se afundando cada vez mais, não por causa da injeção, mas por causa do esforço; os últimos dois minutos o haviam exaurido completa e definitivamente, de uma vez por todas – era só olhar para ele que se via que estava acabado.

Assim, na realidade, não havia nenhuma necessidade da injeção; a cabeça dele já começara a balançar-se para trás e para a frente, seus olhos estavam embaciados. Quando a enfermeira voltou para apanhar a seringa, ele estava tão inclinado para frente que chorava direto para o chão, sem molhar o rosto, lágrimas manchando um trecho grande, à medida que balançava a cabeça para frente e para trás, pingando, pingando, formando um desenho regular no chão da enfermaria, como se ele as estivesse semeando. "Ah h h h", gemeu ele. Não se moveu quando ela tirou a agulha.

Ele voltara à vida durante, talvez, um minuto, para tentar dizer-nos alguma coisa, uma coisa que nenhum de nós se importava em ouvir ou compreender, e o esforço o havia exaurido até a última gota. Aquela injeção no quadril foi tão desperdiçada como se ela a tivesse dado num homem morto – sem coração para bombeá-la, sem veias para levá-la até a cabeça, sem cérebro lá em cima para ser mortificado pelo seu veneno. Teria dado no mesmo se ela a tivesse aplicado num cadáver velho e seco.

– Estou… cansado…

– Bem. Acho que, se vocês dois aí, rapazes, forem corajosos o suficiente, o Sr. Bancini irá para a cama como um bom rapaz.

– … mui… to cansado.

– E o ajudante Willians está voltando a si, Dr. Spivey. Cuide dele, sim. Isso. O relógio dele está quebrado e ele cortou o braço.

Pete nunca mais tentou nada de parecido com aquilo, e nunca tentará. Agora, quando começa a se agitar durante uma sessão e eles tentam calá-lo, ele sempre se cala. Ainda se levanta de tempos em tempos e balança a cabeça e nos diz o quanto está cansado, mas não é mais uma queixa ou uma desculpa ou uma advertência – ele já acabou com isso; é como um velho relógio que não diz mais as horas, mas também não pára; com os ponteiros deformados, estendidos, e o mostrador vazio, sem números, e a campainha de despertar, enferrujada e silenciosa, um velho relógio inútil, que apenas continua fazendo tique-taque e cuco, sem nada significar.


O grupo ainda está estraçalhando o pobre Harding quando soam as duas horas.

Às duas horas, o médico começa a se remexer na cadeira. As sessões são desagradáveis para ele, a menos que esteja dissertando sobre sua teoria; ele teria preferido passar o seu tempo lá embaixo, no consultório, fazendo gráficos. Ele se remexe um pouco e finalmente pigarreia, e a enfermeira consulta o relógio e nos diz que é para trazermos de volta as mesas e que retomaremos aquela discussão novamente amanhã, a uma hora. Os Agudos saem do transe, olham na direção de Harding por um instante. Seus rostos queimam de vergonha, como se tivessem acabado de despertar para o fato de que foram feitos de idiotas mais uma vez. Alguns vão para a sala da banheira, do outro lado do corredor, para buscar as mesas, alguns vagueiam até as prateleiras de revistas e demonstram muito interesse pelas velhas revistas Mc Call's, mas o que todos eles realmente estão fazendo é evitar Harding. Foram novamente manobrados para torturar um de seus amigos como se fosse um criminoso e todos eles fossem promotores, juizes e júri. Durante 45 minutos estiveram retalhando um homem em pedaços, quase que como se tivessem prazer nisso, atirando-lhe perguntas: Que é que ele pensa que há de errado com ele, que não consegue satisfazer a dama, por que insiste em dizer que ela nunca teve nada a ver com outro homem; como é que espera ficar bom se não responde com honestidade? - perguntas e insinuações, até que agora se sentem mal a respeito delas e não querem sentir-se pior ainda estando perto dele.

Os olhos de McMurphy acompanham tudo. Ele não sai da cadeira. Tem uma expressão perplexa de novo. Deixa-se ficar sentado na cadeira durante algum tempo, observando os Agudos, roçando o baralho para cima e para baixo nas pontas da barba vermelha até o queixo. Afinal, levanta-se da poltrona, boceja, espreguiça-se e coça a barriga com o canto de uma carta. Depois, enfia o baralho no bolso e vai andando até onde está Harding, sozinho, grudado de suor na cadeira.

McMurphy olha para Harding durante um minuto, em seguida lança a manopla sobre o encosto de uma cadeira de pau que estava por perto, vira-a ao contrário, de forma que o encosto fique de frente para Harding, e monta nela como montaria num cavalinho bem pequeno. Harding não se apercebe de nada. McMurphy remexe os bolsos até encontrar os cigarros, tira um e o acende; ele o segura diante de si, franze o cenho para a ponta, lambe o polegar e o indicador e ajeita a brasa ao seu gosto.

Cada um dos homens parece não se dar conta de que o outro está ali. Não sei nem dizer se Harding nota a presença de McMurphy. Harding está com os ombros bem encolhidos em torno de si, como asas verdes, e está sentado muito ereto perto da beirada da cadeira, com as mãos presas entre os joelhos. Olha fixo para a frente, cantarolando baixinho, tentando aparentar calma – mas ele está mascando as bochechas e isto lhe dá um estranho sorriso de caveira que nada tem de calmo.

McMurphy torna a enfiar o cigarro entre os dentes, cruza as mãos sobre o encosto e descansa o queixo sobre elas, fechando um olho por causa da fumaça. Olha para Harding com o outro olho por algum tempo, depois começa a falar, com o cigarro para cima e para baixo entre os lábios.

– Bem, diga lá, companheiro, é desse jeito que essas sessõezinhas costumam ser?

– Costumam ser? – O cantarolar de Harding pára. Não está mais mascando as bochechas, mas ainda olha fixo para frente, para além do ombro de McMurphy.

– Esse é o pro-cedimento habitual para essas festanças de Terapia de Grupo? Um bando de galinhas numa festa de bicadas?

A cabeça de Harding vira com um movimento brusco e seus olhos acham McMurphy, como se fosse a primeira vez que ele percebesse que alguém está sentado a sua frente. Forma-se uma ruga no meio de seu rosto, quando ele volta a morder o lado de dentro das bochechas, e isso faz com que pareça que está sorrindo. Joga os ombros para trás e encosta-se na cadeira, tentando parecer descontraído.

– Uma "festa de bicadas"? Acho que esse seu modo de falar, estranho e caipira, está além da minha compreensão, amigo. Não faço qualquer idéia de sobre o que você está falando.

– Ora, então deixe que eu lhe explique. – McMurphy levanta a voz; embora não olhe para os outros Agudos que o estão ouvindo, atrás dele, é a eles que se dirige. – O bando avista uma mancha de sangue numa galinlia qualquer e todos eles começam a bicá-la, sabe, até que estraçalham a galinha em pedaços, sangue e ossos e penas. Mas normalmente um par das do bando ganha também sua ferida na confusão, então é a vez delas. E mais algumas ficam machucadas e são bicadas até a morte, e mais outras e outras. Ah, uma festa de bicadas pode acabar com o bando inteiro numa questão de horas, companheiro, eu já vi. É uma cena um bocado assustadora. A única maneira de impedi-lo, com as galinhas, é meter antolhos nelas. De forma que não possam ver.

Harding enlaça os dedos longos em torno de um joelho e o puxa para junto do corpo, recostando-se na cadeira.

– Uma festa de bicadas. Esta é realmente uma analogia divertida, meu amigo.

– E é exatamente o que aquela sessão a que eu acabei de assistir me fez lembrar, companheiro, se você quer saber a verdade suja. Lembrou-me um bando de galinhas sujas.

– Assim, isso faz de mim a galinha com a mancha de sangue, amigo?

– Exato, companheiro.

Ainda estão sorrindo um para o outro, mas o tom de suas vozes tornou-se tão baixo e tenso que tenho de ir varrer mais perto deles para poder ouvir. Os outros Agudos também se estão aproximando.

– E quer saber de mais uma coisa, companheiro? Você quer saber quem dá aquela primeira bicada?

Harding espera que ele continue.

– É aquela enfermeira velha, é ela.

Um gemido de medo quebra o silêncio. Ouço a maquinaria nas paredes engrenar. Harding está enfrentando momentos de dificuldade para manter as mãos paradas, mas continua tentando aparentar calma.

– Assim – diz ele – é apenas isso, é estupidamente apenas isso. Você está na nossa enfermaria há seis horas e já simplificou todo o trabalho de Freud, Jung e Maxwell Jones e resumiu tudo numa única analogia: é uma "festa de bicadas".

– Não estou falando em Fred Yoong e Maxwell Jones, companheiro, só estou falando daquela sessãozinha piolhenta e o que aquela enfermeira e esses outros miseráveis fizeram com você. E fizeram dobrado.

– Fizeram comigo?

– É isso mesmo, fizeram. Fizeram com você em todas as oportunidades que tiveram. Fizeram com você do princípio ao fim. Você deve ter feito alguma coisa para ter esse monte de inimigos aqui neste lugar, companheiro, porque parece mesmo que há um monte aí que estava doido pra apanhar você.

– Ora, isto é incrível. Você ignora por completo, não leva em consideração e ignora por completo o fato de que o que eles estavam fazendo hoje era para o meu próprio bem? Que qualquer questão ou discussão levantada pela Srta. Ratched, ou pelo resto do pessoal, é feita exclusivamente por motivos terapêuticos? Você não deve ter ouvido uma palavra da teoria do Dr. Spivey sobre a Comunidade Terapêutica, ou se ouviu, não deve ter tido a educação necessária para compreendê-la. Estou desapontado. Eu havia concluído, pela nossa conversa desta manhã, que você era mais inteligente. Um cabeça-dura, analfabeto, talvez, certamente um fanfarrão caipira com tanta sensibilidade quanto um ganso, mas basicamente inteligente, não obstante tudo isso. Mas, embora eu costume ser observador e introspectivo, ainda cometo erros.

– Vá pro inferno, companheiro.

– Ah, sim; esqueci-me de acrescentar que também notei a sua brutalidade primitiva, esta manhã. Psicopata com tendências sádicas definidas, provavelmente motivadas por uma egomania irracional. Sim. Como você vê, todos esses talentos naturais o qualificam como um terapeuta competente e o tornam bastante capaz para criticar o procedimento da sessão da Srta. Ratched, a despeito do fato de que ela é uma enfermeira psiquiátrica, tida em alta conta, com 20 anos de experiência nesse campo. Sim, com o seu talento, amigo, você poderia fazer milagres subconscientes, acalmar o id dolorido e curar o superego ferido. Você provavelmente poderia obter a cura total da enfermaria inteira, com Vegetais e tudo, em seis meses rapidinhos… senhoras e senhores, ou o seu dinheiro de volta. Em vez de responder ao desafio, McMurphy continuou apenas a olhar para Harding. Finalmente pergunta numa voz controlada:

– E você realmente acredita que aquela baboseira que houve na sessão de hoje está obtendo alguma espécie de cura, fazendo algum tipo de bem?

– Que outra razão nós teríamos para nos submetermos a ela, amigo? O pessoal deseja a nossa cura tanto quanto nós mesmos. Eles não são monstros. A Srta. Ratched pode ser uma senhora de meia-idade bastante severa, mas não é uma espécie qualquer de monstro gigante do clã das galináceas, dada a arrancar nossos olhos sadicamente com bicadas. Você não pode realmente pensar isso a respeito dela, pode?

– Não, companheiro, isso não. Ela não está bicando os seus olhos. Não é isso que ela está bicando.

Harding recua, e vejo suas mãos começarem a se esgueirar para fora, do meio de seus joelhos, como aranhas brancas saindo do meio de dois galhos de árvore cobertos de limo, subindo pelos galhos até o ponto de encontro no tronco.

– Os nossos olhos não? – diz ele. – Diga então, por caridade, onde é que a Srta. Ratched nos está bicando, amigo?

McMurphy sorri.

– Ora, você não sabe, companheiro?

– Não, claro que não! Quero dizer, se você insis…

– Nos seus colhões, companheiro, nos seus queridos colhões.

As aranhas alcançam a junção no tronco e se acomodam ali, contorcendo-se. Harding tenta sorrir, mas seu rosto e os lábios estão tão pálidos que o sorriso se perde. Olha fixo para McMurphy. McMurphy tira o cigarro da boca e repete o que havia dito.

– Bem no seu saco. Não, aquela enfermeira não é nenhuma espécie de galinha-monstro, companheiro, o que ela é, é uma capadora de colhões. Já vi milhares delas, velhas e moças, homens e mulheres. Já vi essa espécie por todo o país. Gente que tenta fazer com que você fique fraco para que possam fazer com que você entre na linha, siga as regras deles, viva como eles querem que você viva. E a melhor maneira de fazer isso, de submeter as pessoas, é enfraquecendo-as, acertando porradas onde mais dói. Alguma vez você já levou uma joelhada no saco numa briga, companheiro? Faz você ficar paralisado e suar frio, não faz? Não há nada pior. Faz você ficar enjoado, tira tudo que é pingo de força que você tiver. Se você estiver enfrentando um cara que quer ganhar fazendo você ficar mais fraco, em vez de ele se fazer mais forte, então fique de olho no joelho dele, ele vai atacar é nos seus colhões. E é isso que aquela velha escrota está fazendo, está atacando os seus colhões.

O rosto de Harding ainda está sem cor, mas ele já conseguiu controlar as mãos; elas se movem com sacudidelas bruscas diante dele, tentando atirar para longe o que McMurphy estava dizendo:

– A nossa querida Srta. Ratched? O nosso doce, sorridente e terno anjo de misericórdia, mãe Ratched, uma capadora de colhões? Ora, amigo, isto é extremamente ridículo.

– Companheiro, não me venha com essa baboseira de mãezinha terna. Ela pode ser uma mãe, mas é grande como um celeiro e dura como uma faca de metal. Ela me enganou com aquela encenação de mãezinha gentil, durante talvez uns três minutos, quando entrei, hoje de manhã, mas não mais do que isso. Não creio que ela tenha realmente enganado algum de vocês por seis meses ou um ano. Que horror! Já vi um bocado de cadelas na minha vida, mas ela ganha de todas disparado.

– Uma cadela? Mas há um momento atrás era uma capadora de colhões, depois uma escrota… ou era uma galinha? As suas metáforas se contradizem.

– Vá pro inferno com essa papagaiada; ela é uma cadela e uma escrota e uma capadora de colhões, e não tente me enganar, você entende o que estou falando.

O rosto e as mãos de Harding agora se estão movendo mais depressa que nunca, num filme de gestos, sorrisos, caretas e trejeitos em alta velocidade. Quanto mais ele tenta parar, mais rápido correm. Quando ele deixa as mãos e o rosto se moverem à vontade e não tenta impedi-los, fluem e gesticulam de um jeito que é realmente bonito de se ver, mas, quando ele se preocupa e tenta controlá-los, se transforma numa marionete saltitante na execução de uma dança frenética. Tudo se está mexendo cada vez mais depressa, e a voz dele apressa-se para acompanhar o ritmo.

– Ora veja bem, meu amigo, Sr. McMurphy, meu camaradão psicopata, a nossa Srta. Ratched é um verdadeiro anjo de misericórdia e o porquê simplesmente todo mundo sabe. Ela é dedicada e generosa, trabalhando, sem visar a agradecimentos, para o bem de todos, dia após dia, durante cinco longos dias por semana. É preciso ter coração para isso, meu amigo, coração. De fato, fui informado por fontes, não tenho permissão para revelar quais as minhas fontes, mas poderia dizer que Martini está em contato com as mesmas pessoas uma boa parte do tempo, de que ela ainda presta maiores serviços à humanidade durante os fins de semana, num trabalho generoso e voluntário pela cidade. Reúne, por caridade, alimentos enlatados, queijo para completar a dieta, sabão, ajudando com eles um jovem casal qualquer, que esteja atravessando dificuldades financeiras. – As mãos dele saltam no ar, moldando o quadro que está descrevendo. – Ah, olhem: Ali está ela, a nossa enfermeira. Sua batida suave na porta. A cesta com fitas. O jovem casal radiante a ponto de ter perdido a fala. O marido boquiaberto, a esposa chorando abertamente. Ela examina a casa deles. Promete-lhes enviar dinheiro para… pó para limpeza, sim. Coloca a cesta no meio do assoalho. E quando o nosso anjo vai embora, atirando beijos, sorrindo etereamente, está tão intoxicado com o doce leite da bondade humana, que sua ação gerou no interior do seu grande busto, que está fora de si de generosidade. Fo-ra de si, está ouvindo? Parando na porta, ela chama a jovem esposa tímida para um lado e lhe oferece 20 dólares do seu dinheiro: "Vá, pobre criança infeliz e mal-alimentada, vá e compre um vestido decente. Eu compreendo que seu marido não tem condições para isso, mas tome aqui, aceite e vá." E o casal estará endividado para sempre com a sua generosidade.

Ele fala cada vez mais depressa, os músculos saltando para fora no pescoço. Quando pára de falar, a enfermaria está em absoluto silêncio. Nada ouço além de um leve girar ritmado, que imagino seja o gravador escondido em algum lugar, captando tudo.

Harding ergue os olhos e, notando que todo mundo está olhando para ele, esforça-se para rir. Sai de sua boca um som parecido com o de um prego ao ser arrancado de um tabuão de pinho verde com um pé-de-cabra: Iii – iii – iii. Ele não consegue parar. Torce as mãos e aperta os olhos ante o som horrível daquele guinchado. Mas não consegue parar. Fica mais alto e mais alto ainda, até que finalmente, com uma tomada de fôlego, ele deixa o rosto cair sobre as mãos que esperam.

– Oh, a cadela, a cadela, a cadela – murmura por entre os dentes.

McMurphy acende outro cigarro e o oferece a ele; Harding aceita sem dizer uma palavra. McMurphy ainda está observando o rosto de Harding, ali, na sua frente, com uma espécie de perplexidade, olhando para ele como se fosse o primeiro rosto humano em que jamais tivesse posto os olhos. Observa enquanto as contrações de Harding vão diminuindo e o rosto se levanta das mãos.

– Você está certo – diz Harding – a respeito de tudo. – Ele olha para os outros pacientes que o observam. – Ninguém ousou nunca abrir o jogo e dizê-lo antes, mas não há um único homem entre nós que não pense isso, que não sinta da mesma maneira que você, com relação a ela e a tudo mais, que não sinta isso em algum lugar, bem lá no fundo, na sua alma assustada.

McMurphy franze o cenho e pergunta:

– E o que é que há com aquele peido de médico? Ele pode até ser meio lento da cabeça, mas não tanto a ponto de não ser capaz de ver como ela assumiu o comando e o que está fazendo.

Harding dá uma longa tragada no cigarro e deixa a fumaça ir saindo à medida que vai fumando.

– O Doutor Spivey… é exatamente como todos nós, McMurphy, absolutamente consciente de sua incapacidade. É um coelhinho desesperado, assustado e inútil, totalmente incapaz de dirigir esta enfermaria sem a ajuda da nossa Srta. Ratched, e ele sabe disso. E, pior, ela sabe que ele sabe disso, e lhe recorda em todas as oportunidades que tem. Toda vez que ela descobre que ele deu um pequeno escorregão em seus deveres ou em, digamos, nos registros, você pode muito bem imaginá-la ali, esfregando o nariz dele na coisa.

– É isso mesmo – diz Cheswick, colocando-se ao lado de McMurphy. – Esfrega nossos narizes em nossos erros.

– Por que é que ele não a manda embora?

– Neste hospital – diz Harding – o médico não tem o poder de contratar e despedir. Esse poder é do supervisor, e o supervisor é uma mulher, uma velha e querida amiga da Srta. Ratched; elas foram enfermeiras do Exército, na mesma ocasião, na década de 30. Nós aqui somos vítimas de um matriarcado, amigo, e o médico é tão impotente contra ele como nós. Ele sabe que tudo que a Ratched tem de fazer é pegar aquele fone que você vê ali junto do cotovelo dela, chamar a supervisora e dizer, aah, digamos, que o médico parece estar fazendo um grande número de requisições de Demerol…

– Espere aí, Harding, não estou entendendo todo esse papo técnico.

– Demerol, meu amigo, é um preparado sintético, duas vezes mais forte para criar dependência que a heroína. É muito comum que os médicos sejam viciados nele.

– Aquele peidinho? Ele é um viciado em drogas?

– Tenho certeza de que não sei.

– Então como é que ela começa acusando-o de…

– Ah, você não está prestando atenção, meu amigo. Ela não acusa. Ela precisa apenas insinuar, insinuar qualquer coisa, entende? Não reparou hoje? Ela chama um homem até a Sala das Enfermeiras e lá o interroga sobre um Kleenex que foi encontrado debaixo da cama dele. Nada mais, apenas interrogar. E ele se sentirá como se estivesse mentindo para ela, qualquer que seja sua resposta. Se alega que estava limpando uma caneta, ela diz "eu sei, uma caneta", ou se ele afirma que estava resfriado, limpando o nariz, ela diz "eu sei, resfriado", e balança a cabecinha grisalha bem penteada e sorri o seu sorrisinho limpo e vira-se e volta para a Sala das Enfermeiras, deixa-o de pé ali, perguntando-se apenas para que diabo foi que ele usou o Kleenex. - Ele começa a tremer de novo e os ombros tornam a se dobrar em sua volta. – Não, ela não precisa acusar. Ela é um gênio em insinuações. Alguma vez você a ouviu, durante a nossa discussão hoje, alguma vez a ouviu me acusar de alguma coisa? No entanto, parece que fui acusado de uma porção de coisas, de ciúme e paranóia, de não ser homem bastante para satisfazer minha mulher, de ter relações com meus amigos homens, de segurar o cigarro de maneira efeminada, e até, lembro-me, fui acusado de nada ter entre as pernas, a não ser um chumaço de cabelos… e, por falar nisso, cabelos tão macios, louros e fofos! Capadora de colhões? Oh, você a está subestimando!

Harding cala-se de repente e se inclina para frente, para segurar as mãos de McMurphy entre as suas. Seu rosto está estranhamente inclinado, pontiagudo, cheio de mossas vermelhas e cinzentas, uma garrafa de vinho arrebentada.

– Este mundo… pertence aos fortes, meu amigo! – continua ele. – O ritual da nossa existência está baseado em os fortes ficarem mais fortes por devorarem os mais fracos. Nós temos de encarar isso. É mais do que certo que seja assim. Temos de aprender a aceitá-lo como uma lei da natureza. Os coelhos aceitam o seu papel no ritual e reconhecem o lobo como o forte. Para se defender, o coelho torna-se esperto, assustado, arredio e cava buracos e se esconde quando o lobo está por perto. E ele resiste, vai continuando. Conhece o seu lugar. É absolutamente certo que ele não irá desafiar o lobo para um combate. Ora, diga-me, isto seria inteligente? Seria?

Ele solta a mão de McMurphy, torna a se recostar e cruza as pernas, dá uma outra longa tragada no cigarro. Tira o cigarro da estreita fenda que é o seu sorriso, e o riso recomeça – Iii-iii-iii – como um prego sendo arrancado…

– Sr. McMurphy… meu amigo… não sou um frango, sou um coelho. O médico é um coelho. O Cheswick, ali, é um coelho. Billy Bibbit é um coelho. Todos nós aqui somos coelhos, com idades e graus variados, sal – ti – tando pelo nosso mundo de Walt Disney. Oh, não me compreenda mal, não estamos aqui dentro porque somos coelhos, seríamos coelhos onde quer que estivéssemos, estamos todos aqui porque não conseguimos nos ajustar ao fato de sermos coelhos. Nós precisamos de um bom lobo forte, como a enfermeira, para nos ensinar qual é o nosso lugar.

– Cara, você está falando como um idiota. Está querendo me dizer que vai ficar sentado sem se mexer e deixar uma velha qualquer de cabelo azulado convencer você de que você é um coelho?

– Não me convencer de que eu sou, não. Eu nasci coelho. Apenas olhe para mim. Eu só preciso da enfermeira para ficar contente com o meu papel.

– Você não é porra de coelho nenhum!

– Vê as orelhas? o nariz se arrebitando? o rabinho bonitinho de pompom?

– Você está falando como um doido…

– Como um doido? Que esperto.

– Merda, Harding, não quis dizer isso. Você não é louco, não desse jeito. Eu quis dizer, diabo, eu fiquei surpreendido de ver como todos vocês são sãos. Tanto quanto eu possa dizer, vocês não são mais loucos do que qualquer babaca médio que anda pelas ruas.

– Ah, sim, o babaca médio que anda pelas ruas.

– Mas, sabe, não loucos de maneira que os filmes pintam gente louca. Vocês só estão perturbados e… como se fossem…

– Como se fôssemos coelhos, não é isso?

– Coelhos, porra nenhuma! Não têm nada a ver com coelhos, droga.

– Sr. Bibbit, dê umas saltitadas por aí para o Sr. McMurphy ver. Sr. Cheswick, mostre a ele como o senhor é peludo.

Billy Bibbit e Cheswick se transformam em coelhos brancos agachados, bem diante dos meus olhos, mas estão envergonhados demais para fazer qualquer das coisas que Harding mandou.

– Ah, eles estão acanhados, Sr. McMurphy. Não é uma gracinha? Ou talvez os caras estejam pouco à vontade porque não ficaram do lado do amigo. Talvez eles estejam sentindo-se culpados pela maneira como, mais uma vez, eles a deixaram fazê-los suas vítimas, transformando-os em seus interrogadores. Alegrem-se, amigos, não têm razão alguma para se sentirem envergonhados. Está tudo como deve ser. Não faz parte do papel do coelho tomar partido do companheiro. Isso teria sido idiota. Não, vocês foram espertos, covardemente, mas espertos.

– Olha aqui, Harding – diz Cheswick.

– Não, não, Cheswick. Não fique irritado com a verdade.

– Olha aqui; já houve ocasiões em que eu disse sobre a velha Ratched as mesmas coisas que McMurphy está dizendo.

– Sim, mas você as disse bem baixinho e engoliu todas depois. Você também é um coelho, não tente fugir à verdade. É por isso que não guardo raiva de você pelas perguntas que me fez hoje, durante a sessão. Você só estava desempenhando seu papel. Se você tivesse estado na berlinda, ou você, Billy, ou você, Fredrickson, eu os teria atacado com a mesma crueldade com que vocês me atacaram. Não nos devemos envergonhar do nosso comportamento; é a maneira como nós os animaizinhos fomos criados para nos comportarmos.

McMurphy vira-se na cadeira e olha para os outros Agudos de cima a baixo.

__ Não tenho tanta certeza de que não devam estar envergonhados. Pessoalmente, achei que foi um bocado escroto o jeito como eles se passaram para o lado dela, contra você. Por um momento ali, pensei que estivesse de volta a um campo de prisioneiros da China comunista…

– Ora, por Deus, McMurphy, escute só um momento – diz Cheswick.

McMurphy vira-se e escuta, mas Cheswick não continua. Cheswick nunca continua; ele é um desses que fazem um grande estardalhaço de que vão liderar um ataque, gritam ao ataque e sapateiam para cima e para baixo durante um minuto, dão dois passos à frente e desistem. McMurphy olha para ele justo onde ele se está desequilibrando outra vez, depois de um começo de aparência tão firme, e lhe diz:

– Um diabo parecido mesmo com um campo de prisioneiros dos chineses.

Harding ergue as mãos pedindo paz.

– Oh, não, não, isso não está certo. Você não nos deve condenar, amigo. Não. Na realidade…

Eu vejo aquela febre sorrateira tornar a surgir nos olhos de Harding; penso que vai começar a rir de novo, mas em vez disso tira o cigarro da boca e aponta com ele para McMurphy – na sua mão, o cigarro parece com um de seus dedos, magros e brancos, soltando fumaça na ponta.

– … você também, Sr. McMurphy, com todo o seu estardalhaço de vaqueiro e o seu falatório de teatro mambembe, você também, sob essa sua superfície calejada, deve ter provavelmente uma alma de coelho tão fofa e esfiapada quanto nós.

– É, é isso aí. Não passo de um coelho. Diga. O que é que faz de mim um coelho, Harding? Minhas tendências psicopáticas? Minhas tendências à briga, ou minha mania de trepação? Deve ser minha mania de trepar, não deve? Todo aquele "foda-se e obrigado, madame". É aquele "foda-se, tome lá", é isso que provavelmente faz de mim um coelho…

– Espere, temo que você tenha levantado uma questão que requer certa reflexão. Os coelhos são conhecidos por essa determinada característica, não são? Na realidade, são famosos pela capacidade de reprodução. Sim. Hum. Mas de qualquer jeito, a questão que você levantou indica simplesmente que você é um coelho saudável, em bom funcionamento e bem-ajustado, enquanto que a maioria de nós aqui não tem nem a capacidade sexual para passar no exame de coelhos ajustados. Fracassos, nós somos… criaturinhas fracas, raquíticas, frágeis, de uma racinha fraca. Coelhos sans foda; uma idéia patética.

– Espere um minuto, você fica torcendo o que eu digo…

– Não. Você estava certo. Lembra-se de que foi você quem chamou a nossa atenção para o ponto em que a enfermeira estava concentrando suas bicadas? Aquilo era verdade. Não há um homem aqui que não esteja com medo de estar perdendo ou que já não tenha perdido o seu aparelho de foder. Nós, as cômicas criaturinhas, não podemos nem ao menos alcançar a maturidade no mundo dos coelhos, isso é que mostra o quanto somos fracos e incapazes. Nós somos… os coelhos, poder-se-ia dizer, do mundo dos coelhos!

Ele novamente se inclina para a frente, e aquele seu riso entrecortado e convulso que eu tenho estado esperando começa a levantar-se da sua boca, as mãos se debatendo, o rosto em contração.

– Harding! Feche essa maldita boca!

É como um tapa. Harding se cala, cortado e paralisado, com a boca ainda aberta num esgar forçado, as mãos oscilando numa nuvem azul de fumaça. Fica imóvel assim durante um segundo; então seus olhos se estreitam em pequenas fendas traiçoeiras e ele os deixa deslizar até McMurphy, fala tão suavemente que tenho de empurrar a vassoura até bem junto da cadeira dele para ouvir o que diz.

– Amigo… você… pode ser um lobo.

– Que merda, não sou nenhum lobo, nem você é nenhum coelho. Porra, nunca ouvi tanta…

– Você tem rosnado bem de lobo.

Com um ruído sibilante McMurphy deixa escapar a respiração, vira-se de Harding para o resto dos Agudos, de pé em volta deles.

– Olhem aqui, todos vocês. Que diabo é que há com vocês? Vocês não são tão loucos assim, de pensar que são uma espécie de animal.

– Não – diz Cheswick pondo-se ao lado de McMurphy. – Não, por Deus, eu não. Não sou nenhum coelho.

– É isso aí, Cheswick. E o resto de vocês, vamos deixar isso pra lá. Olhem só pra vocês mesmos, convencendo-se, com papo furado, a sair correndo de pavor de uma droga de uma mulher de 50 anos. De qualquer maneira, o que é que ela pode fazer com vocês?

– Sim, o quê? – diz Cheswick e lança um olhar desafiante para os outros.

– Ela não pode mandar chicotear vocês. Não pode queimar vocês com ferros em brasa. Não pode amarrar vocês à roda *. Existem leis sobre esse tipo de coisa, hoje em dia; não estamos na Idade Média. Não há uma coisa no mundo que ela possa…

– Você v-v-viu o que ela p-pode fazer conosco! Na s-s-sessão hoje. – Vejo que Billy Bibbit deixara de ser coelho. Ele se inclina para McMurphy, tentando continuar, a boca molhada de cuspe e o rosto vermelho. Então ele se vira e se afasta. – Ah, n-n-n-não adianta. Eu só devia me m-m-matar.

McMurphy grita para as suas costas.

– Hoje? O que foi que eu vi hoje na sessão? Porra, que diabo, tudo que eu vi hoje foi ela fazer um par de perguntas e, por falar nisso, perguntas agradáveis e simples. Perguntas não quebram ossos, não são varas e pedras.

Billy torna a se virar.

– Mas a ma-ma-maneira como ela pergunta…

– Você não é obrigado a responder, é?

– Se você n – não responde ela apenas sorri e t – t – toma nota naquele livrinho dela e então ela… oh… inferno!

Scanlon aproxima-se e fica ao lado de Billy.

– Se você não responder às perguntas dela, Mack, você as admite apenas por ter ficado em silêncio. É desse jeito que esses bandidos no governo nos apanham. É impossível escapar. A única coisa a fazer é explodir o treco inteiro, arrancar tudo da face da droga da Terra… explodir tudo.

– Bem, quando ela faz uma dessas, por que não pedem que se levante e vá para o inferno?

– Sim – diz Cheswick, sacudindo o punho. – Dizer a ela para se levantar e ir para o inferno.

– Então, o que, Mack? Ela apenas responderia direto com "por que é que o senhor parece estar tão a – borre – ci -do com esta pergunta em par – ti – cu – lar, paciente McMurphy?"

– E daí diz a ela pra ir pro inferno de novo. Digam a todos eles que vão para o inferno. Eles ainda não machucaram vocês.

Os Agudos se estão juntando mais em volta dele. Fredrickson responde dessa vez.

– O.K., você diz isso a ela e é posto na lista como Potencialmente Agressivo e mandado lá para cima, para a enfermaria dos Perturbados. Eu fiz isso. Três vezes. Aqueles pobres patetas lá de cima não saem da enfermaria nem para ir ao cinema sábado de tarde. Eles não têm nem uma TV.

– E, meu amigo, se continuar a demonstrar tendências tão hostis, tais como mandar as pessoas para o inferno, acaba sendo escalado para ir para a Sala de Choque, talvez até coisas piores, uma operação, uma…

– Merda, Harding, já disse que não entendo essa conversa.

– A Sala de Choque, Sr. McMurphy, é jargão utilizado para dizer aparelho do TE, Terapia de Eletrochoque. Um engenho do qual se poderia dizer que faz o trabalho dos comprimidos para dormir, de cadeira elétrica e da roda de tortura. É um procedimentozinho hábil, simples, rápido, quase indolor, visto que é tão rápido, mas a gente nunca quer repetir a dose. Nunca.

– Que é que essa coisa faz?

– Você é amarrado sobre uma mesa, ironicamente em forma de uma cruz, com uma coroa de fusos elétricos em lugar de espinhos. Você é tocado de cada lado da cabeça com fios. Zap! O correspondente a cinco centavos de eletricidade atravessa o cérebro e administram-lhe conjuntamente a terapia e uma punição pelo seu comportamento hostil de "vá para o inferno", além de ser posto fora das vistas de todo mundo de seis horas a três dias, dependendo do indivíduo. Mesmo quando você recobra a consciência, fica num estado de desorientação durante dias. Fica incapaz de pensar coerentemente. Não consegue lembrar-se das coisas. Uma certa repetição desses tratamentos poderia fazer um homem ficar igualzinho ao Sr. Ellis, que você vê ali encostado na parede. Um idiota sonâmbulo, molhador de calças aos 35 anos. Ou transformá-lo num organismo sem cérebro que come e elimina e berra "foda a mulher", como Ruckly. Ou olhe para o chefe Vassoura agarrado ao seu apelido aí a seu lado.

Harding aponta o cigarro para mim, tarde demais para eu recuar. Faço de conta que não vi. Continuo varrendo. Ele prossegue:

– Ouvi dizer que o chefe, há anos, recebeu mais de 200 tratamentos de choque, quando eles estavam realmente em voga. Imagine o que isso poderia fazer com uma mente que já estava meio doente. Olhe para ele: um limpador gigante. Aí está o seu Americano em Extinção, uma máquina de varrer de dois metros, com medo da própria sombra. É com isso, meu amigo, que podemos ser ameaçados.

McMurphy olha para mim por um instante, então torna a voltar-se para Harding.

– Cara, me diz uma coisa, como é que vocês concordam com isso? E essa merda toda de enfermaria democrática de que o médico estava me falando. Por que não fazem uma votação?

Harding sorri para ele e dá uma outra tragada no cigarro.

– Votar o que, meu amigo? Votar que a enfermeira não possa mais fazer perguntas nas sessões? Votar que ela não deverá mais nos olhar de uma certa maneira? Diga-me você, Sr. McMurphy, em que é que devemos votar?

– Diabo, pouco me importa. Votar em qualquer coisa. Vocês não vêem que precisam fazer alguma coisa para mostrar que ainda têm um pouco de coragem? Não vêem que não podem deixá-la assumir o controle por completo? Olhem para vocês mesmos: vocês dizem que o chefe tem medo da própria sombra, mas eu nunca vi na minha vida um bando que me parecesse tão apavorado quanto vocês.

– Eu não! – diz Cheswick.

– Talvez você não, companheiro, mas o resto tem medo até de abrir a guarda e rir. Sabe, esta foi a primeira coisa que me chamou atenção com relação a este lugar, ninguém rindo. Eu não ouvi uma única risada de verdade desde que entrei por aquela porta, sabe disso? Cara, se você perde a sua risada você perde o seu ponto de apoio. Se um homem vai e deixa uma mulher derrubá-lo até que ele não consegue mais rir, então ele perde uma das maiores defesas que tem do seu lado. Logo de cara a primeira coisa que acontece é que ele começa a pensar que ela é mais forte que ele…

– Ah! Acho que o meu amigo está começando a compreender, companheiros coelhos. Diga-me, Sr. McMurphy, como é que se faz para se mostrar a uma mulher que é chefe, eu quero dizer de uma outra maneira que não seja só rindo, como é que se mostra a ela quem é o rei da montanha? Um homem como você deveria ser capaz de nos dizer isso. Não se sai por aí dando tapas nela, não é? Não, senão ela chama a polícia. Não se perde as estribeiras e sai por aí berrando com ela; assim ela vence tentando aplacar o seu garotão zangado: "Será que o meu homenzinho está ficando aborrecido? Ahhhhh?" Alguma vez você já tentou manter uma fachada digna e zangada diante de tal consolo? Você vê, meu amigo, é mais ou menos como você afirmou: o homem não tem senão uma arma verdadeiramente eficaz contra a força irresistível do matriarcado moderno, mas certamente que não é o riso. Uma arma, e cada ano que se passa nessa sociedade obsessiva, e pesquisada em termos de motivação, mais e mais as pessoas estão descobrindo como tornar aquela arma inútil e como conquistar aqueles que foram até então os conquistadores…

– Deus, Harding, mas pare com isso – diz McMurphy.

– E você acha que, com todos esses seus celebrados poderes psicopáticos, poderia utilizar a sua arma contra a nossa campeã? Acha que poderia usá-la contra a Srta. Ratched, McMurphy? Alguma vez?

E uma de suas mãos faz um gesto largo, na direção do compartimento. As cabeças de todo mundo se viram para olhar. Ela está ali dentro, olhando para fora pela janela, o gravador escondido em algum lugar que não se pode ver, já planejando como encaixar o assunto na programação.

A enfermeira vê todo mundo a olhar para ela, e move a cabeça num cumprimento e todos eles se viram. McMurphy tira o gorro e passa as mãos pelo cabelo vermelho. Agora todo mundo está olhando para ele; esperam que dê uma resposta e ele sabe. Sente que de alguma forma foi apanhado numa armadilha. Torna a enfiar o gorro e coça as cicatrizes dos pontos no nariz.

– Puxa, se você está querendo dizer que eu acho que seria capaz de meter o pau naquela velha escrota, não, não acredito que fosse capaz…

– Ela não é assim tão sem graça, McMurphy. O rosto dela até que é bem bonito e bem conservado. E a despeito de todas as tentativas para escondê-los, naquela beca assexuada, ainda se pode perceber a evidência de uns seios realmente extraordinários. Ela deve ter sido uma mulher bem bonita quando jovem. Entretanto, apenas para argumentar, você seria capaz de se meter nela mesmo se ela não fosse velha, se ela fosse jovem e tivesse a beleza de uma Helena?

– Não conheço Helena, mas já entendi aonde é que você quer chegar. E, por Deus, que você está certo. Eu não conseguiria enfiar por aquela cara velha e gelada ali, nem que ela tivesse a beleza da Marilyn Monroe.

– Pronto, é isso aí. Ela ganhou.

É isso aí. Harding torna a se recostar e todo mundo espera para ver o que McMurphy vai dizer em seguida. McMurphy se dá conta de que está encurralado contra a parede. Examina os rostos por um minuto, então encolhe os ombros e se levanta da cadeira.

– Bem, que diabo, não é a minha pele que está sendo esfolada.

– É verdade, não é da sua pele que se trata.

– E, porra, também não quero ter um velho diabo de uma enfermeira atrás de mim com 3 mil volts. Não quando estou fazendo a jogada apenas pelo espírito de aventura.

– Não. Você tem razão.

Harding ganhou a discussão, mas ninguém parece estar contente. McMurphy enfia os polegares nos bolsos e tenta fazer uma graça.

– Não, senhor, eu nunca ouvi ninguém oferecer um prêmio de 20 dólares para alguém foder uma capadora de colhões.

Todo mundo sorri disso junto com ele, mas não estão felizes. Estou satisfeito porque, afinal, McMurphy vai ser esperto e não vai acabar metendo-se numa parada que não tem condições de controlar, mas eu sei como é que os outros se sentiam, eu também não estou muito feliz. McMurphy acende outro cigarro. Ninguém se moveu ainda. Eles estão todos de pé ali, sorrindo, mas inquietos. McMurphy coça o nariz mais uma vez e desvia o olhar daquela porção de rostos pendurados a sua volta, torna a olhar para a enfermeira e começa a mordiscar o lábio.

– Mas você não disse… que ela não manda a gente para aquela outra enfermaria a menos que apanhe a gente de jeito? A menos que ela consiga quebrar a gente de alguma maneira e a gente acabe xingando ou arrebentando uma janela ou coisa parecida?

– A menos que se faça alguma coisa assim.

– Mas você tem mesmo certeza disso? Porque começando a ter os primeiros sinais de uma idéia de como tomar um dinheirinho de vocês aqui. Mas não quero bancar o bobo nessa história. Demorei um bocado e passei por poucas e boas para sair daquele outro buraco; não quero dar uma de pular da frigideira e cair no fogo.

– Tenho certeza absoluta. Ela nada pode fazer, a menos que você faça alguma coisa que mereça honestamente a Enfermaria dos Perturbados, ou o TE. Se você for suficientemente duro para não deixar-se apanhar, ela nada poderá fazer.

– Assim, se eu me comportar e não der porrada nela…

– Nem der porrada num dos ajudantes.

– Nem der porrada num dos ajudantes, nem estourar a banca de alguma maneira por aqui, ela não pode fazer nada comigo?

– Estas são as regras de acordo com as quais nós jogamos aqui. É claro que ela sempre ganha, meu amigo, sempre. Ela própria é invulnerável e, com um fator tempo trabalhando a seu favor, acaba conseguindo quebrar as defesas de cada um. É por isso que o hospital a considera sua melhor enfermeira e lhe dá tanta autoridade; ela é mestra em forçar a libido trêmula a se expor…

– Para o inferno com tudo isso. O que quero saber é se é seguro para mim tentar derrotá-la no seu próprio jogo? Se eu ficar bonzinho como um cordeiro quando estiver com ela, não importa o que eu in – sinue, ela não vai ter um ataque e mandar me eletrocutar?

– Você está em segurança enquanto mantiver o controle. Desde que você não perca a cabeça e não dê a ela razão verdadeira para requerer o internamento na Enfermaria dos Perturbados, ou os benefícios terapêuticos do Choque Elétrico, você está em segurança. Mas isto requer antes, e mais do que tudo, manter a cabeça fria. E você? Com o seu cabelo de fogo e a sua folha de serviços negra? Por que enganar a si mesmo?

– O.K. Está bem. – McMurphy esfrega as palmas das mãos. – É o seguinte que eu estou pensando: vocês parecem supor que têm aqui a campeã da verdade, não é? Quase a… do que foi que você a chamou… claro, mulher invulnerável. O que eu quero saber é quantos de vocês têm certeza absoluta mesmo, a ponto de apostarem nela?

– Certeza absoluta mesmo, a ponto…

– Exatamente o que eu disse: algum de vocês espertinhos aí está disposto a apostar cinco pratas comigo como sou capaz de levar a melhor com aquela mulher… antes que a semana termine… sem que ela consiga me pegar? Uma semana, e se eu não conseguir levá-la a um ponto onde ela não saiba se dá ou se desce, terá ganho a aposta.

– Você está apostando nisso. – Cheswick começa a pular de um pé para outro, esfregando as mãos como McMurphy esfrega as dele.

– Você está absolutamente certo.

Harding e alguns dos outros dizem que não entenderam.

– É bastante simples. Nada há de nobre ou de complicado. Eu gosto de jogar. E gosto de ganhar. E acho que posso ganhar esta aposta, O.K.? Eu cheguei a um ponto em Pendleton que os caras não arriscavam mais nem um centavo comigo, porque eu só sabia ganhar. Puxa, uma das razões principais por que arranjei de ser mandado para cá foi porque eu precisava de uns otários novos. Vou dizer-lhes uma coisa: descobri alguns detalhes a respeito deste lugar, antes de vir para cá. Mais ou menos a metade de vocês recebe de indenização uns 300 ou 400 por mês e não têm nada no mundo para fazer com o dinheiro, além de deixá-lo juntar poeira. Achei que podia tirar vantagem disso e talvez tornar a vida de todos nós um pouco mais rica. Estou começando com vocês do mesmo ponto. Sou um jogador e não estou habituado a perder. E nunca vi uma mulher que eu achasse que fosse mais homem do que eu, não importa se fico teso por ela ou não. Ela pode ter o fator tempo, mas eu já tenho a meu favor uma lista de vitórias bem grande. – Ele tira o gorro, o faz girar no dedo, atira para trás e o apanha nas costas com a outra mão, certinho, certinho. – Outra coisa: estou aqui neste lugar porque foi assim que planejei, pura e simplesmente porque é um lugar melhor do que uma colônia penal. Tanto quanto posso dizer, não sou nenhum maluco, nem nunca soube que fosse. A sua enfermeira não sabe disso; ela não vai estar preparada para ver alguém aproximar-se dela com uma cuca super-rápida como a que eu obviamente tenho. Essas coisas me dão uma agudeza de que eu gosto. Assim, estou dizendo cinco paus pra cada um de vocês que queira se eu não conseguir fazer um bom revertério na cuca daquela enfermeira numa semana.

– Ainda não tenho certeza de que eu…

– É isso aí, uma abelha atrás da orelha dela, uma pulga nas calcinhas dela. Apanhá-la de jeito. Fundir a cuca dela a tal ponto que ela se desmanche toda naquelas costurinhas bem feitas e mostre, apenas uma vez, que não é tão invencível como vocês pensam. Uma semana. Vou deixar que vocês sejam os juízes para decidir se ganhei ou não.

Harding pega um lápis e escreve alguma coisa no bloco de pinocle.

– Tome. Um vale de 10 dólares daquele dinheiro que eu tenho juntando poeira em meu nome, nos Fundos. Vale duas vezes isso para mim, meu amigo, ver esse milagre improvável realizar-se.

McMurphy olha para o papel e o dobra.

– Está valendo para mais algum outro de vocês aí, caras? - Os outros Agudos agora se enfileiram, esperando sua vez para usar o bloco. Ele pega os pedaços de papel quando acabam, segurando-os todos juntos na palma da mão sob o grande polegar rijo. Vejo os pedaços de papel se irem amontoando na mão dele. Ele os examina.

– Vocês confiam em mim o suficiente para ficar com o dinheiro das apostas, companheiros?

– Eu acho que podemos ficar tranqüilos quanto a isso – diz Harding. – Você não irá a lugar nenhum durante algum tempo.


* * *

Num natal, à meia-noite em ponto, no hospital antigo, a porta da enfermaria se abre com estardalhaço, entra um homem gordo de barba, os olhos avermelhados pelo frio, e o nariz da cor de uma cereja. Os crioulos o encurralam num canto do corredor com lanternas. Vejo que está todo emaranhado nos enfeites que o Relações-Públicas prendeu com cordões por todos os lados, e está cambaleando na escuridão. Está cobrindo os olhos vermelhos por causa das lanternas e chupando o bigode.

– Oh, oh, oh – diz ele. – Gostaria de ficar, mas tenho de ir indo. Um programa muito apertado, sabe? Tenho de ir indo.

Os crioulos entram, com as lanternas. Eles o mantiveram conosco durante seis anos, antes de lhe darem alta, bem barbeado e magro como um poste.


A Chefona é capaz de regular o relógio da parede para andar na velocidade que ela quiser, é só virar um daqueles mostradores na porta de aço; quando ela mete na cabeça a idéia de apressar as coisas, aumenta a velocidade, e aquelas mãos batem em torno daquele disco como as traves numa roda. A cena nas janelas de tela de cinema sofrem mudanças rápidas de luz para mostrar a manhã, o meio-dia e a noite – aparecem e desaparecem em lampejos, furiosamente, com dia e escuridão, e todo mundo se apressa loucamente para acompanhar aquela falsa passagem do tempo; uma confusão horrível de fazer barbas, tomar café e consultas e almoços e remédios e 10 minutos de noite, de forma que você mal consegue fechar os olhos antes que a luz do dormitório esteja berrando na sua cara para se levantar e começar a confusão de novo, ir assim como um filho da puta, executando o esquema inteiro de um dia talvez 20 vezes por hora, até que a Chefona vê todo mundo ali a ponto de estourar, e ela reduz a aceleração, diminui o ritmo no botão do relógio como se fosse uma criança brincando com uma máquina de projeção de cinema, e finalmente tivesse ficado cansada de ver o filme correr a uma velocidade dez vezes maior que a normal, tivesse ficado entediada com toda aquela agitação idiota e aquela fala guinchada de inseto e fizesse tudo voltar ao normal.

Ela costuma aumentar a velocidade desse jeito em dias em que, digamos, você tem alguém que vem fazer uma visita, ou quando o VFW * traz de Portland um espetáculo para homens – em ocasiões como essas, ocasiões que você gostaria de segurar e fazer com que durassem mais. É aí que ela apressa as coisas.

Mas de maneira geral é o contrário, o jeito devagar. Ela vira aquele botão de controle para ponto morto e congela o sol ali na tela de forma que ele não se move nem um milímetro durante semanas, assim como nem uma folha estremece numa árvore, nem um fiapo de grama no pasto. Os ponteiros do relógio ficam parados em dois minutos para as três e ela é capaz de deixá-los ficar ali até que nós nos enferrujemos. Você se senta bem duro e não pode se mexer, não pode andar ou fazer movimentos para aliviar a tensão de estar sentado, não pode engolir e não pode respirar. A única coisa que você pode mover são os olhos e nada há para ver senão Agudos petrificados do outro lado da sala, um esperando que o outro decida de quem é a vez de jogar. O velho Crônico ao meu lado está morto há seis dias e está apodrecendo na cadeira. E em vez de neblina, às vezes ela deixa entrar através dos buracos de ventilação um gás químico muito claro, e a enfermaria inteira fica sólida quando o gás se transforma em plástico.

Deus sabe quanto tempo ficamos assim.

Então, gradualmente ela vai girando o botão para aumentar um grau, e isso ainda é pior. Eu posso suportar ficar absolutamente imóvel muito melhor do que agüentar aquela mão lenta e melada de Scanlon, do outro lado da sala, levando três dias para baixar uma carta. Meus pulmões sugam o ar plástico espesso como se o estivesse absorvendo através de um buraco de alfinete. Tento ir até a latrina e me sinto enterrado sob uma tonelada de areia, espremendo a minha bexiga até que o pijama dá um esguicho e zumbe pela minha testa.

Esforço-me com todos os músculos e ossos para sair daquela cadeira e ir até a latrina, faço força até que os meus braços e pernas ficam todos trêmulos e os meus dentes doem. Eu puxo, puxo e tudo que consigo é talvez sair alguns centímetros do assento de couro. Assim, eu caio de volta e desisto e deixo a urina escorrer, quente, pela minha perna esquerda disparando alarmes humilhantes, sirenas, luzes, todo mundo se levantando, gritando e correndo para todos os lados e os crioulos empurrando o amontoado de gente para um lado e para o outro, à medida que os dois vêm depressa direto para mim, sacudindo esfregões horríveis de fios de cobre molhado, estalando e soltando fagulhas ao entrar em contato com a água.

Acho que a única ocasião em que temos escapatória para esse controle de tempo é na neblina; então o tempo nada significa. Está perdido na neblina, como todo o resto. (Eles não puseram neblina de verdade hoje, por aqui, o dia inteiro, não desde que McMurphy chegou. Aposto que ele berraria como um touro se eles pusessem a neblina.)

Quando mais nada está acontecendo, normalmente você ainda tem de lutar com a neblina e com o controle de tempo, mas hoje aconteceu uma coisa: não puseram nenhuma dessas coisas para funcionar o dia inteiro, desde a hora de fazer a barba. Hoje de tarde tudo se está encaixando. Quando o pessoal do outro turno começa a trabalhar o relógio diz que são quatro e meia, como deveria ser. A Chefona dispensa os crioulos e faz uma última inspeção pela enfermaria; Tira um grande alfinete de chapéu do coque azul-metálico preso na parte de trás da cabeça, tira a touca branca e a coloca cuidadosamente numa caixa de papelão (naquela caixa há bolinhas de naftalina), e torna a enfiar o alfinete no cabelo.

Atrás do vidro eu a vejo dar boa noite a todo mundo. Ela entrega um pedaço de papel à enfermeirinha do outro turno que tem um sinal de nascença; então a mão dela se estende para o painel de controles na porta de aço, liga o microfone: "Boa noite, rapazes. Comportem-se." E liga a música ainda mais alto que antes. Ela esfrega a parte de dentro do punho na janela; um olhar de desagrado mostra ao crioulo gordo que acabou de entrar em serviço que é melhor ele começar a limpá-la, e, antes que ela tenha acabado de trancar a porta da ala atrás de si, ele está limpando o vidro com uma toalha de papel.

A maquinaria nas paredes assovia, suspira, cai num ritmo mais lento.

Então, até a noite, comemos, tomamos um banho de chuveiro e voltamos para sentar na enfermaria. O velho Detonador, o mais velho dos Vegetais, está apertando o estômago e gemendo. George (os crioulos o chamam de Dum-Dum) está lavando as mãos no bebedouro. Os Agudos se sentam e jogam cartas e se esforçam para conseguir uma imagem do nosso aparelho de TV, carregando o aparelho para todos os lugares até onde o fio chega, em busca de uma boa onda de emissão.

Os alto-falantes no teto ainda estão tocando música. Ela não é transmitida por uma emissão radiofônica, é por isso que a maquinaria não interfere. A música vem de uma longa fita da Sala das Enfermeiras, uma fita que todos nós conhecemos tão bem, de cor, que nenhum de nós a ouve conscientemente, exceto um cara novo como McMurphy. Ele ainda não se acostumou com ela. Está jogando vinte-e-um, valendo cigarros, e o alto-falante está bem em cima da mesa de jogo. Puxou tanto o gorro para a frente que tem de inclinar a cabeça para trás e espiar por baixo da aba para ver as cartas. Mantém um cigarro entre os dentes e fala fazendo-o girar como um leiloeiro que eu vi uma vez, num leilão de gado, em The Dalles.

– … vam'bora, vam'bora - diz alto e depressa – estou esperando por vocês, seus trouxas, é pegar ou deixar. Vai nessa, é? Bom, bom, com um rei aberto o rapaz está querendo acertar. Quem sabe? Já vou lá e que pena, uma dama para o valete! Já vou cuidar de você, Scanlon, mas gostaria que um idiota qualquer naquele bordel das enfermeiras desligasse essa porra dessa música. Que droga! Essa coisa fica tocando noite e dia é, Harding? Nunca ouvi uma porcaria tão irritante na minha vida.

Harding lança-lhe um olhar de incompreensão.

– A que barulho, exatamente, o senhor se está referindo, Sr. McMurphy?

– Esse maldito rádio, cara, está tocando sem parar desde a hora em que eu entrei hoje de manhã. E não me venha com papagaiadas de que não está ouvindo.

Harding levanta a orelha para o teto.

– Ah, sim, a música. Sim, acho que ouviremos se nos concentrarmos mas também a gente pode ouvir o próprio coração batendo, se se concentrar bastante. – Ele sorri para McMurphy. – Sabe, é uma gravação que está tocando aí, meu amigo. Nós raramente ouvimos rádio. As notícias do mundo poderiam não ser terapêuticas. E todos nós já ouvimos essa gravação tantas vezes que agora simplesmente escapa a nossa audição, do mesmo jeito que o ruído de uma cachoeira logo se torna um som inaudível para aqueles que vivem perto dela. Acha que se vivesse perto de uma cachoeira ouviria o som dela durante muito tempo?

(Eu ainda ouço o som das cachoeiras em Columbia, eu sempre ouvirei – sempre -, ouço o golpe de Charley Barriga de Urso apunhalando um índio chinuque, o salto dos peixes na água, o riso de crianças nuas na margem, as mulheres nos teares… de há muito tempo.)

– Eles a deixam ligada o tempo todo, como uma cachoeira? – pergunta McMurphy.

– Não quando dormimos – diz Cheswick. – Mas durante o resto do tempo todo, sim.

– Pro inferno com isso. Vou dizer àquele negro ali para desligar se não quiser levar um pontapé naquele traseiro gordo!

Ele começa a se levantar e Harding toca-lhe o braço.

– Amigo, esse é exatamente o tipo de comentário que fez alguém ser rotulado como agressivo. Você está tão ansioso assim para perder a aposta?

McMurphy olha para ele.

– Então é assim, nem? Um jogo de pressões? Manter o velho aperto sem parar?

– É isso aí.

Ele torna a sentar-se devagar na cadeira.

– Merda de cavalo!

Harding olha em volta para os outros Agudos em torno da mesa de jogo.

– Cavalheiros, parece que já posso detectar no nosso ruivo desafiador o mais anti-heróico declínio de seu estoicismo de vaqueiro de TV.

Ele olha sorrindo para McMurphy, do outro lado da mesa. McMurphy balança a cabeça, dá uma piscadela, lambe o polegar. – Bem, senhores, o professor Harding parece que está ficando prosa. Ele ganha um par de rodadas e começa logo a dar uma de espertinho. Pois, muito bem; aí está ele sentado com um dois à mostra e apostamos um maço de Marlboro como ele vai desistir do jogo… Upa! melhorando, professor, aqui está um três, ele quer mais um outro, ganha outro dois, quer tentar uma quina, professor?. Tenta fazer aquela dobradinha ou joga no seguro? Outro maço diz que não vai, não. Pois bem, outra dama e o professor afunda nos exames…

Outra canção começa no microfone, alta com muitos metais e acordeão. McMurphy dá uma olhada nos microfones e a sua voz eleva-se cada vez mais para superá-la.

– O.K., O.K., o seguinte, pro diabo, ou bate ou fica… já te pego…

Isso continua até que as luzes se apagam, às nove e meia.


Eu poderia ter ficado observando McMurphy naquela mesa de jogo a noite inteira, a maneira como dava as cartas e conversava e os enredava, deixando-os perder até estarem quase a ponto de desistir, então perdia uma mão ou duas para incutir-lhes confiança e fazê-los continuar de novo. De uma feita, ele parou um instante para acender um cigarro, recostou-se na cadeira, as mãos cruzadas atrás da cabeça, e disse aos caras:

– O segredo de ser um malandro nota 10 está em ser capaz de saber o que é que o pato quer, e em fazê-lo acreditar que vai conseguir. Aprendi isso quando trabalhei por um tempo num stand de apostas num parque de diversões. Sen – te – se o otário direitinho com os olhos, quando ele se aproxima e a gente diz: "Ora, mas aqui está um cara que precisa se sentir machão." Assim, toda vez que ele parte para cima de você por estar levando a melhor sobre ele, você bate com as botas, morrendo de medo e lhe diz: "- Por favor, senhor. Não tem problema. A próxima rodada é por conta da casa, senhor." Assim ambos estão conseguindo exatamente aquilo que desejam.

Ele se balança para frente e as pernas da cadeira batem no chão com um estalo. Pega o baralho, corre o polegar nele, bate com o canto no tampo da mesa, lambe o polegar e o dedo.

– E o que eu acho que vocês otários aí precisam é de uma parada das boas para tentá-los. Aqui está, 10 maços a próxima rodada. Vamos, estou pronto pra vocês. Daqui pra frente têm de ter peito.

E joga a cabeça para trás e dá uma gargalhada, ante a maneira como os caras se apressaram em fazer as suas apostas.

Aquela gargalhada ecoou pela enfermaria durante toda a noite, e o tempo todo em que jogava fazia brincadeiras e conversava, tentando fazer com que os jogadores rissem com ele. Mas todos tinham medo de se descontrair; tinha durado muito tempo. Ele desistiu de tentar e resolveu jogar a sério. Eles ganharam uma ou duas partidas, mas ele sempre recuperava ou sempre tornava a lutar, e os cigarros começaram a se empilhar cada vez mais alto à sua direita e à esquerda, em pilhas com feitio de pirâmides.

Então, pouco antes de nove e meia, ele começou a deixá-los ganhar tudo de volta tão depressa que eles nem se lembram de ter perdido. Paga com os dois últimos cigarros, larga o baralho, torna a se recostar com um suspiro e empurra o gorro, tirando-o de cima dos olhos, e o jogo está acabado.

– Bem, senhores, ganhem um pouco, percam o resto, é o que digo. – Sacode a cabeça com tristeza. – Eu não sei… sempre fui um cara bastante bom em vinte-e-um, mas vocês aí podem realmente ser duros demais para mim. Têm uma espécie de jeito sobrenatural, faz até um cara ficar meio com medo de jogar amanhã contra uns craques tão grandes, por dinheiro de verdade.

Ele não está nem enganando a si mesmo acreditando que eles caíram nessa. Ele os deixa ganhar, e cada um de nós, assistindo ao jogo, sabe disso. Os jogadores também. Mas ainda não há um único cara remexendo a sua pilha de cigarros – cigarros que não ganharam, realmente, mas apenas recuperaram, porque eram deles para começar – que não tenha um sorriso afetado no rosto, como se fosse o mais duro dos jogadores de todo o Mississippi.

O crioulo gordo e um crioulo chamado Geever nos põem para fora da enfermaria e começam a apagar as luzes com uma chavinha numa corrente, e à medida que a ala vai ficando sombria e mais escura, os olhos da enfermeirazinha com a marca de nascença, no posto de controle, vão ficando maiores e mais brilhantes. Ela está na porta da sala de vidro, distribuindo os comprimidos da noite para os homens que vão passando por ela arrastadamente numa fila, e está tendo dificuldades em se lembrar com clareza de quem é que vai ser envenenado com que esta noite. Ela nem está olhando onde é que está pondo a água. O que distraiu sua atenção desse jeito foi aquele homenzarrão ruivo com aquele gorro horrível e aquela cicatriz de aspecto assustador, vindo em sua direção. Ela está observando McMurphy afastando-se da mesa de jogo na enfermaria que está as escuras, uma de suas mãos calosas torcendo o tufo de cabelo vermelho que sai pelo decote estreito da camisa do uniforme da colônia penal, e concluo pela maneira como ela recua quando ele se aproxima da porta da Sala das Enfermeiras que ela provavelmente foi advertida a respeito dele, com antecedência, pela Chefona. ("Ah, mais uma coisa antes que eu deixe tudo em suas mãos por esta noite, Srta. Pilbow; aquele homem novo que está sentado ali, aquele com as costeletas ruivas extravagantes e ferimentos no rosto – tenho razões para crer que é um maníaco sexual.") McMurphy vê como ela está com um ar assustado e os olhos arregalados em sua direção, assim enfia a cabeça na porta da sala onde ela está distribuindo os comprimidos e lhe dá um sorriso largo e amistoso, para ir ficando conhecido. Isto a perturba tanto que deixa cair a jarra dágua no pé. Dá um grito e pula num pé só, agita a mão, e o comprimido que me ia dar salta para fora do copinho e desce direto pela gola do seu uniforme, onde a marca de nascença corre como um rio de vinho por um vale abaixo.

– Deixe-me lhe dar uma mãozinha, dona.

E entra pela porta da Sala das Enfermeiras, aquela mesma mão cheia de cicatrizes e tatuagens, e da cor de carne crua.

– Para trás! Há dois ajudantes aqui comigo!

Ela vira os olhos em busca dos crioulos, mas eles estão ocupados amarrando os Crônicos na cama, em lugar não suficientemente perto para ajudar depressa. McMurphy sorri e vira a mão, para que ela possa ver que ele não está segurando uma faca. Tudo que ela pode ver é a luz brilhando na palma calejada, lisa e opaca.

– Tudo que pretendo fazer, dona, é…

– Para trás! Os pacientes não têm permissão para… Oh, afaste-se, eu sou católica! - e imediatamente puxa a corrente de ouro do pescoço com um arranco, de forma que a cruz sai voando do rego entre os seus seios, e atira o comprimido perdido no ar, como um estilingue! McMurphy dá um golpe no ar bem na frente do rosto dela. Ela grita e enfia a cruz na boca, cerra os dentes como se estivesse prestes a levar um soco, fica de pé assim, branca como uma folha de papel, exceto pela marca que fica mais escura do que nunca, como se tivesse sugado todo o sangue de todo o resto do corpo dela. Quando ela finalmente abre os olhos de novo, ali está aquela mão calejada bem na frente dela com o meu pequeno comprimido vermelho bem no meio.

– Era apanhar a sua jarra dágua que a senhora deixou cair. – Ele a está segurando na outra mão.

Ela deixa sair o ar com um sibilar alto. Tira a jarra da mão dele.

– Obrigada. Boa noite, boa noite – e fecha a porta na cara do homem seguinte, esta noite não haverá mais pílulas.

No dormitório, McMurphy atira a pílula na minha cama.

– Quer a sua bolinha, chefe?

Sacudo a cabeça para o comprimido e ele o atira para fora da cama com um peteleco, como se fosse um inseto que o estivesse incomodando. O comprimido pula pelo chão com um ruído como o de um grilo. Ele se vai aprontando para ir para a cama, tirando a roupa. As cuecas sob as calças de trabalho são de cetim preto como carvão, cobertas de grandes baleias brancas de olhos vermelhos.

– Ganhei de uma aluna de um colégio co-educacional no Estado de Oregon, chefe, especializada em literatura. – Ele estala o elástico com o polegar. – Ela me deu porque disse que eu era um símbolo.

Os braços, o pescoço e o rosto dele estão bronzeados pelo sol, e cobertos de pêlos alaranjados e crespos. Tem tatuagens em cada um dos ombros largos; uma diz "Bravos Fuzileiros Navais" e tem um diabo com um olho vermelho e chifres vermelhos e um rifle M-l, a outra é uma mão de pôquer, aberta em leque sobre o seu músculo – ases e oitos. Coloca o monte de roupas na mesinha de cabeceira junto da minha cama e começa a socar o travesseiro. Designaram-lhe a cama à direita da minha.

Ele se enfia entre os lençóis e me diz que é melhor eu tratar de me apressar também, porque lá vem um dos crioulos para apagar as luzes. Olho em volta e o crioulo chamado Geever está vindo, atiro longe os sapatos e me meto na cama bem no momento em que ele vem me amarrar com um lençol. Quando ele acaba de cuidar de mim, lança um último olhar em torno, dá umas risadinhas e apaga as luzes do dormitório.

Exceto pela luz igual a pó branco que vem da Sala das Enfermeiras, lá fora, no corredor, o dormitório está às escuras. Posso apenas distinguir McMurphy perto de mim, respirando profunda e regularmente, os lençóis que o cobrem subindo e descendo. A respiração vai ficando cada vez mais lenta, até que chego à conclusão de que ele já está dormindo há algum tempo. Então ouço um ruído suave e rouco vindo da cama dele, como a casquinada de um cavalo. Ainda está acordado e está rindo para consigo mesmo de alguma coisa.

Ele pára de rir e murmura:

– Puxa, você deu mesmo um pulo e tanto quando eu lhe disse que aquele babaca estava vindo, chefe. Pensei que alguém tivesse me dito que você era surdo.


* * *

Pela primeira vez há muito tempo estou na cama sem ter tomado aquele pequeno comprimido vermelho (se me escondo, para não tomá-lo, a enfermeira da noite com a marca de nascença manda o crioulo chamado Geever sair para me caçar, para me manter preso com a lanterna até que ela possa aprontar a seringa), assim, finjo que estou dormindo quando o crioulo passa com a lanterna para fazer a verificação.

Quando a gente toma um daqueles comprimidos vermelhos, a gente não adormece apenas; fica-se paralisado de sono, e a noite inteira não se pode acordar, não importa o que esteja acontecendo em volta. É por isso que o pessoal. me dá comprimidos; no lugar de antigamente, eu costumava acordar durante a noite e os apanhava executando todos os tipos de crimes horríveis nos pacientes adormecidos em torno de mim.

Fico deitado imóvel e respiro mais devagar, esperando para ver se alguma coisa vai acontecer. Está escuro, meu Deus, e os escuto a deslizar de um lado para o outro, lá fora, com os sapatos de borracha; por duas vezes espiam lá dentro do dormitório e passam a luz da lanterna sobre todo mundo. Mantenho os olhos fechados e fico acordado. Ouço um gemido alto vindo lá de cima dos Perturbados, lúú lúú lúúú - instalaram os arames num cara qualquer, para apanhar sinais de código.

– Ah, uma cerveja, acho, pra longa noite que temos pela frente – ouço um dos crioulos cochichar para o outro. Os sapatos de borracha saem guinchando em direção à Sala das Enfermeiras, onde fica a geladeira. – Quer uma cerveja, coisinha bonita com marca de nascença? Para a longa noite que temos pela frente?

O cara lá de cima se cala. O som abafado dos aparelhos nas paredes fica cada vez mais baixo, até que se transforma num zumbido de nada. Não se ouve um ruído por todo o hospital – exceto por um ronco surdo e arrastado em algum lugar lá no fundo, nas entranhas do prédio, um ruído que eu nunca notara antes – muito parecido com o som que a gente ouve quando está parado bem tarde da noite no topo de uma represa hidrelétrica. Força brutal, implacável, baixa.

O crioulo gordo está de pé ali fora no corredor onde posso vê-lo, olhando em volta para um lado e outro e rindo sozinho. Vem andando na direção da porta do dormitório, devagar, esfregando as palmas cinzentas molhadas nos sovacos. A luz vinda da Sala das Enfermeiras lança a sua sombra na parede do dormitório grande como um elefante, vai ficando menor à medida que vem andando até a porta do dormitório e olha para dentro. Ele torna a dar uma risadinha e destranca a caixa de fusíveis junto da porta e estende a mão lá para dentro. "É isso mesmo, queridinhos, durmam bem."

Torce um trinco, e o chão inteiro começa a deslizar para baixo, afastando-se dele, que está de pé na porta, descendo para o interior do prédio como uma plataforma num silo com elevadores!

Nada além do chão do dormitório se move, e estamos deslizando para longe das paredes e da porta e das janelas da ala com uma rapidez danada – camas, mesinhas de cabeceiras, e tudo. O equipamento – provavelmente uma engenhoca de roda denteada e trilho em cada canto do poço – é bem lubrificado e silencioso como a morte. O único ruído que ouço é a respiração dos outros, e aquele rufar debaixo de nós está ficando mais alto à medida que vamos descendo mais. A luz da porta do dormitório lá em cima desse buraco não é nada além de uma manchinha, salpicando os cantos quadrados do poço com um pó descolorido, esmaecido. Vai ficando cada vez mais esmaecido até que um grito longínquo desce ecoando pelas paredes do poço – para trás! - e a luz desaparece por completo.

O assoalho alcança uma espécie qualquer de fundo sólido bem lá embaixo no interior do chão e pára com um rangido suave. Está escuro como breu, e posso sentir o lençol em torno de mim me sufocando. No exato momento em que consigo desamarrar o lençol, o chão começa a deslizar para frente com uma pequena sacudidela. Há uma espécie qualquer de lançadores ali embaixo que eu não consigo ouvir. Não consigo ouvir nem os caras respirando em torno de mim, e me dou conta de repente de que é porque aquele rufar foi gradualmente ficando tão alto que mais nada consigo ouvir. Devemos estar exatamente no meio dele. Comecei a dar puxões na droga do lençol que me prendia à cama e já estou com ele quase solto quando uma parede inteira desliza para cima, revelando um aposento enorme, com incontáveis equipamentos se estendendo até fora do alcance dos olhos, enxameando de homens suados e sem camisa, correndo de um lado para outro pelas coxias, os rostos inexpressivos e imprecisos, à luz do fogo lançado por uma centena de altos-fornos.

Aquilo – tudo que vejo – tem exatamente o aspecto da coisa que parecia ser pelo som, maneira como soavam, do interior de uma imensa represa. Enormes tubos de metal desaparecem lá no alto na escuridão. Fios se estendem até os transformadores numa extensão de se perder de vista. Graxa e escória de carvão aparecem por toda parte, manchando de vermelho e de negro os acopladores, os motores e os dínamos.

Os trabalhadores movem-se todos na mesma velocidade, rápida e suave, um ritmo natural e fluido. Ninguém está com pressa. Um deles espera um segundo, gira um controle, aperta um botão, liga o interruptor, e um dos lados de seu rosto fulgura, branco como um raio por causa da fagulha do interruptor de conexão, e continua correndo, subindo os degraus de aço e por uma coxia de ferro – passando uns pelos outros com tanta suavidade e tão perto que ouço o roçar dos lados molhados como o bater do rabo de um salmão na água – param, de novo disparam um raio de um outro interruptor, e continuam correndo. Eles se movem rapidamente para todas as direções até se perder de vista, estas imagens momentâneas dos rostos imprecisos de bonecos dos trabalhadores.

Os olhos de um trabalhador se fecham de repente quando ele está em plena corrida, e ele cai; dois de seus companheiros, que estão correndo por ali, o agarram e levantam, e o atiram dentro de um alto-forno pelo qual vão passando. O alto-forno solta uma bola de fogo e ouço o barulho do caminhar através de um campo coberto de sementes de vagens. Este ruído se mistura com o zumbido e o clangor do resto das máquinas.

Há um ritmo nisso, como uma pulsação trovejante.

O chão do dormitório continua deslizando para fora do poço e entra na sala de máquinas. Imediatamente vejo o que está direto acima de nós – um daqueles negócios como cavaletes que a gente vê em matadouros, cilindros com lagartas para transportar as carcaças de congelador para o açougueiro sem muito trabalho. Dois sujeitos de calças esportivas, camisas brancas com as mangas arregaçadas e gravatas pretas finas estão debruçados na caixa acima de nossas camas, gesticulando um para o outro à medida que falam, os cigarros em longas piteiras traçando linhas de luz vermelha. Estão falando mas não se pode distinguir as palavras por causa do rugido contínuo que se ouve por toda parte em volta deles. Um deles estala os dedos, e o operário mais próximo se vira bruscamente e corre em sua direção. O outro aponta com a piteira para baixo, para uma das camas, e o operário sai correndo para a escadinha de aço e desce rápido até o nosso nível, onde desaparece entre dois transformadores, grandes como celeiros de batatas.

Quando aquele operário torna a aparecer, está puxando um gancho preso na lagarta acima e dando passadas gigantescas à medida que o vai impulsionando. Passa pela minha cama e um forno rugindo em algum lugar de repente ilumina o seu rosto, ali bem em cima do meu, um rosto bonito e brutal, e ceroso como uma máscara, inexpressivo. Já vi um milhão de rostos como esse.

Ele vai até a cama e com uma das mãos agarra o velho Vegetal Blastic pelo calcanhar e o levanta tranqüilamente como se o Blastic não pesasse nada além de alguns gramas; com a outra mão o operário enfia o gancho através do tendão do calcanhar, e o velho fica pendurado ali de cabeça para baixo, o rosto bolorento inchado e grande, assustado, os olhos espumantes de medo mudo. Fica sacudindo os braços e a perna livre até que o pijama escorrega sobre a sua cabeça. O operário agarra a parte de cima e as pontas e o vira como se fosse uma saca de aniagem e puxa o gancho de volta na lagarta até a coxia, olha para cima, onde estão aqueles dois de camisa branca. Um deles tira um escalpelo de uma bainha presa ao cinto. Há uma corrente soldada ao escalpelo. Desce o escalpelo até o operário, prende a outra ponta da corrente no corrimão, de forma que o operário não possa fugir com uma arma.

O operário pega o escalpelo e corta a frente do velho Blastic com um golpe firme, e o velho pára de se agitar. Penso que vou vomitar, mas não há sangue ou entranha caindo como eu imaginava que veria – apenas um chuveiro de mofo e cinzas, e de vez em quando um pedaço de fio ou de vidro. O operário está parado ali, coberto até os joelhos pelo que parece ser escória de carvão.

Um dos fornos está aberto em algum lugar e engole alguém.

Penso em saltar de pé, correr e acordar McMurphy e Harding, e os outros, tantos quantos eu puder, mas não haveria nenhum sentido em fazer isso. Se eu sacudisse alguém até acordar, ele diria "ora seu idiota maluco, que diabo é que está comendo você?". E então provavelmente ajudaria um dos operários a me levantar até um daqueles ganchos, dizendo, ''que tal, vamos ver como são as entranhas de um índio?".

Ouço a respiração arquejante, fria, alta e molhada da máquina de neblina, vejo seus primeiros vapores virem infiltrando-se, saindo debaixo da cama de McMurphy. Espero que ele saiba o bastante para se esconder na neblina.

Ouço uma tagarelice idiota que me recorda alguém conhecido, viro-me o suficiente para poder olhar para o outro lado. É o Relações-Públicas careca com o rosto inchado, à respeito do qual os pacientes estão sempre discutindo quanto à razão por que está inchado. "Eu acho que ele usa", argumentam. "Pois eu acho que não; alguma vez já ouviu falar de um cara que realmente usasse um?" "Pois é, mas você alguma vez já ouviu falar de um cara como ele antes?" O primeiro paciente encolhe os ombros e balança a cabeça. "Esse é um ponto interessante."

Agora ele está despido, exceto por uma camiseta comprida com monogramas vistosos bordados em vermelho na frente e atrás. E eu vejo, de uma vez por todas (a camiseta sobe um pouco nas costas quando ele vem andando e passa por mim, dando-me uma espiadela), que ele positivamente usa um, tão apertado que pode explodir a qualquer segundo.

E balançando, pendurados no espartilho, ele traz uma dúzia de objetos murchos, presos pelo cabelo: escalpos.

Ele carrega um vidrinho de alguma coisa que beberica para manter a garganta aberta para continuar falando, e um lencinho com cânfora que põe diante do nariz de tempos em tempos para afastar o fedor. Há um bando de professoras e universitárias e congêneres andando rapidamente atrás dele. Elas usam aventais azuis e têm os cabelos presos em cachos. Elas o estão ouvindo em uma breve dissertação sobre a excursão.

Ele pensa em alguma coisa engraçada e tem de parar a dissertação durante tempo suficiente para tomar um gole do vidro para parar de rir. Durante a pausa, uma de suas alunas olha sonhadoramente em volta e vê o Crônico estripado, pendurado pelo calcanhar. Ela arqueja e dá um salto para trás. O Relações-Públicas se vira e avista o cadáver e sai correndo para pegar uma daquelas mãos inertes e fazê-lo girar. A estudante avança toda encolhida para um exame cauteloso, o rosto num transe.

"Você vê? Você vê?", ele guincha e revira os olhos, acabando por cuspir a bebida do vidro, de tanto que está rindo. Ele ri tanto que eu penso que vai explodir.

Quando finalmente afoga o riso, começa novamente a andar ao longo da fileira de máquinas, e reinicia a dissertação. Pára de repente e dá um tapa na testa: "Oh, que distraído que eu sou!" – e volta correndo até o Crônico pendurado para arrancar mais um outro troféu e amarrá-lo no espartilho.

À direita e à esquerda acontecem outras coisas igualmente ruins – loucas, terríveis coisas malucas e estranhas demais para que se possa chorar por elas e verdadeiras demais para que se possa rir delas – mas a neblina está ficando suficientemente forte para que eu não tenha de vê-las. E alguém me está sacudindo o braço. Já sei o que vai acontecer: alguém vai me tirar da neblina e eu estarei de volta à enfermaria e não haverá nem um sinal do que aconteceu esta noite e, se eu fosse suficientemente bobo para tentar contar a alguém o que aconteceu, eles diriam "idiota, você apenas teve um pesadelo; coisas tão malucas como uma sala de máquinas nos intestinos de uma represa onde as pessoas são estripadas por operários robôs, não existem".

Mas se elas não existem, como é que um homem pode vê-las?

É o Sr. Turkle que me puxa para fora da neblina pelo braço, sacudindo-me e sorrindo. Ele diz:

– 'Tava tendo um sonho ruim, seu Bromden. – Ele é o ajudante que trabalha no longo turno solitário das onze às sete, um velho negro, com um grande sorriso sonolento na extremidade de um longo pescoço trêmulo. Está cheirando como se tivesse bebido um pouco. – Agora vá dormir de novo, seu Bromden.

Em algumas noites, ele desamarra o lençol que me prende, se estiver tão apertado a ponto de me deixar todo torto. Ele não o faria se achasse que o pessoal do turno do dia ia saber que fora ele, porque provavelmente o despediriam, mas ele acha que o pessoal do turno do dia imagina que fui eu mesmo quem desamarrou o lençol. Acho que ele faz isso realmente por bondade, para ajudar – mas verifica primeiro se está em segurança.

Dessa vez não desamarra o lençol, afasta-se de mim para ajudar dois auxiliares que nunca vi antes e um médico jovem a colocarem o velho Blastic na maca e levá-lo embora, coberto por um lençol – mexem nele com mais cuidado do que alguém jamais o fez antes em toda sua vida.


* * *

Chega a manhã, McMurphy levanta-se antes de mim, é a primeira vez que alguém se levanta antes de mim desde a época em que o tio Jules, o Caminhante de paredes, estava aqui. Jules era um velho negro de cabelos brancos, muito esperto, com uma teoria de que o mundo estava sendo virado para o outro lado, durante a noite, pelos crioulos; ele costumava escapulir de madrugada, para ver se os apanhava enquanto viravam o mundo. Como Jules, eu me levanto bem cedo de manhã, para observar que equipamentos eles estão trazendo disfarçadamente para a enfermaria, ou instalando na barbearia, e normalmente só ficamos eu e os crioulos no corredor durante 15 minutos antes que o paciente seguinte saia da cama. Mas agora de manhã ouço McMurphy lá fora no banheiro quando saio da cama. Eu o ouço a cantar! Canta de tal maneira que se pensaria que ele não tem uma única preocupação no mundo. A voz dele soa clara e forte, de encontro ao cimento e ao aço.

"Seus cavalos estão com fome, foi o que ela disse pra mim."

Ele está gostando do jeito como o som ressoa no banheiro.

"Venha para junto de mim, e dê-lhes um pouco de feno."

Ele toma fôlego e sua voz sobe uma oitava, ganhando altura e força até que chega ao ponto de estremecer a fiação em todas as paredes.

"Meus cavalos não estão com fome, eles não vão comer o seu fee-nn-oo-oo."

Ele sustenta o tom e brinca com ele, então continua direto com o resto da letra até o fim.

"Assim aadeusss, querida, vou tratar da minha vida."

Cantando! Todo mundo está estarrecido. Há anos que não ouvem tal coisa, não nessa enfermaria. A maioria dos Agudos se está levantando, no dormitório, apoiando-se nos cotovelos, piscando e ouvindo. Eles olham uns para os outros e levantam as sobrancelhas. Como é possível que os crioulos não o tenham calado lá fora? Eles nunca deixaram ninguém armar tamanho escarcéu antes, deixaram? Como é que é possível que eles tratem esse cara de maneira diferente? É um homem feito de pele e osso, que está destinado a ficar fraco e pálido, e morrer, igualzinho ao resto de nós. Ele vive de acordo com as mesmas leis, tem de comer, defronta-se com os mesmos problemas; essas coisas o fazem tão vulnerável à Liga quanto todas as outras pessoas, não é verdade?

Mas o novato é diferente, e os Agudos podem ver isso, diferente de qualquer pessoa que veio para esta enfermaria nos últimos 10 anos, diferente de qualquer outra pessoa que eles tenham conhecido lá fora. Talvez ele seja tão vulnerável quanto qualquer dos outros, mas a Liga não o apanhou.

"Minha carroça está carregada", canta ele, "meu chicote está na minha mão…"

Como foi que ele conseguiu escapar do laço? Talvez, como o velho Pete, a Liga não tenha conseguido apanhá-lo suficientemente cedo, com seus controles. Talvez ele tenha crescido de uma maneira tão selvagem, rodando por todo o país, saltando de um lugar para outro, nunca se deixando ficar numa cidade por mais de alguns meses, quando era garoto, de forma que uma escola nunca conseguiu ter muita influência sobre ele; cortando madeira, jogando, controlando parques de diversões, viajando com passos rápidos, e ligeiro, mantendo-se tanto em movimento que a Liga nunca tenha tido uma oportunidade de instalar alguma coisa. Talvez seja isso, ele nunca deu uma oportunidade à Liga, exatamente como ontem de manhã, ele nunca deu uma oportunidade ao crioulo de apanhá-lo com o termômetro, porque um alvo em movimento é difícil de atingir.

Nenhuma esposa a querer um linóleo novo. Nenhum parente na tentativa de influenciá-lo com olhos lacrimejantes. Ninguém com quem se importar, o que faz com que ele seja suficientemente livre para ser um bom pilantra. E talvez a razão por que os crioulos não tenham entrado correndo naquele banheiro para acabar com a sua cantoria seja porque eles sabem que ele está fora do controle, e eles se lembram daquela outra vez com o velho Pete e do que um homem fora do controle é capaz. E eles podem ver que McMurphy é um bocado maior do que o velho Pete; se realmente chegar às vias de fato, vão ser necessários os três e mais a Chefona do lado com uma seringa. Os Agudos balançam a cabeça uns para os outros; esta é a razão, concluem, por que os crioulos não acabaram com a cantoria dele, quando teriam feito com qualquer um de nós.

Vou do dormitório para o corredor no momento exato em que McMurphy sai do banheiro. Está de gorro e muito pouco além disso, apenas uma toalha enrolada nos quadris. Traz uma escova de dentes na outra mão. Pára ali no corredor, olha de um lado para o outro, equilibrando-se nos dedos dos pés para evitar o quanto possível o frio dos ladrilhos. Avista um crioulo, o menor, e vai andando até ele e lhe dá um soco no ombro como se tivessem sido os melhores amigos durante toda uma vida.

– Ei, você aí, companheiro, quais são as minhas possibilidades de arranjar um bocado de pasta de dente para escovar os meus moedores?

A cabeça do crioulo anão gira e fica de nariz contra o punho daquela mão. Ele franze o cenho para ela, então faz uma verificação rápida de onde se encontram os outros dois crioulos só para "quem sabe", e diz a McMurphy que eles não abrem o armário antes das seis e quarenta e cinco.

– É a norma da casa – diz ele.

– É isso mesmo? Quero dizer, é lá que eles guardam a pasta de dentes? No armário?

– Isso mesmo, trancada no armário.

O crioulo tenta recomeçar a encerar os rodapés, mas aquela mão ainda está enganchada sobre o seu ombro como uma grande ostra vermelha.

– Trancada no armário, é? Ora, ora, muito bem. Agora, diga-me qual é a sua opinião, por que eles guardam a pasta trancada? Quer dizer, não é como se fosse uma coisa perigosa, é? Não se pode envenenar um homem com pasta de dente, pode? Não se pode dar uma porretada na cabeça de alguém com o tubo, pode? Qual é a razão que você acha que eles têm para botar uma coisa tão inofensiva como um tubinho de pasta de dente trancada a chave?

– É a norma da enfermaria, Sr. McMurphy, é essa a razão. – E, quando ele vê que essa última razão não impressiona McMurphy como deveria, franze o cenho para a mão no seu ombro e acrescenta: – Cum'é que o senhor acha que seria, se todo mundo fosse escovar os dentes toda vez que desse na telha?

McMurphy solta o ombro, puxa de leve aquele tufo de pêlos vermelhos no pescoço e pensa a respeito.

– Humm… humm, hum-hum, acho que saquei o que você está querendo dizer: a norma da ala é para aqueles que não podem escovar os dentes depois de cada refeição.

– Meu Deus, não entendeu?

– Claro, agora entendo. Está dizendo que teria gente que escovaria os dentes sempre que desse vontade.

– É isso aí, é por isso que nós…

– E, puxa vida, pode imaginar só? Dentes sendo escovados às seis e meia, seis e vinte… quem sabe?, talvez às seis horas. É, posso compreender o seu ponto de vista.

Ele dá uma piscadela por sobre o ombro do crioulo para mim, que estou de pé encostado na parede.

– Tenho de limpar esse rodapé, McMurphy.

– Ah. Não tinha a intenção de afastar você do seu trabalho. – Ele começa a recuar, afastando-se, enquanto o crioulo se inclina para recomeçar o trabalho. Então se aproxima novamente e se abaixa para olhar para dentro da lata ao lado do crioulo. – Bem, olhe só; que é que nós temos aqui?

O crioulo olha para baixo.

– Olhar para onde?

– Olhar aí dentro dessa lata velha, cara. Que negócio é esse aí dentro dessa lata velha?

– É… sabão em pó.

– Bem, eu geralmente uso pasta, mas – McMurphy mete a escova lá embaixo no pó, dá uma girada com ela, tira e bate na borda da lata – mas isso aqui serve muito bem pra mim. Obrigado. Vamos tratar daquele negócio de norma da enfermaria depois.

E torna a dirigir-se ao banheiro, onde posso ouvir a sua cantoria adulterada pelo compasso da escova nos dentes.

O crioulo fica de pé ali, olhando para onde ele foi, com o trapo de esfregar pendendo frouxo na mão cinzenta. Depois de um minuto, ele pisca, olha em volta e vê que eu o estava observando, aproxima-se e me arrasta pelo corredor abaixo, puxando-me pelos cordões do pijama, e me empurra para um lugar no chão, que ontem mesmo eu limpei.

– Aí! Seu maldito, fica aí! É aí que eu quero que você fique trabalhando, não olhando em volta estupidamente como uma vacona inútil qualquer! Aí! Aí!

Eu me abaixo e começo a esfregar de costas para ele, de forma que não me veja a sorrir. Eu me sinto bem por ver que McMurphy apanhou de jeito aquele crioulo, como poucos homens teriam conseguido. Papai costumava ser capaz de fazer isso – as pernas separadas, o rosto inexpressivo, olhando para cima, para o céu, naquela primeira vez em que os homens do Governo apareceram para negociar a conclusão do tratado. "Gansos do Canadá lá em cima", diz papai, olhando de soslaio para cima. Os homens do Governo olham, folheando papéis. "Em que mês é que estamos? Em julho? Não há… hum… gansos nessa época do ano. Hum, não há gansos."

Eles estavam falando como turistas do leste que acham que têm de falar com índios de maneira que eles compreendam. Papai parecia não tomar conhecimento da maneira como eles falavam. Continuava olhando para o céu. "São gansos, lá em cima, homem branco. Você sabe. Gansos neste ano. E no ano passado. E no ano anterior e no ano anterior."

Os homens se entreolharam e pigarrearam. "Sim. Pode ser verdade, chefe Bromden. Agora, esqueça os gansos. Preste atenção ao contrato. O que nós oferecemos poderia beneficiar grandemente os… a sua gente… modificar a vida dos peles-vermelhas."

Papai disse:… "e no ano anterior e no ano anterior e no ano anterior"…

Quando os homens do Governo se deram conta de que estavam sendo feitos de idiotas, todo o conselho que permanecera sentado na varanda da nossa cabana, enfiando os cachimbos nos bolsos das camisas de lã xadrez, vermelha e branca e tornando a tirá-los e sorrindo uns para os outros e para papai – todos eles já haviam estourado no maior acesso de riso, rindo de morrer. Tio C amp; S Lobo rolava no chão, arquejando às gargalhadas e repetindo: "Você sabe disso, homem branco."

Aquilo realmente os aborreceu; viraram-se sem dizer uma palavra e saíram em direção à estrada, vermelhos de raiva, e nós rindo nas costas deles. Eu me esqueço, às vezes, do que o riso pode fazer.


A chave da Chefona gira na fechadura, e o crioulo está a seu lado tão logo ela passa pela porta, pulando em um pé e outro como uma criança pedindo para fazer pipi. Estou perto o bastante para ouvir o nome de McMurphy ser mencionado na conversa dele umas duas vezes, de forma que sei que ele lhe está contando a respeito da história de McMurphy escovar os dentes, esquecendo-se por completo de lhe falar sobre o velho Vegetal que morreu durante a noite. Abanando os braços e tentando dizer a ela o que aquele ruivo idiota já esteve aprontando de manhã tão cedo – atrapalhando as coisas, contrariando a norma da enfermaria… será que ela não pode fazer alguma coisa?

Ela olha fixa e penetrantemente para o crioulo até que ele pára de se remexer. Dirige então o olhar para o corredor, por onde a cantoria de McMurphy ressoa através da porta do banheiro, mais alta do que nunca. "Oh, seus pais não gostam de mim, dizem que sou pobre demais, que não sou digno nem de passar por sua porta."

De início o rosto dela fica perplexo; como o resto de nós, já faz tanto tempo que ela não ouve alguém cantar que leva um momento para tomar pé da situação.

"A vida difícil é o meu prazer, o meu dinheiro é só meeeu, e se eles não gostam de mim, podem me deixar em paz."

Ela escuta por mais um minuto para se assegurar de que não está ouvindo coisas; então começa a inchar. As narinas se abrem de estalo, e cada vez que respira ela fica maior, tão grande e com aspecto tão mau como não a vejo ficar por causa de um paciente desde a época em que Taber estava aqui. Ela põe em funcionamento as dobradiças dos cotovelos e dos dedos. Ouço um pequeno guinchado. Começa a mover-se, e eu recuo de encontro à parede e, quando ela passa ribombando, já está grande como um caminhão, arrastando aquela cesta de vime como um trailer atrás de um caminhão. Os lábios dela estão separados e o seu sorriso segue na frente dela como a grade de um radiador. Posso sentir o cheiro do óleo quente e a fagulha do radiador quando ela passa, e a cada passo que bate no chão ela se infla, ficando um ponto maior, inflando e inchando, esmagando o que quer que esteja no seu caminho! Estou com medo só de pensar o que ela irá fazer.

Então, no momento exato em que ela vai acelerando no seu maior e pior estado, McMurphy sai pela porta do banheiro, colocando-se bem na frente dela. toalha enrolada nos quadris. Ela pára de estalo! Ela encolhe até mais ou menos a altura da cabeça até o ponto onde aquela toalha o cobre, e ele lhe está sorrindo. Até o sorriso dela está abalado, treme nos cantos.

– Bom dia, Srta. Rat-shed *! Como é que vão as coisas lá fora?

– Não pode ficar andando aqui… enrolado numa toalha!

– Não? – Ele olha para baixo, para a parte da toalha que ela está olhando. Nota que a toalha molhada está colada como uma pele. – Toalhas também são contra as normas da enfermaria? Bem, acho que não há mais nada a fazer sen…

– Pare! Não ouse. Volte já para o dormitório e vista as suas roupas imediatamente.

Ela fala como uma professora ao repreender um aluno. Assim, McMurphy baixa a cabeça como um aluno, e diz numa voz que soa como se ele estivesse a ponto de chorar:

– Eu não posso fazer isso, dona. Acho que algum ladrão afanou as minhas roupas, durante a noite, enquanto eu dormia. Eu durmo um sono muito pesado nesses colchões que vocês têm por aqui.

– Alguém afanou?…

– Lalou. Passou a mão. Deu sumiço. Roubou – diz ele satisfeito. – Sabe, dona, parece que alguém afanou meus trapos. – Dizer aquilo o excita tanto que começa a executar um pequeno balé, descalço diante dela.

– Roubou suas roupas?

– Parece que foi isso mesmo.

– Mas… uniforme de presidiário? Por quê?

Ele pára de saltitar e torna a baixar a cabeça.

__Tudo que sei é que elas estavam lá quando eu fui para a cama e tinham sumido quando me levantei. Sumiram como num passe de mágica. Oh, eu sei que não eram nada além de um ordinário uniforme de presidiário, desbotadas e grosseiras, dona, bem que sei disso… e um uniforme de presidiário pode não parecer muita coisa para aqueles que têm mais. Mas para um homem nu…

– Aquelas roupas – diz ela. caindo em si – deveriam mesmo ser apanhadas. Foi-lhe entregue um uniforme verde de convalescente esta manhã.

Ele sacode a cabeça e suspira, mas ainda não ergue o olhar.

– Não, não, eu acho que não me foi entregue. Não havia uma única coisa lá, esta manhã, exceto o gorro que está na minha cabeça e…

– Williams – ela urra para o crioulo que ainda está na porta da enfermaria como se estivesse pronto para sair correndo por ela. – Williams, você pode vir até aqui um momento?

Ele se arrasta até ela como um cachorro diante de um chicote.

– Williams, por que esse paciente não recebeu um uniforme de convalescente?

O crioulo está aliviado. Ele se endireita e sorri, levanta aquela mão cinzenta e aponta, na outra extremidade do corredor, para um dos grandes.

– O Seu Washington, que está ali, é quem está encarregado do serviço de lavanderia esta manhã. Eu não. Não.

– Sr. Washington? - Ela o apanha com o esfregão pairando sobre o balde e o paralisa ali. – Será que pode vir até aqui um momento?

O esfregão desliza sem um ruído sequer para dentro do balde e, com movimentos lentos e cuidadosos, ele apóia a alça contra a parede. Vira-se e olha para McMurphy e para o crioulo menor e para a enfermeira. Então olha para a esquerda e para a direita, como se ela pudesse ter estado gritando com uma outra pessoa qualquer.

– Venha já aqui!

Ele enfia as mãos nos bolsos e começa a vir lentamente pelo corredor na direção dela. Ele nunca anda muito depressa, e posso ver como, se não tratar de andar logo, ela é capaz de paralisá-lo e arrebentá-lo inteiro apenas com o olhar; todo o ódio e a fúria e a frustração que ela estava planejando utilizar em McMurphy estão faiscando em ondas pelo corredor na direção do crioulo e ele pode senti-los a soprar em rajadas como um vento de nevasca, tornando-o mais lento do que nunca. Tem de se inclinar para prosseguir contra aquilo, envolvendo o corpo com os braços apertados. A geada se forma no seu cabelo e nas sobrancelhas. Ele ainda se inclina mais para a frente, mas seus passos estão ficando mais lentos; ele nunca irá conseguir.

Então McMurphy começa a assoviar Sweet Geórgia Brown, e a enfermeira desvia o olhar do crioulo bem a tempo. Agora, ela fica tão zangada e se sente tão frustrada como nunca a vi antes. O sorriso de boneca desapareceu, estirado ao ponto máximo e fino como um arame em brasa. Se alguns dos pacientes pudessem estar ali fora para vê-la agora, McMurphy poderia começar a receber as apostas.

O crioulo finalmente chega até onde ela está, e aquilo lhe tomou horas. Ela respira bem fundo.

– Washington, por que foi que este homem não recebeu uma muda de pijamas hoje de manhã? Será que você não podia ver que ele nada tinha além de uma toalha?

– E o meu gorro – cochicha McMurphy, batendo na aba com o dedo.

– Sr. Washington?

O crioulo olha para o pequeno que o denunciou, e este começa a se remexer de novo. O grande olha para ele durante um longo tempo, com aqueles olhos de válvulas de rádio, planeja acertar as coisas com ele mais tarde; então, a cabeça se vira e olha para McMurphy de cima a baixo, avaliando os ombros duros e pesados, o sorriso de lado, a cicatriz no nariz, a mão segurando a toalha. Em seguida se volta para a enfermeira.

– Eu acho… – ele começa.

– O senhor acha! Fará mais do que achar! Vai arranjar um uniforme para ele imediatamente, Sr. Washington, ou passará as próximas duas semanas na Enfermaria de Geriatria! Sim. Pode ser que precise de um mês de comadres e banhos de lama para renovar o seu apreço pelo pouco trabalho que vocês, auxiliares, têm de fazer aqui. Se isto fosse numa das outras enfermarias, quem é que pensa que estaria esfregando o chão o dia inteiro? O Sr. Bromden? Não, o senhor sabe bem quem seria. Nós dispensamos vocês, auxiliares, da maioria de suas obrigações de limpeza para permitir que atendam os pacientes. E isto significa cuidar para que eles não desfilem por aí pelados. Que é que acha que teria acontecido se uma das jovens enfermeiras tivesse aparecido cedo e encontrado um paciente andando pelo corredor sem uniforme. Que é que acha!

O negro não está muito certo quanto a isso, mas percebe o objetivo dela e sai andando no seu passo lento para a rouparia para arranjar uma muda de pijamas para McMurphy – provavelmente 10 pontos menor do que o tamanho dele – e volta no mesmo passo e a estende para ele com um olhar do mais puro ódio que eu já vi. McMurphy apenas aparenta estar confuso, como se não soubesse como apanhar, se com uma das mãos está segurando a escova de dentes e, com a outra, a toalha. Finalmente, pisca o olho para a enfermeira, encolhe os ombros e desenrola a toalha, atira-a sobre o ombro dela como se ela fosse um cabide de madeira.

Vejo que estava com os calções sob a toalha o tempo todo.

Tenho certeza absoluta de que ela teria preferido que ele estivesse nu em pêlo sob a toalha em vez de estar com aqueles calções. Ela está olhando fixa e furiosamente para aquelas grandes baleias brancas saltando pelos calções dele como um ultraje indizível. Aquilo é mais do que ela pode suportar. Passa-se um minuto inteiro até que consiga recuperar a compostura para se virar para o crioulo menor, a voz tremendo descontrolada, ela ainda furiosa.

– Williams… eu creio… que você era para já ter limpado as janelas da Sala das Enfermeiras na hora em que eu chegasse esta manhã. – Ele sai arrastando os pés como um inseto preto e branco. – E você, Washington… e você… – Washington volta arrastando os pés para o balde, quase que em passo de trote. Ela olha em volta mais uma vez, perguntando-se em quem mais poderia descarregar. Ela me avista, mas a essa altura alguns dos outros pacientes já saíram do dormitório e estão curiosos a respeito do grupinho que fazemos no corredor. Ela fecha os olhos e se concentra. Não pode permitir que a vejam com o rosto assim, carregado de fúria. Usa toda a força de controle de que dispõe. Gradualmente, os lábios tornam a se juntar sob o narizinho branco, grudam-se, como se o fio incandescente tivesse ficado quente o bastante para derreter, cintilam por um segundo, depois se solidificam com um estalo, à medida que o metal derretido toma forma, tornando-se frio e estranhamente opaco. Seus lábios se separam e a língua sai por entre eles, um pedaço de escória. Os olhos abremse de novo, e têm aquele estranho aspecto frio e opaco dos lábios, mas ela inicia a sua rotina de bom dia como se nada diferente houvesse acontecido, imaginando que os pacientes estejam com muito sono para perceber.

– Bom dia, Sr. Sefelt, seus dentes estão melhores? Bom dia, Sr. Fredrickson, o senhor e o Sr. Sefelt dormiram bem a noite passada? Vocês dormem lado a lado, não é? A propósito, foi trazido ao meu conhecimento o fato de que vocês dois fizeram um acordo qualquer com relação à medicação… está deixando Bruce tomar a sua medicação não está, Sr. Sefelt? Discutiremos isso mais tarde. Bom dia, Billy; vi sua mãe quando estava vindo para cá, e ela me disse para não deixar de lhe dizer que ela pensava em você o tempo todo e que sabia que você não a desapontaria. Bom dia, Sr. Harding… ora, olhe só, as pontas de seus dedos estão vermelhas e em carne viva. Esteve roendo as unhas novamente?

Antes que eles pudessem responder, mesmo se houvesse alguma resposta, ela se vira para McMurphy que ainda continua de pé ali, de calções. Harding olha para os calções e assovia.

– E o senhor, Sr. McMurphy – diz ela, sorrindo, doce como açúcar -, se já tiver acabado de exibir o seu físico másculo e as suas cuecas espalhafatosas, acho que seria melhor voltar para o dormitório e vestir o pijama.

Ele toca a aba do gorro num cumprimento para ela e para os pacientes que admiram e zombam dos calções com baleias brancas, e vai para o dormitório sem dizer uma palavra. Ela se vira e segue em outra direção, o sorriso vermelho inexpressivo a sua frente; antes que ela feche a porta da saleta envidraçada, a cantoria dele está saindo novamente pela porta do dormitório, ecoando no corredor.

"Ela me levou para a sua saleta e me refresco – oo – ou com o seu abano."

Posso ouvir as pancadas enquanto ele bate na barriga nua.

"Cochichou baixinho no ouvido da sua mãezinha, eu a-amo-oooo esse jogador."


Ao varrer o dormitório assim que se esvazia, vou catar sujeira de rato sob a cama dele, quando sinto um cheiro de uma coisa que me faz perceber, pela primeira vez desde que estou no hospital, que este grande dormitório cheio de camas, que acomoda 40 homens adultos, sempre esteve impregnado de um milhar de outros cheiros – cheiros de germicidas, ungüento antisséptico, talco para os pés, cheiro de urina e de fezes azedas de velhos, de Pablum e de loção ocular, de cuecas mofadas e de meias bolorentas mesmo quando acabaram de voltar da lavanderia, o cheiro forte de goma na roupa de cama, o fedor ácido das bocas pela manhã, o cheiro de banana do óleo de máquinas, e às vezes o cheiro de cabelo chamuscado – mas nunca, antes desse momento, antes que ele tivesse entrado, o cheiro humano de poeira e de terra dos campos abertos, e de suor e de trabalho.


Durante todo o café, McMurphy fala e ri a uma milha por minuto. Depois de hoje de manhã, ele acha que a Chefona vai ser uma barbada. Ele não sabe que apenas a apanhou de guarda aberta, e, se é que conseguiu alguma coisa, foi fazê-la ficar alerta.

Ele se está fazendo de palhaço, esforçando-se para conseguir que alguns dos caras riam. Incomoda-o o fato de que o máximo que eles conseguem é sorrir polidamente e às vezes rir em silêncio. Ele provoca Billy Bibbit, sentado a sua frente do outro lado da mesa, dizendo numa voz misteriosa:

– Ei, Billy, você se lembra daquela vez em Seattle, em que você e eu apanhamos aquelas duas bonecas? Uma das melhores trepadas que já dei na minha vida.

Os olhos de Billy se erguem do prato, arregalados. Abre a boca mas nada consegue dizer. McMurphy se vira para Harding e prossegue:

– Nós nunca teríamos conseguido, de jeito nenhum, apanhar as duas assim no impulso do momento, não fosse pelo fato de que elas já tinham ouvido falar de Billy Bibbit. Billy Cacete Bibbit, era como ele era conhecido naquela época. Aquelas garotas estavam a ponto de se mandar quando uma olha para ele e diz "você é o famoso Billy Cacete Bibbit? Das famosas 14 polegadas?" Ele, Billy, baixou a cabeça e corou, como ele está fazendo agora, e olha a gente ganhando a parada. E eu me lembro, quando levamos as duas lá para o hotel, ouvi aquela voz de mulher, vindo lá de perto da cama de Billy, "Sr. Bibbit, estou desapontada com o senhor; ouvi dizer que o senhor tinha qua-qua – Jesus, Maria e José!"

E dá um grito e um tapa na perna e cutuca Billy com o polegar a tal ponto que acho que Billy vai cair duro é desmaiar de tanto corar e sorrir.

McMurphy diz que, para falar a verdade, um par de garotas gostosas como aquelas suas, é a única coisa que falta ao hospital. A cama que eles dão aqui é a melhor em que ele já dormiu, e que mesa farta eles oferecem. Não consegue imaginar por que todo mundo vive tão aborrecido por estar trancado ali.

– Agora, olhem só para mim – diz e levanta um copo para a luz. – Estou bebendo o meu primeiro copo de laranjada em seis meses. Puxa vida, é bom! Agora, pergunto a vocês, que é que eu tomava no café da manhã naquela colônia penal? Que é que me davam? Bem, posso descrever com que é que parecia, mas garanto que não posso dar um nome àquilo; de manhã, ao meio-dia e à noite era preto de queimado e tinha batatas, e parecia com cola para telhas. Sei de uma coisa; não era suco de laranja. Olhem para mim agora: bacon, torrada, manteiga, ovos, café que a doçura ali da cozinha até me perguntou se queria puro ou com leite, obrigado – e um fantástico! grande! fresco copo de suco de laranja. Puxa, eu não deixaria este lugar nem que me pagassem!

Ele repete de tudo e marca um encontro com a moça que serve o café na cozinha para quando tiver alta. Cumprimenta o cozinheiro negro por fazer os melhores ovos fritos que ele já comeu. Tem bananas para comer com os flocos de milho, e ele se serve de uma, diz ao crioulo que lhe vai dar uma porque ele tem uma aparência tão faminta, e o crioulo olha de esguelha lá para o fundo do corredor, onde a enfermeira está sentada no seu invólucro de vidro, e diz que não é permitido aos ajudantes comer junto com os pacientes.

– É contra as normas da enfermaria?

– Isso mesmo.

– Azar! – Ele descasca três bananas bem debaixo do nariz do crioulo e come uma atrás da outra, diz ao crioulo que sempre que ele quiser tirar um rango do refeitório é só falar.

Quando McMurphy acaba a última banana, dá uma palmada na barriga, levanta-se e dirige-se para a porta. O crioulo grande bloqueia a porta e lhe diz que o regulamento manda que os pacientes fiquem sentados no refeitório até a hora de todos saírem, às sete e meia. McMurphy fica olhando para ele como se não pudesse acreditar que está ouvindo bem, então se vira e olha para Harding. Harding diz que sim com a cabeça. McMurphy encolhe os ombros e volta para a cadeira.

– De qualquer forma eu não quero mesmo ir contra a porra do regulamento.

O relógio no fundo do refeitório mostra que são sete e quinze, está mentindo dizendo que só estamos sentados aqui há 15 minutos, quando se pode dizer que já faz pelo menos uma hora. Todo mundo já acabou de comer e se recostou na cadeira, observando o ponteiro grande mover-se para as sete e meia. Os crioulos levam embora as bandejas sujas dos Vegetais e empurram os dois velhos nas cadeiras de rodas para serem lavados com as mangueiras. No refeitório, cerca da metade dos homens deita a cabeça nos braços, pensando em tirar um cochilo antes que os crioulos voltem. Não há mais nada a fazer, sem cartas, revistas ou quebra-cabeças. Apenas dormir ou observar o relógio.

Mas McMurphy não consegue ficar quieto assim; ele tem de estar preparando alguma. Depois de levar cerca de dois minutos empurrando farelos de comida em volta do prato com a colher, está pronto para mais atividades. Enfia os polegares nos bolsos e inclina a cabeça para trás e olha com um olho só para o relógio na parede. Então esfrega o nariz.

– Sabe… aquele relógio velho ali me lembra os alvos no campo de tiros em Fort Riley. Foi onde ganhei minha primeira medalha de atirador de precisão. McMurphy Bom-de-Tiro. Quem quer apostar comigo um dolarzinho como eu acerto este pedacinho de manteiga bem no centro do mostrador daquele relógio, ou pelo menos no mostrador?

Ele consegue três apostas e pega o pedaço de manteiga, põe na faca e faz um arremesso rápido. Vai parar bem a uns 20 centímetros, ou coisa assim, à esquerda do relógio, e todo mundo o ridiculariza por causa daquilo, até que ele paga as apostas. Ainda estão zombando dele, querendo saber se ele quis dizer Bom-de-Tiro ou Bonde-em-Tiro quando o crioulo menor volta depois de ter lavado os Vegetais. Todo mundo olha para o prato e fica quieto. O crioulo percebe que há alguma coisa no ar, mas não pode ver o quê. Provavelmente nunca teria sabido se não fosse pelo velho Coronel Matterson, que fica olhando em volta, e ele vê a manteiga grudada na parede e isto o faz apontar para ela e dar início a uma de suas aulas, explicando-nos a todos, na sua voz paciente e ressonante, como se o que ele dissesse fizesse sentido.

– A man-teiga… é o Partido Re-pu-bli-ca-no…

O crioulo olha para onde o Coronel está apontando, e lá está a manteiga, escorrendo devagar pela parede como uma lagarta amarela. Ele pisca para ela mas não diz uma palavra, nem se dá ao trabalho de olhar em volta para ter certeza de quem foi que a atirou.

McMurphy está cochichando e cutucando os Agudos sentados a sua volta, e num minuto todos eles concordam, e ele põe três dólares na mesa e se recosta. Todo mundo se vira na cadeira e observa aquela manteiga escorrer pela parede, seguindo, parando, pendendo imóvel, despencando e deixando um rastro brilhante na pintura. Ninguém diz uma palavra. Eles olham para a manteiga e em seguida para o relógio, e então de volta para a manteiga. Agora o relógio está andando.

A manteiga chega ao chão meio minuto antes das sete e meia, e McMurphy recupera todo o dinheiro que havia perdido.

O crioulo acorda, dá as costas para a faixa gordurosa na parede e diz que podemos ir. McMurphy vai andando para fora do refeitório enfiando o dinheiro no bolso. Põe o braço em torno do ombro do crioulo e o vai levando meio andando e meio carregado, pelo corredor, em direção à enfermaria.

– Metade do dia se foi, Sam, e, meu camaradinha, e eu mal estou começando. Vou ter de andar depressa para recuperar o tempo perdido. Que tal me trazer aquele baralho de cartas que você trancou em segurança naquele armário? Assim vou ver se consigo me fazer ouvir acima daquele alto-falante.


Passa a maior parte daquela manhã andando depressa, para recuperar o tempo perdido, jogando vinte-e-um, agora apostando vales em vez de cigarros. Ele muda de lugar a mesa de vinte-e-um, umas duas ou três vezes, para tentar sair de debaixo do alto-falante. Pode-se ver que aquilo lhe está dando nos nervos. Finalmente, vai até a Sala das Enfermeiras e bate numa das vidraças até que a Chefona faz girar a cadeira e abre a porta. Ele lhe pergunta que tal desligar aquela barulheira infernal por algum tempo. Agora, ela está mais calma do que nunca, de volta à sua cadeira atrás da vidraça; não há nenhum pagão saracoteando meio nu para desequilibrá-la. O sorriso dela está fixo e sólido. Fecha os olhos, sacode a cabeça e diz a McMurphy muito agradavelmente:

– Não!

– A senhora não pode nem diminuir o volume? Não acho que todo o Estado do Oregon precise ouvir Lawrence Welk tocar Tea for Two três vezes por hora, o dia inteiro! Se fosse baixo o bastante para que se pudesse ouvir um homem berrar suas apostas do outro lado da mesa eu poderia organizar um jogo de pôquer…

– Já lhe foi dito, Sr. McMurphy, que é contra o regulamento jogar a dinheiro na enfermaria.

– O.K. Então bastante baixo para se jogar apostando com fósforos, com botões de braguilha… apenas abaixe essa maldita coisa!

– Sr. McMurphy – ela espera e deixa que sua voz calma de professora penetre, antes de continuar; ela sabe que todos os Agudos estão ouvindo a conversa. – Quer saber o que eu acho? Acho que está sendo muito egoísta. Ainda não reparou que há outras pessoas no hospital além do senhor? Há indivíduos muito, muito velhos, que simplesmente não são capazes de ler ou fazer quebra-cabeças… ou de jogar cartas para ganhar os cigarros dos outros. Para indivíduos idosos como Matterson e Kittling, aquela música é tudo que eles têm. E o senhor quer tirá-la deles. Nós gostamos de ouvir sugestões e pedidos sempre que podemos, mas acho que o senhor poderia pelo menos pensar um pouco nos outros antes de fazer seus pedidos.

Ele se vira e olha para o lado dos Crônicos e vê que há alguma verdade no que ela diz. Tira o gorro e passa a mão pelo cabelo. Afinal, vira-se para ela de novo. Ele sabe tão bem quanto ela que todos os Agudos estão ouvindo tudo que eles dizem.

– O.K… Eu nunca pensei a respeito disso.

– Imaginei que não tivesse pensado.

Ele puxa de leve aquele tufo de pêlos vermelhos pela gola do pijama e diz:

– Em todo o caso, que é que acha de nós levarmos o jogo de cartas para um outro lugar qualquer? Uma outra sala? Assim como, digamos, a sala onde vocês põem as mesas durante aquelas sessões. Não há nada ali dentro durante o resto do dia. Poderia abrir aquela sala e deixar os jogadores entrarem ali.

Os velhos ficariam aqui com o rádio… um bom negócio sob todos os pontos de vista.

Ela sorri, fecha os olhos e sacode a cabeça suavemente.

– É claro, o senhor pode examinar a sugestão em conjunto com o resto do pessoal numa outra ocasião, mas creio que os sentimentos de todo mundo corresponderão aos meus: nós não temos cobertura de segurança suficiente para duas dependências. Não há pessoal bastante. E eu gostaria que o senhor não se encostasse nesse vidro aí, por favor; suas mãos engorduradas estão manchando a janela. Isto significa trabalho extra para alguns dos outros homens.

Ele tira a mão num arranco, vejo que começa a dizer alguma coisa e depois pára, percebendo que ela não deixou mais nada para ser dito por ele, a menos que queira começar a xingá-la. O rosto e o pescoço dele ficam vermelhos. Respira fundo e se concentra na sua força de vontade, da mesma maneira como ela fez esta manhã, diz que sente muito por tê-la incomodado, e volta para a mesa de jogo.

Todo mundo na enfermaria sente que a coisa começou.

Às onze horas, o médico vem até a porta e diz a McMurphy que gostaria que ele descesse com ele até o consultório para uma entrevista.

– Eu entrevisto todos os recém-admitidos no segundo dia.

McMurphy deixa as cartas, levanta-se e vai andando até o médico. O médico lhe pergunta como passou a noite, mas McMurphy apenas resmunga uma resposta.

– Parece muito pensativo hoje, Sr. McMurphy.

– Ah, eu sou mesmo um pensador – diz McMurphy, e eles saem andando juntos pelo corredor. Quando voltam, depois do que parece ser dias mais tarde, estão sorrindo e conversando alegremente a respeito de alguma coisa. O médico está limpando as lágrimas dos óculos e tem o aspecto de quem realmente esteve rindo, e McMurphy está de novo falando alto e cheio de irreverência e basófia como sempre. Ele fica assim durante todo o almoço e, a uma hora, é o primeiro a ir sentar-se para a sessão, os olhos azuis e inexpressivos espiando lá do canto.

A Chefona entra na enfermaria com o seu bando de estudantes de enfermagem e a cesta de apontamentos. Pega o livro diário na mesa e franze o cenho, examinando-o por um minuto (ninguém alcagüetou ninguém durante o dia inteiro), depois vai para a sua cadeira ao lado da porta. Tira algumas pastas da cesta que tem no colo e as folheia até encontrar a que trata de Harding.

– Conforme me recordo, estávamos fazendo um progresso considerável com o problema do Sr. Harding…

– Ah… antes que tratemos disso – diz o médico – gostaria de interromper por um momento, se me permitir. É sobre uma conversa que o Sr. McMurphy e eu tivemos no meu consultório esta manhã. Reminiscência, na realidade. Falando a respeito dos velhos tempos. Sabe, o Sr. McMurphy e eu descobrimos que temos algo em comum… nós freqüentamos a mesma escola secundária.

As enfermeiras se entreolharam e se perguntam o que foi que deu naquele homem. Os pacientes olham para McMurphy, que está sorrindo no seu canto, e esperam que o médico continue. Ele balança a cabeça em sinal de assentimento.

– Sim, a mesma escola secundária. E o curso de nossas recordações trouxe-nos à lembrança os bailes a fantasia que a escola costumava promover… maravilhosos, barulhentos, festas de gala. Decorações, serpentinas de papel crepom, barraquinhas, brincadeiras e jogos… era sempre um dos grandes acontecimentos do ano. Eu… conforme contei a McMurphy, eu era presidente da comissão organizadora do baile a fantasia da escola, tanto no primeiro ano, como calouro, quanto depois, já veterano Maravilhosos anos despreocupados…

Fez-se realmente um silêncio na enfermaria. O médico levanta a cabeça, olha em volta para ver se está fazendo papel ridículo. A Chefona lança-lhe um olhar que não deveria deixar nenhuma dúvida a respeito do assunto, mas ele está sem óculos, e a expressão desse olhar não o atinge.

– De qualquer maneira – continuou ele – para pôr um fim a esta demonstração sentimental de nostalgia, durante a nossa conversa, McMurphy e eu ficamos curiosos para saber qual seria a atitude de alguns dos homens com relação a um baile a fantasia aqui, na enfermaria?

Ele põe os óculos e torna a olhar em volta. Ninguém está dando pulos de alegria diante da idéia. Alguns de nós podem lembrar-se de Taber, tentando organizar um baile a fantasia, há alguns anos, e o que aconteceu com o baile. Enquanto o médico espera, um silêncio se eleva, emergindo da enfermeira, e paira sobre todo mundo, desafiando qualquer um a tentar enfrentá-lo. Sei que McMurphy não pode, porque ele estava envolvido no planejamento do baile, e justamente quando estou pensando que ninguém vai ser bastante idiota para quebrar o silêncio, Cheswick, que está sentado ao lado de McMurphy, dá um grunhido e se levanta esfregando as costelas, antes mesmo de saber o que está acontecendo.

– Haaan… eu pessoalmente acredito, sabe – ele olha para o punho de McMurphy no braço da cadeira, ao seu lado, com aquele grande polegar rijo saindo dele e apontando bem para o alto como um aguilhão de gado. – Um baile a fantasia é realmente uma boa idéia. Alguma coisa para quebrar a monotonia.

– É isso mesmo, Charley – diz o médico, apreciando o apoio de Cheswick. – E não de todo sem valor terapêutico.

– Claro que não – diz Cheswick parecendo mais satisfeito. – Não. Um bocado de terapia num baile a fantasia. Pode apostar.

– Seria d-d-divertido – diz Billy Bibbit.

– Sim, isso também – diz Cheswick. – Nós poderíamos fazer Dr. Spivey, é claro que poderíamos. Scanlon poderia executar o seu número de bomba humana, e eu posso fazer um círculo de apostas sobre Terapia Ocupacional.

– Eu leio mãos – diz Martini e olha de soslaio para um ponto acima de sua cabeça.

– Eu mesmo sou bastante bom em diagnosticar doenças pela leitura das mãos – diz Harding.

– Bom, bom – diz Cheswick e bate palmas. Ele nunca viu antes ninguém apoiar alguma coisa que dissesse.

– E eu – diz McMurphy com sua fala arrastada – ficaria honrado em trabalhar com roda da sorte. Já tenho uma certa experiência.

– Oh, há inúmeras possibilidades – diz o médico, endireitando-se na cadeira e realmente animado com o assunto. – Ora, eu tenho um milhão de idéias…

Ele fala a todo vapor por mais uns cinco minutos. Pode-se perceber que muitas das idéias são idéias que ele já discutiu com McMurphy. Ele descreve as brincadeiras e jogos, as barraquinhas, fala de vender entradas, e aí pára tão de repente como se o olhar da enfermeira o tivesse atingido bem entre os olhos. Pisca para ela e pergunta:

– Que é que acha da idéia, Srta. Ratched? De um baile a fantasia? Aqui, na enfermaria.

– Eu concordo que possa ter uma série de possibilidades terapêuticas – diz ela, e espera. Deixa novamente aquele silêncio emergir de dentro dela. Quando tem certeza de que ninguém vai desafiá-lo, continua. – Mas também creio que uma idéia como essa deveria ser discutida numa reunião da administração do hospital antes que seja tomada qualquer decisão. Não era essa a sua idéia, doutor?

– É claro. Apenas pensei, compreende, que seria bom sondar alguns dos pacientes antes. Mas, certamente, uma reunião do pessoal primeiro. Então daremos prosseguimento aos nossos planos.

Todo mundo sabe que aquilo é tudo o que haverá quanto ao baile.

A Chefona começa a retomar o controle das coisas tamborilando com os dedos na pasta.

– Ótimo. Então, se não há mais nenhum outro tópico novo… e se o Sr. Cheswick se sentar… acho que poderíamos entrar direto na discussão. Nós temos – ela tira o relógio da cesta e olha – ainda 48 minutos. Assim, como eu…

– Oh! Espere. Eu me lembrei de que há mais um outro tópico novo. – McMurphy está com a mão levantada, os dedos estalando. Ela olha para a mão durante muito tempo antes de dizer alguma coisa.

– Sim, Sr. McMurphy?

– Eu não, é o Dr. Spivey. Doutor, conte a eles o que o senhor descobriu a respeito dos caras que têm dificuldade de ouvir e o rádio.

A cabeça da enfermeira dá um pequeno sobressalto. quase que impossível de se ver, mas meu coração de repente disparou. Ela torna a colocar a pasta na cesta e vira-se para o médico.

– Sim – diz o médico. – Eu quase me esqueci. – Ele se recosta, cruza as pernas e junta as pontas dos dedos; posso ver que ainda está de bom humor, por causa do seu baile. – Sabe, McMurphy e eu estávamos conversando a respeito daquele problema antigo que temos aqui nessa enfermaria: a mistura de pacientes, os jovens e os velhos juntos. Não é o ambiente ideal para a nossa Comunidade Terapêutica, mas a Administração diz que não há jeito de modificar isso com o Setor da Geriatria lotado do jeito que está. Sou o primeiro a admitir que não é absolutamente uma situação agradável para nenhum dos envolvidos. Entretanto, na nossa conversa, McMurphy e eu por acaso acabamos por chegar a uma idéia que poderia tornar as coisas mais agradáveis para ambos os grupos de idade. McMurphy comentou que havia notado que alguns dos pacientes mais velhos pareciam ter dificuldades em ouvir o rádio. Ele sugeriu que o volume poderia ser aumentado de forma que os Crônicos com dificuldades de audição pudessem ouvi-lo. Uma sugestão muito humana, eu acho.

McMurphy abana a mão com modéstia, e o médico balança a cabeça para ele e continua.

– Mas eu disse a ele que havia recebido queixas anteriores de alguns dos homens mais jovens, de que o rádio já está tão alto que perturba a conversa e a leitura. McMurphy disse que não havia pensado nisso, mas comentou que realmente parecia uma pena que aqueles que queriam ler não pudessem ir sozinhos para onde fosse tranqüilo, deixando o rádio para aqueles que o quisessem ouvir. Concordei com ele em que realmente era uma pena e estava prestes a deixar de lado o assunto quando por acaso pensei na velha sala da banheira, onde guardamos as mesas durante as sessões. Nós não utilizamos mesmo aquele cômodo para mais nada; já não há mais necessidade da hidroterapia para a qual ele foi idealizado, agora que dispomos de novas drogas. Assim, que é que o grupo acharia de ter aquela sala como uma espécie de anexo, uma sala de jogos, digamos?

O grupo nada diz. Eles sabem de quem é a próxima jogada. Ela torna a dobrar a pasta de Harding, coloca-a no colo e cruza as mãos sobre ela, olhando em volta pela sala como se alguém pudesse ousar ter algo a dizer. Quando fica claro que ninguém vai falar até que ela fale, sua cabeça novamente se volta para o médico. – Soa como um bom plano, Dr. Spivey, e eu aprecio o interesse do Sr. McMurphy pelos outros pacientes, mas, embora lamente muitíssimo, creio que não temos pessoal para cobrir um anexo.

E fica tão segura de que aquilo deve ser o ponto final da conversa que começa a abrir a pasta mais uma vez. Mas o médico já pensou melhor a respeito daquilo do que ela imaginava.

– Eu também pensei nisso, Srta. Ratched. Mas, uma vez que serão em grande parte os pacientes Crônicos que ficarão aqui na enfermaria com o rádio, a maioria dos quais está restrita a espreguiçadeiras e cadeiras de rodas, um ajudante e uma enfermeira aqui dentro devem, facilmente, ser capazes de controlar quaisquer conflitos ou revoltas que possam ocorrer, não acha?

Ela não responde, e também não acha muita graça na brincadeira dele sobre conflitos e revoltas, mas seu rosto não se modifica. O sorriso permanece.

– Assim, os outros dois ajudantes e enfermeiras podem dar cobertura aos homens na sala da banheira, talvez até melhor do que aqui, num aposento maior. Que é que acham, rapazes? É uma idéia que pode funcionar? Eu mesmo estou bastante entusiasmado com ela, e acho que devemos pelo menos fazer uma tentativa, ver como é que funciona, na prática, durante alguns dias. Se não funcionar, bem, ainda temos a chave para tornar a trancá-la, não temos?

– Certo! – diz Cheswick, socando a palma da mão com o punho. Ele ainda está de pé, como se estivesse com medo de chegar perto daquele polegar de McMurphy outra vez. – Certo, Dr. Spivey. se não funcionar, ainda temos a chave para tornar a trancá-la. Pode apostar.

O médico olha em volta pela sala e vê todos os outros Agudos concordando com a cabeça. Sorriem e parecem tão satisfeitos com o que ele crê que seja ele próprio e sua idéia que enrubesce como Billy Bibbit e começa a limpar os óculos uma ou duas vezes antes de conseguir continuar. Acho divertido ver aquele homenzinho tão satisfeito consigo mesmo. Ele olha para todos os que manifestam seu assentimento, e ele mesmo balança a cabeça e diz:

– Bom, bom – e acomoda as mãos nos joelhos. – Muito bom. Agora, se isto está decidido… parece que eu esqueci, o que era que estávamos planejando discutir esta manhã?

A cabeça da enfermeira dá outra vez aquele pequeno sobressalto, e ela se inclina sobre a cesta, apanha uma outra pasta. Remexe nos papéis, e parece que as suas mãos estão trêmulas. Tira um papel, mas mais uma vez, antes que possa começar a lê-lo, McMurphy está de pé, a mão levantada, apoiando-se num pé e no outro, enquanto vai dizendo pensativamente:

– Ooolheee – e ela pára de remexer os papéis, se enrijece como se o som da voz dele a congelasse da mesma maneira como a sua havia congelado aquele crioulo de manhã. Eu torno a sentir aquela sensação de vertigem quando ela se congela. Observo-a atentamente enquanto McMurphy continua: – Ooolhee, doutor, o que eu tenho estado morrendo de vontade de saber é o que é que significava aquele sonho que eu tive na outra noite? O senhor vê, era como se eu fosse eu, no sonho, e então, de novo, assim como se eu não fosse eu… como se eu fosse uma outra pessoa qualquer que parecesse comigo… como… como o meu pai! Sim, era ele mesmo. Era o meu pai, porque às vezes quando eu me via… a ele… eu via que lá estava aquele pino de ferro atravessado no maxilar como papai costumava ter…

– Seu pai tinha um pino de ferro atravessado no maxilar?

– Bem, não tem mais, mas já teve quando eu era garoto. Ele andou por aí uns 10 meses com aquele grande pino de metal entrando por aqui e saindo por ali! Deus, ele era um verdadeiro Frankenstein. Tinha levado um golpe no maxilar com uma machadinha, quando se meteu numa briga qualquer com aquele sujeito lá no serviço de derrubada e transporte de árvores… Deixem-me contar como foi que aquele incidente aconteceu…

O rosto dela ainda se mostra calmo, como se ela tivesse mandado fazer uma matriz e a tivesse pintado, para ter exatamente a aparência que ela quer. Confiante, paciente e serena. Não mais o pequeno sobressalto, apenas aquele terrível rosto frio, um sorriso calmo estampado em plástico; uma testa limpa e lisa, nem uma ruga para mostrar fraqueza ou preocupação; olhos inexpressivos, rasgados, pintados com uma expressão que diz: eu posso esperar, eu posso perder um metro de vez em quando, mas posso esperar, e ser paciente e calma e confiante, porque sei que não há perda verdadeira para mim.

Pensei por um minuto ali que a tivesse visto ser derrotada. Talvez eu tenha visto. Mas vejo agora que não faz nenhuma diferença. Um por um os pacientes lhe estão lançando olhares de esguelha, para ver como é que ela está recebendo a maneira como McMurphy está dominando a sessão, e eles vêem a mesma coisa. Ela é grande demais para ser derrotada, cobre um lado inteiro da sala como uma estátua japonesa. Não há como movê-la, e nenhuma forma de defesa contra ela. Perdeu uma pequena batalha aqui, hoje, mas é uma batalha insignificante numa grande guerra que ela vem vencendo e que continuará vencendo. Não devemos deixar que McMurphy nos desperte esperanças quanto a algo diferente, que nos leve a fazer algum tipo de jogada estúpida. Ela continuará vencendo, exatamente como a Liga, porque tem todo o poder da Liga atrás de si. Ela não perde com as próprias derrotas, mas ganha com as nossas. Para derrotá-la não se tem de vencer duas em três partidas ou três em cinco, mas todas as vezes em que se defrontar com ela. Tão logo se abaixa a guarda; tão logo se perde uma vez, ela terá vencido definitivamente. E, eventualmente, todos nós acabamos perdendo. Ninguém pode impedi-lo.

Agora mesmo, ela está com a máquina de neblina ligada, e a névoa vem rolando tão depressa que nada consigo ver a não ser o rosto dela. Vem rolando cada vez mais densa, e me sinto tão indefeso e morto como me senti feliz há um minuto, quando ela teve aquele pequeno sobressalto – até mais indefeso do que nunca estive antes, porque agora eu sei que não existe realmente uma forma de lutar contra ela ou a sua Liga. McMurphy não pode impedir isso, da mesma maneira como eu não pude. Ninguém pode impedi-lo. E quanto mais eu penso sobre como nada pode ser modificado, mais rápido a neblina vem rolando.

E fico satisfeito quando se torna tão espessa que a gente se perde ali dentro e pode deixar tudo para lá, e ficar novamente em segurança.


Há uma partida de monopólio sendo jogada na enfermaria. Eles estão jogando há três dias, casas e hotéis em todos os lugares, juntaram duas mesas para comportar todos os títulos e as pilhas de dinheiro do jogo. McMurphy os convenceu a tornar o jogo interessante mediante o pagamento de um cêntimo para cada dólar de brinquedo que o banco emite para eles; a caixa de monopólio está cheia de trocados.

– É a sua vez de jogar, Cheswick.

– Espere um minuto antes de ele jogar. Pra que é que um homem precisa de comprar esses hotéis?

– Você precisa de quatro casas em cada grupo da mesma cor. Agora, vam'bora, pelo amor de Deus.

– Espere um minuto.

Há uma agitação de dinheiro daquele lado da mesa, notas vermelhas, verdes e amarelas voando em todas as direções.

– Você está comprando um hotel ou comemorando o Ano Novo, porra?

– É a droga da sua vez, Cheswick.

– Um dobrado! Que horror, Cheswick, onde é que isso coloca você? Será que não põe você nos meus Jardins Marvin, por acaso? Será que isso não quer dizer que você tem de me pagar, vejamos, 350 dólares?

– fodido.

– Que é que são essas outras coisas? Espere um minuto. Que é que são essas outras coisas aí espalhadas por todo o tabuleiro?

– Martini, você está vendo essas outras coisas por todo a tabuleiro há dois dias. Não é de espantar que eu esteja perdendo até o rabo. McMurphy, não vejo como é que você pode se concentrar com Martini sentado aí delirando a uma milha por minuto.

– Cheswick, deixe o Martini pra lá. Ele está realmente se virando bem. É só você pagar aqueles 350 e o Martini vai se cuidar; não recebemos um aluguel dele toda vez que uma das "coisas" dele aterrissam nas nossas propriedades?

– Espere um minuto. Tem tantas.

– Está tudo bem, Mart. É só você nos manter informados de quem é a propriedade onde elas aterrissam. Você ainda está com dados, Cheswick. Você tirou o ponto dobrado, assim joga de novo. Muito bem! Puxa! Um seis grande.

– Este me leva para… Sorte: "Você Foi Eleito Presidente do Conselho; Pague a Cada Jogador…" Fodido e fodido de novo!

– De quem é esse hotel aqui, pelo amor de Deus, na Estrada de Ferro…

– Meu amigo, isso, como qualquer pessoa pode ver, não é um hotel; é uma estação ferroviária.

– Agora espere aí um minuto…

McMurphy rodeia o seu canto da mesa, movendo as cartas, tornando a arrumar o dinheiro, ajeitando os hotéis. Há uma nota de 100 dólares saindo da fita do seu gorro, como uma credencial de imprensa; dinheiro louco, é como ele a chama.

– Scanlon? Acho que é a sua vez, companheiro.

– Me dá esses dados. Vou explodir esse tabuleiro em pedaços. Aqui vamos nós. Lebenty Leben, pode botar mais de 11 pra mim, Martini.

– Ora, está bem.

– Essa aí não, seu porra louca; isso não é a minha pedra, isso é a minha casa.

– É da mesma cor.

– Que é que essa casinha está fazendo na Companhia Elétrica?

– É uma estação geradora.

– Martini, isso que você está sacudindo não são dados…

– Deixa o cara em paz; qual é a diferença?

– São duas casas!

– Porra e o Martini tirou um grande, deixa eu ver, um grande 19. Está indo bem, Mart; isso leva você… Onde é que está a sua pedra, companheiro?

– Hem? Ora está aqui.

– Ele estava com ela na boca, McMurnhy. Excelente. São duas casas no segundo e no terceiro pré-molar, quatro casas no tabuleiro, o que leva você para a… a Avenida Baltic, Martini. É sua propriedade e é a única. Como é que um homem pode ter tanta sorte, amigos?

Martini está jogando há três dias e pára na propriedade dele praticamente todas as vezes.

– Cale a boca e jogue, Harding. É a sua vez. Harding junta os dados com os dedos longos, tocando as superfícies lisas com o polegar como se fosse cego. Os dedos são da mesma cor dos dados e parecem que foram entalhados pela outra mão. Os dados chocalham na mão dele enquanto sacode. Eles caem e vão parar na frente de McMurphy.

– Porra. Cinco, seis, sete. Má sorte, companheiro. Esta é mais uma das minhas vastas propriedades. Você me deve… hum, 200 dólares devem dar para cobrir.

– Droga.

O jogo continua e continua, ao chocalhar de dados e farfalhar de dinheiro de brinquedo.


Há longos períodos – três dias, anos – em que você não consegue ver nada, sabe onde é que está apenas através do alto-falante que ressoa acima da sua cabeça como uma bóia de sino repicando com estrondo no meio da neblina. Quando eu consigo ver, os outros geralmente se estão movendo por aí em volta de mim tão despreocupados como se nada tivessem notado além de uma névoa no ar. Creio que a neblina afeta a memória deles de alguma maneira, o que não acontece com a minha.

Até McMurphy parece não saber que está sob ação da névoa. Se ele sabe, trata de não deixar transparecer que ela o está incomodando. Está cuidando para que ninguém do pessoal o veja aborrecido por alguma coisa. Ele sabe que não há no mundo forma melhor de irritar alguém que está tentando tornar as coisas difíceis para você do que agir como se não se incomodasse.

Ele continua com as suas maneiras de grande estilo com as enfermeiras e com os crioulos, a despeito de qualquer coisa que eles lhe possam dizer, a despeito de todas as artimanhas que eles usam para fazer com que ele perca a cabeça. Uma vez ou outra uma regra estúpida qualquer o faz ficar zangado, mas ele apenas se obriga a agir com mais polidez e gentileza do que nunca, até que começa a ver como tudo aquilo é engraçado – as regras, os olhares desaprovadores que eles lançam para fazer com que elas sejam cumpridas, as maneiras de falar com você como se você não passasse de um pirralho de três anos de idade – e quando ele vê como é engraçado, começa a rir e isso os irrita o máximo. Ele está em segurança enquanto puder rir, é o que pensa, e isso funciona bastante bem. Só uma vez ele perdeu o controle e demonstrou sua raiva, mas então não foi por causa dos crioulos ou por causa da Chefona e de alguma coisa, que eles tivessem feito, e sim por causa dos pacientes e de uma coisa que eles não fizeram.

Aconteceu numa das Sessões de Grupo. Ele ficou zangado com os caras por agirem com covardia demais – por serem encagaçados demais, como ele definiu. Ele recebera apostas de todos eles para os jogos finais de beisebol, que seriam disputados na sexta-feira. Metera na cabeça que eles conseguiriam assistir aos jogos na TV, mesmo se esses jogos não fossem disputados na hora regulamentar de ver TV. Durante a reunião, alguns dias antes dos jogos, ele perguntou se não estaria bem se eles fizessem o trabalho de limpeza à noite, na hora de assistir à TV, e assistissem aos jogos durante a tarde. A enfermeira lhe diz que não, o que é mais ou menos o que ele esperava. Ela lhe explica como o horário foi estabelecido segundo uma razão delicadamente ponderada que seria totalmente conturbada pela mudança da rotina.

Aquilo não o surpreendeu, vindo da enfermeira; o que o surpreendeu foi a maneira como os Agudos agiram quando lhes foi perguntado o que achavam da idéia. Ninguém disse nada. Eles estão todos fora de vista, mergulhados em pequenas nuvens de neblina. Eu mal posso vê-los.

– Ora, olhem aqui – diz ele, mas eles não olham. Ele está esperando que alguém diga alguma coisa, que responda à sua pergunta. Ninguém age como se a tivesse ouvido. – Olhem aqui, droga – diz ele quando ninguém se mexe – há pelo menos uns 12 de vocês que eu sei com certeza que têm um interessezinho pessoal em saber quem vai ganhar esses jogos. Vocês ai não querem assistir?

– Não sei, Mack – diz Scanlon afinal. – Estou bastante acostumado a assistir àquele jornal das seis horas. E se a troca dos horários realmente for conturbar a rotina como a Srta. Ratched diz…

– A rotina que vá pro inferno. Vocês podem voltar ao horário de rotina na semana que vem, quando os jogos tiverem acabado. Que é que acham, companheiros? Vamos fazer uma votação pra decidir se assistimos à TV durante a tarde em vez da noite. Todo mundo a favor?

– Sim – grita Cheswick e se levanta.

– Quero dizer, todos que forem a favor levantem a mão, O.K.? Todo mundo a favor?

A mão de Cheswick se levanta. Alguns dos outros olham em volta para ver se há mais algum idiota. McMurphy não consegue acreditar no que vê.

– Ora, vamos, que droga é essa? Pensei que vocês aí pudessem decidir por votos a respeito de programas de ação e coisas desse tipo. Não é assim mesmo, doutor?

O médico concorda balançando a cabeça sem levantar o olhar.

– Então O.K. Agora, quem quer assistir aos jogos? Cheswick levanta a mão ainda mais alto e olha em volta furioso. Scanlon sacode a cabeça e então levanta a mão, mantendo o cotovelo no braço da cadeira. E mais ninguém. McMurphy não pôde dizer uma palavra.

– Se isto está decidido, então – diz a enfermeira – talvez devêssemos prosseguir com a sessão.

– É – diz ele e se afunda na cadeira até que a aba do gorro quase lhe toca o peito. – É, talvez devêssemos prosseguir com a porra da sessão mesmo.

– É – diz Cheswick, lançando um olhar duro para todos os outros e sentando-se. – Sim, vamos continuar com a bendita sessão. – Ele balança a cabeça de maneira contraída, então acomoda o queixo no peito fazendo uma carranca. Está satisfeito por se sentar ao lado de McMurphy, sentindo-se corajoso assim. É a primeira vez que Cheswick encontra alguém que o apóie nas suas causas perdidas.

Depois da sessão, McMurphy recusa-se a falar com qualquer um deles, de tão zangado e decepcionado que está. É Billy Bibbit quem se aproxima dele.

– Alguns de nós estamos a-aqui há ci-ci-cinco anos, Randle – diz Billy. Ele enrolou uma revista e a está torcendo nas mãos; pode-se ver as marcas de queimaduras de cigarros nas costas de suas mãos: – E alguns de nós fi-fi-ficarão aqui talvez por um ou-outro pe-período desses, muito depois de você ter ido em-em-embora, muito depois de esse campeonato de beisebol ter acabado. E… você não vê… – Ele joga a revista no chão e se afasta. – Oh, de que é que adianta, seja lá como for.

McMurphy fica olhando para ele, aquela ruga de incompreensão juntando de novo as sobrancelhas ruivas.

Ele discute durante o resto do dia com alguns dos outros sobre a razão por que eles não votaram, mas ninguém quer falar sobre o assunto, de forma que ele parece desistir, nada mais diz a respeito do caso até a véspera do dia do início das finais dos jogos.

– Cá estamos na quinta-feira – diz ele, sacudindo a cabeça.

Acha-se sentado numa das mesas na Sala da Banheira com os pés numa cadeira, tentando girar o gorro num dos dedos. Outros Agudos vagueiam por ali e tentam não prestar atenção a ele. Ninguém mais joga pôquer ou vinte-e-um com ele a dinheiro – depois que os pacientes se recusaram a votar, ele ficou zangado e os depenou de tal maneira nas cartas aue todos estão devendo tanto a ele que têm medo de continuar – e não podem jogar apostando cigarros porque a enfermeira começou a obrigar os homens a deixarem os pacotes na mesa da Sala das Enfermeiras, onde ela lhes entrega um maço por dia, alegando que é para o bem da saúde deles, mas todo mundo sabe que é para impedir que McMurphy ganhe todos nas cartas. Sem pôquer e sem vinte-e-um, está tudo tranqüilo na Sala da Banheira, ouve-se apenas o som do alto-falante que vem da enfermaria. Está tão tranqüilo aue se pode ouvir aquele cara lá em cima na Enfermaria dos Perturbados a subir pela parede, lançando um sinal ocasional, luu luu luuu, um som entediado e desinteressado, como um neném que chora, esgoelando-se até dormir.

– Quinta-feira – repete McMurphy.

– Luuuuu – berra o cara lá em cima.

– É o Rawler – diz Scanlon, olhando para o teto. Ele não quer prestar atenção a McMurphy. – Rawler, o Berrador. Ele passou por esta enfermaria há uns anos. Não ficava quieto de maneira que agradasse a Srta. Ratched, se lembra, Billy? Luu luu luu, o tempo todo, a um ponto que pensei que eu fosse ficar maluco. O que eles deviam fazer com todo aquele bando de malucos lá de cima é jogar umas duas granadas no dormitório. Eles não têm nenhuma utilidade para ninguém…

– E amanhã é sexta-feira – diz McMurphy. Ele não deixa Scanlon mudar de assunto.

– Sim – diz Cheswick, fazendo uma carranca. -

Amanhã é sexta-feira.

Harding vira a página da sua revista.

– E com isso fará quase uma semana que o nosso amigo McMurphy está conosco sem ter derrubado o governo, é isso o que você está dizendo Cheswick? Deus, pensar no abismo de apatia no qual caímos… uma vergonha, uma vergonha lamentável.

– Pro inferno com essa história – diz McMurphy. – O que Cheswick quer dizer é que o primeiro jogo do torneio vai ser disputado e transmitido pela TV amanhã, e o que é que nós vamos estar fazendo? Vamos estar esfregando mais uma vez essa porcaria desse berçário.

– É isso – diz Cheswick. – O Berçário Terapêutico da Mamãezinha Ratched.

Encostado na parede da sala eu começo a me sentir como um espião; o cabo da vassoura nas minhas mãos é feito de metal, em vez de madeira (o metal é melhor condutor) e é oco; há lugar de sobra lá dentro para esconder um microfone miniatura. Se a Chefona estiver ouvindo isso, ela realmente vai negar o Cheswick. Apanho uma bola dura de chiclete do meu bolso e retiro uns fiapos que estão grudados nela, coloco-a na boca e deixo ficar até amolecer.

– Deixe-me ver de novo – diz McMurphy. – Quantos de vocês aí votariam comigo se eu tornasse a propor aquela mudança de horário?

Cerca de metade dos Agudos balança a cabeça dizendo sim, muito mais do que os que realmente votariam. Ele repõe o gorro na cabeça e apóia o queixo nas mãos.

– Vou contar uma coisa para vocês, pois, eu não consigo entender. Harding, que é que há de errado com você, para sair correndo da raia? Está com medo de que se você levantar a mão aquela velha escrota vá cortá-la fora.

Harding ergue uma sobrancelha fina.

– Talvez eu esteja, talvez eu tenha medo de que ela vá cortá-la fora se eu a levantar.

– E você, Billy? É disso que você está com medo?

– Não. Não acho que ela vá f-f-fazer coisa nenhuma, mas… – ele encolhe os ombros e suspira e sobe pelo grande painel de torneiras que controla os bocais dos chuveiros, fica empoleirado lá em cima como um macaco -… mas eu não acho que uma votação a-a-a-adiantaria nada. Não a l-longo prazo. Simplesmente não adianta, M-Mack.

– Não adianta nada? Porra! Vai fazer um bocado de bem a vocês aí apenas o exercício de levantar o braço.

– Ainda assim é um risco, amigo. Ela tem sempre a capacidade de tornar as coisas piores para nós. Um jogo de beisebol não vale o risco – diz Harding.

– Porra, quem foi que disse que não? Cristo, eu não perco um Campeonato Mundial há anos. Mesmo quando eu estava na cadeia num mês de setembro, eles nos deixaram trazer uma TV e assistir aos jogos; eles teriam tido um belo motim nas mãos se não tivessem deixado. Talvez eu tenha que pôr aquela maldita porta abaixo e ir andando até algum bar no centro para assistir ao jogo, só eu e o meu companheiro Cheswick.

– Ora, aí está uma sugestão de muito mérito – diz Harding atirando a revista. – Por que não apresentar isso para uma votação na Sessão de Grupo amanhã? "Srta. Ratched, eu gostaria de apresentar uma moção para que a enfermaria seja transportada em massa para o Hora Vaga, para tomar cerveja e ver televisão."

– Eu apoiaria a moção – diz Cheswick. – Sem tirar nem pôr.

– Pro inferno com esse negócio de massa – diz McMurphy. – Estou cansado de olhar pra vocês, bando de velhinhas; quando eu e Cheswick dermos o fora daqui acho que, por Deus, vou fechar a porta a pregos quando sair. Vocês, aí, é melhor ficarem por aqui; a mamãezinha de vocês provavelmente não deixaria vocês atravessarem a rua.

– Ah, é? É isso, é? – Fredrickson se levantou e se aproximou por trás de McMurphy. – Você vai simplesmente levantar uma dessas suas botonas de machão e derrubar a porta com um pontapé? É um cara duro, realmente.

McMurphy quase que nem olha para Fredrickson; aprendeu que Fredrickson pode agir de maneira meio explosiva de vez em quando, mas é uma encenação que termina diante da mais leve ameaça.

– Então como é que é, valentão – continua Fredrickson. – Você vai derrubar a porta a pontapés e nos mostrar o quanto você é duro?

– Não, Fred, acho que não. Eu não gostaria de arranhar a minha bota.

– Ah, é? O.K. Você está botando tanta banca, conta direitinho como é que você iria dar o fora daqui?

McMurphy olha em volta.

– Bem; acho que eu poderia arrebentar a tela de uma dessas janelas com uma cadeira quando e se me desse na telha…

– Ah, é? Você poderia, poderia? Arrebentar direto? O.K.! Vamos ver você tentar. Vam'bora, valentão, aposto 10 dólares como você não consegue.

– Nem se incomode em tentar, Mack – diz Cheswick. – Fredrickson sabe que você vai apenas quebrar uma cadeira e acabar na Enfermaria dos Perturbados. No primeiro dia em que chegamos aqui, nos deram uma demonstração sobre essas telas. São feitas de maneira especial. Um técnico pegou uma cadeira igualzinha a essa em que estão os seus pés e deu com ela na tela até que a cadeira não passasse de madeira estraçalhada. Quase que nem arranhou a tela.

– Então está bem – diz McMurphy, olhando em volta. Posso ver que ele está ficando mais interessado. Espero que a Chefona não esteja ouvindo isso; ele vai parar na Enfermaria dos Perturbados em uma hora. – Precisamos de uma coisa mais pesada. Que tal uma mesa?

– A mesma coisa que a cadeira. É da mesma madeira, do mesmo peso.

– Está bem, por Deus, então vamos descobrir o que é que eu teria de atirar por aquela tela para arrebentá-la. E se vocês não acreditam que eu seria capaz de fazê-lo, se tivesse necessidade, então é melhor pensarem de novo. O.K… alguma coisa maior que uma mesa ou uma cadeira… Bem, se fosse de noite eu poderia atirar aquele vaso gordo; ele é bastante pesado.

– Macio demais – diz Harding. – Bateria na tela e ela o cortaria em quadradinhos como uma berinjela.

– Que tal uma das camas?

– Uma cama é grande demais, ainda que você conseguisse levantá-la. Não passaria pela janela.

– É claro que eu conseguiria levantá-la. Bem, que diabo, bem aí onde você está: aquela coisa em que Billy está sentado. Aquele grande painel de controles com todas as manivelas e alças. Isso é bastante duro, não é? E, porra, deve ser suficientemente pesado.

– Claro – diz Fredrickson. – Isso é a mesma coisa que você derrubar a porta de aço da frente a pontapés.

– Que é que há de errado em usar o painel? Não parece estar pregado no chão.

– Não, não está aparafusado… provavelmente nada tem que o segure exceto uns poucos fios de arame… mas olhe para ele, por Deus.

Todo mundo olha. O painel é de aço e cimento, da metade do tamanho de uma das mesas, provavelmente pesa duzentos quilos.

– O.K., estou olhando para ele. Não parece nada maior que os fardos de feno que já carreguei para dentro de caminhões.

– Temo, meu amigo, que este aparelho vá pesar um pouco mais do que os seus fardos de feno.

– Cerca de mais um quarto de tonelada, aposto – diz Fredrickson.

– Ele tem razão, Marck – diz Cheswick. – Deve ser terrivelmente pesado.

– Droga, será que vocês aí estão me dizendo que não consigo levantar aquela tralhazinha insignificante?

– Meu amigo, não me lembro de nada a respeito de psicopatas serem capazes de mover montanhas, além das suas outras aptidões dignas de menção.

– O.K.! Você diz que eu não consigo levantá-lo. Bem, por Deus…

McMurphy salta da mesa e começa a tirar o paletó verde; as tatuagens, surgindo fora das mangas da camiseta, saltam nos músculos de seus braços.

– Então quem está disposto a apostar cinco mangos? Ninguém vai me convencer de que não sou capaz de fazer uma coisa até que eu tenha pelo menos tentado fazê-lo. Cinco mangos.

– McMurphy, isto é tão idiota como a sua aposta sobre a enfermeira.

– Quem tem cinco mangos que queira perder? É pegar ou largar…

Todos começam a assinar vales imediatamente. Ele os venceu tantas vezes no pôquer e no vinte-e-um que eles não tinham esperança de ir à forra, mas esta é uma boa oportunidade. Não sei qual o objetivo dele; mesmo grande e forte como é, seriam precisos três dele para levantar aquele painel, e ele sabe disso. Basta-lhe apenas olhar para a coisa e vê que provavelmente não conseguiria movê-la, quanto mais levantá-la. Só mesmo um gigante para tirá-la do chão. Mas quando os Agudos estão com todos os vales assinados, ele se adianta para o Dainel, tira Billy Bibbit de lá de cima e cospe nas grandes palmas das mãos calejadas, bate palmas, movimenta os ombros.

– O.K., saiam do caminho. Às vezes, quando me vou exercitar, uso todo o ar das redondezas e homens adultos desmaiam de sufocação. Cheguem para trás. Há uma possibilidade de cimento estilhaçar-se e aço voar. Levem as mulheres e as crianças para algum lugar seguro. Para trás…

– Por Deus, ele bem que é capaz de fazê-lo – resmunga Cheswick.

– Claro, talvez ele consiga convencê-lo a sair do chão só com um papo – diz Fredrickson.

– É mais provável que ele adquira uma bela hérnia – comenta Harding. – Ora, vamos, McMurphy, pare de agir como um idiota; não existe um homem que seja capaz de levantar esse negócio.

– Para trás, mariquinhas, vocês estão utilizando o meu oxigênio.

McMurphy se balanceia nos pés algumas vezes para obter uma boa base, esfrega as palmas das mãos nas coxas, em seguida se abaixa e segura as alavancas dos lados do painel. Quando começa a fazer força, todos se põem a vaiá-lo e a ridicularizá-lo. Ele solta, levanta-se e torna a ajeitar os pés.

– Desistindo? – Fredrickson sorri.

– Apenas me aquecendo. Aqui vai a força de verdade… – e torna a agarrar as alavancas.

E de repente ninguém mais o está vaiando. Os braços dele começam a inchar, e as veias saltam à superfície. Ele fecha os olhos e seus lábios se esticam e descobrem os dentes. A cabeça se inclina para trás, e tendões saltam para fora como cordas espiraladas, descendo do pescoço pesado pelos dois braços, até as mãos. Todo o seu corpo estremece com o esforço, enquanto tenta levantar uma coisa que ele sabe, uma coisa que todo mundo sabe que ele não pode levantar.

Mas, por apenas um segundo, quando sentimos o cimento estremecer sob os nossos pés, pensamos, Dor Deus, ele bem que é capaz de fazê-lo.

Então a respiração dele explode e ele cai para trás frouxamente de encontro à parede. Há sangue nas alavancas onde ele rasgou as mãos. Ele arqueja por um minuto encostado na parede, com os olhos fechados. Não há nenhum som exceto o da sua respiração ofegante; ninguém diz nada.

Ele abre os olhos e olha em volta para nós. Um a um, ele vai olhando para todos – até para mim – e então remexe nos bolsos tirando todos os vales que ganhou nos últimos dias no pôquer. Inclina-se sobre a mesa e tenta separá-los, mas suas mãos estão paralisadas, transformadas em garras vermelhas e ele não consegue mover os dedos.

Finalmente, atira o maço inteiro no chão – provavelmente 40 ou 50 dólares de cada homem. Vira-se para sair da Sala da Banheira. Pára na porta e olha para trás, para todo mundo de pé ali.

– Mas, seja como for, eu tentei – diz ele. – Porra, pelo menos isso eu realmente fiz, não fiz?

Sai e deixa aqueles pedaços de papel manchados no chão para quem queira separá-los.


* * *

Um médico visitante, coberto de teias de aranhas no crânio amarelo, está falando para os jovens internos na Sala do Pessoal.

Eu passo por ele varrendo.

– Oh, e o que é isto aqui? – Ele me lança um olhar como se eu fosse alguma espécie de inseto. Um dos residentes aponta para as orelhas, indicando que sou surdo, e o médico visitante continua.

Empurro a vassoura até ficar cara a cara com um cartaz grande e lindo que o Relações-Públicas trouxe quando estava uma névoa tão espessa que eu não o vi. A fotografia é de um cara pescando com um anzol em algum lugar nas montanhas, parece com as Ochocos, perto de Paineville – a neve nos picos, aparecendo acima dos pinheiros, longos troncos de álamos enfileirados na beirada da corrente, tufos de azedinha espalhados em manchas de um verde vibrante. O cara está lançando a isca num tanque atrás de uma rocha. Não é lugar para uma mosca, é um lugar para uma única minhoca num anzol número seis – ele faria melhor se deixasse a isca flutuar sobre aquelas cascatas mais abaixo na correnteza.

Há um caminho que desce entre os álamos, e empurro a vassoura pelo caminho adentro e me sento numa pedra e torno a olhar para fora, através da moldura, para o médico visitante que continua falando com os residentes. Posso vê-lo quando bate num ponto qualquer na palma da mão com o dedo, mas não consigo ouvir o que ele diz por causa do ruído da correnteza fria e espumante por entre as rochas. Posso sentir o cheiro da neve no vento quando ele sopra para baixo, vindo dos picos. Posso ver tocas de toupeiras corcoveando sob o mato e os pastos de búfalos. É um lugar realmente agradável para esticar as pernas e se descontrair.

A gente se esquece – se não se senta e faz o esforço de se lembrar -, esquece de como era no antigo hospital. Eles não tinham lugares agradáveis como este nas paredes, por onde se pode subir e entrar. Não tinham TV ou piscina ou galinha duas vezes por mês. Nada tinham além de paredes e cadeiras, camisas-de-força das quais a gente levava horas dando duro para sair de dentro. Aprenderam muita coisa desde então. "Andou-se num longo caminho", diz o Relações-Públicas de cara de lua. Eles fizeram com que a vida parecesse muito agradável, com tintas, decorações e cromados no banheiro. "Um homem que quisesse fugir de um lugar agradável como esse", diz o gordo Relações-Públicas, "puxa, teria de ter algo de errado nele".

Lá fora, na Sala do Pessoal, a autoridade visitante está apertando os cotovelos e tremendo como se tivesse frio, enquanto responde às perguntas que os residentes lhe fazem. Ele é magro e descarnado, e as roupas esvoaçam em torno de seus ossos. Ele fica ali, apertando os cotovelos e tremendo. Talvez também sinta o vento frio da neve que vem dos picos.


* * *

Está ficando difícil localizar minha cama à noite, tenho de engatinhar por aí, sobre mãos e joelhos, tateando sob os estrados até achar meus pedaços de chicletes colados. Ninguém se queixa da neblina. Agora eu sei por que: mesmo ruim como é, a gente pode deslizar lá para dentro dela e sentir-se em segurança. É isso que McMurphy não consegue compreender – o nosso desejo de estar em segurança. Ele fica tentando arrastar-nos para fora da neblina, para fora em terreno aberto onde seríamos alvos fáceis de serem atingidos.


* * *

Há um carregamento de órgãos congelados que veio cá para baixo – corações, rins, cérebros e coisas assim. Posso ouvi-los a rolar para dentro do frigorífico através da calha de transporte de carvão. Um sujeito sentado na sala, em algum lugar que não posso ver, está falando que alguém lá de cima da Enfermaria dos Perturbados se matou. O velho Rawler. Cortou as duas bolas e sangrou até a morte, sentado bem ali na latrina, no banheiro. Meia dúzia de pessoas ali dentro, junto com ele, não se apercebeu daquilo até que ele caísse morto no chão.

O que faz com que as pessoas fiquem tão impacientes eu não consigo imaginar, tudo o que ele tinha de fazer era esperar.


* * *

Sei como é que eles fazem funcionar a máquina de neblina. Nós tínhamos um pelotão inteiro que costumava pôr em funcionamento máquinas de neblina em volta dos aeroportos, no exterior. Sempre que o Serviço Secreto desconfiava que poderia haver um bombardeio, ou se os generais tinham alguma coisa secreta que queriam experimentar – sem que ninguém visse, tão bem escondido que nem os espiões da base pudessem notar o que estava acontecendo – eles punham neblina no campo.

É um equipamento simples: pega-se um compressor comum e faz-se com que ele sugue toda a água de um tanque, e um óleo especial de um outro tanque, que se misturam no compressor, e da haste negra na extremidade da máquina começa a sair uma nuvem branca de neblina que pode cobrir um campo de pouso inteiro em 90 segundos. A primeira coisa que eu vi quando desci na Europa foi a neblina fabricada com essas máquinas. Havia alguns interceptadores logo atrás do nosso avião, e tão logo tocamos o chão o pessoal da neblina ligou as máquinas. Podíamos olhar em volta do avião, limpamos as janelas e observamos os jipes que rebocavam as máquinas mais para perto do avião e vimos a neblina ir saindo em rolos, até atravessar o campo de pouso e se grudar nas janelas como algodão molhado.

A gente encontrava o caminho de saída do avião seguindo um apito de juiz que o tenente ficava tocando, que soava como o grasnado de um ganso. Tão logo a gente saía da cabina não conseguia mais ver além de um metro em qualquer direção. Tinha-se a impressão de que se estava sozinho no campo de pouso. Você estava a salvo do inimigo, mas se sentia terrivelmente sozinho. Os sons morriam e se dissolviam e não se podia ouvir ninguém do resto do grupo, nada além do grasnado do apito que saía de uma brancura suave e macia, tão espessa que o corpo da gente simplesmente se dissolvia nela logo abaixo do cinto; além da camisa marrom e da fivela de metal, nada se via que não fosse o branco, como se da cintura para baixo a gente também se tivesse transformado em neblina.

E então um sujeito qualquer, tão perdido quanto você, de repente aparecia bem diante de seus olhos, e com mais clareza do que você jamais viu o rosto de um homem em toda a sua vida. Seus olhos faziam tanto esforço para ver através da neblina que, quando alguma coisa realmente aparecia, cada detalhe era muitas vezes mais claro que o normal, tão claro que os dois tinham de desviar o olhar. Quando um homem aparecia, você não queria olhar para a cara dele e ele não queria olhar para a sua, porque é tão doloroso ver alguém com tanta clareza que é como olhar dentro da pessoa, mas ainda assim você também não queria desviar o olhar e perdê-lo por completo. Você tinha uma escolha: podia esforçar-se e olhar para as coisas que apareciam na sua frente na neblina, por mais doloroso que fosse, ou podia relaxar os nervos e se perder.

Quando eles usaram a máquina de neblina na enfermaria pela primeira vez, uma que compraram dos excedentes do Exército, e a esconderam nos escaninhos no prédio novo antes que nos mudássemos, eu ficava olhando para qualquer coisa que surgisse da neblina por tanto tempo e com tanto esforço quanto me fosse possível, para ficar informado das coisas, do mesmo jeito como eu costumava fazer quando eles soltavam neblina nos aeroportos da Europa. Não havia ninguém soprando um apito para indicar o caminho, não havia corda alguma onde me segurar. Assim, fixar meus olhos em alguma coisa era a única maneira que eu encontrava de não me perder. Às vezes, mesmo assim, eu me perdia, ia fundo demais, na tentativa de me esconder, e todas as vezes que eu fazia isso, parecia que eu sempre ia parar no mesmo lugar, na mesma porta de metal com a fileira de rebites, como olhos, e sem nenhum número. Da mesma maneira que o quarto atrás da porta me atraía para si, não importando o quanto eu me esforçasse para ficar longe dele; como se a corrente gerada pelos demônios que havia naquele quarto fosse conduzida por um radioemissor no meio da neblina e me puxasse de volta através dela como um robô. Eu vagueava pela neblina durante dias, com medo de nunca mais ver nada, e então aquela porta estava lá, abrindo-se para mostrar o colchão que cobria o outro lado para deter os sons, os homens de pé, enfileirados como zumbis entre fios brilhantes de cobre e luzes fluorescentes pulsantes, e o movimento brilhante da eletricidade em arcos voltaicos. Eu tomava o meu lugar na fila e esperava minha vez de ir à mesa. A mesa tinha a forma de um cruz, com as sombras de uma multidão de homens assassinados impressas nelas, silhuetas de pulsos e tornozelos sob as tiras de couro, esverdeadas de suor e uso, uma silhueta de um pescoço e de uma cabeça a subir para uma faixa prateada que lhe fica atravessada na testa. E um técnico nos controles ao lado da mesa, que erguendo o olhar de seus botões para a fileira, aponta para mim com uma luva de borracha. "Espere, eu conheço aquele grandalhão filho da puta ali… é melhor marretar logo sua cabeça ou pedir mais reforços. Ele é um caso terrível, é de sair arrebentando tudo.

Assim, eu costumava não tentar ir muito fundo por medo de, perdido, acabar na porta do Tratamento de Choque. Eu olhava firme para qualquer coisa que aparecesse e me agarrava a ela como um homem se agarra a um corrimão numa nevasca. Mas eles continuavam a fazer a neblina cada vez mais espessa, e parecia-me que, não importando o quanto eu me esforçasse em tentar, duas ou três vezes por mês eu ia parar diante daquela porta que se abria com o cheiro ácido de fagulhas e de ozônio. A despeito de tudo que eu pudesse fazer, estava ficando cada vez mais difícil evitar que eu me perdesse.

Então descobri uma coisa: Eu não tenho de acabar diante daquela porta se ficar parado quando a neblina vem e me cobre, se simplesmente ficar quieto. O problema é que eu mesmo ia de encontro àquela porta porque ficava com medo de me perder e começava a gritar de maneira que eles pudessem me achar. De certa forma, eu gritava para que eles me achassem; eu achava que qualquer coisa seria melhor do que ficar perdido para sempre, até o Tratamento de Choque. Agora, não sei. Estar perdido não é tão ruim assim.

Durante toda esta manhã esperei que eles lançassem neblina sobre nós outra vez. Nos últimos dias, eles têm feito isso cada vez com mais freqüência. Minha impressão é de que eles o fazem por causa de McMurphy. Ainda não o ajustaram com controles, e estão tentando apanhá-lo de guarda aberta. Percebem que ele está destinado a ser um problema; uma meia dúzia de vezes ele já sublevou Cheswick e Harding e alguns dos outros, ao ponto de parecer que eles estavam realmente aptos a enfrentar um dos crioulos – mas sempre, bem no momento em que parecia que o paciente venceria, a neblina começava, como está começando agora.

Ouvi o compressor começar o bombeamento alguns momentos atrás, bem na hora em que começavam a tirar as mesas da enfermaria para a sessão terapêutica. A névoa já está escoando lentamente pelo chão, tão espessa que as pernas das minhas calças estão molhadas. Estou limpando as janelas da Sala das Enfermeiras, e ouço a Chefona pegar o telefone e ligar para o médico, para avisá-lo de que já estamos prontos para a sessão, e dizer-lhe que talvez fosse melhor deixar uma hora livre esta tarde para uma reunião do pessoal administrativo. "A razão para isso", diz ela, "é que eu creio que já é mais do que tempo de termos uma discussão a respeito do paciente Randle McMurphy e se ele deve continuar nesta enfermaria ou não." Ela ouve um minuto, em seguida diz a ele: "Não creio que seja inteligente deixá-lo continuar a perturbar os pacientes da maneira como vem fazendo estes últimos dias."

É por isso que ela está pondo neblina na enfermaria antes da sessão. Não costuma fazer isso. Mas hoje ela vai tentar alguma coisa contra McMurphy, provavelmente mandá-lo para a Enfermaria dos Perturbados. Eu largo o trapo de limpar a janela e vou para a minha cadeira no fim da fila dos Crônicos, quase sem poder ver os outros irem para suas cadeiras e o médico entrar pela porta, limpando os óculos, como se pensasse que aquelas imagens enevoadas se devessem às suas lentes embaçadas e não à neblina.

Ela está vindo em rolos, mais espessa do que nunca.

Posso ouvi-los lá fora, tentando prosseguir com a sessão, falando alguma besteira a respeito da gagueira de Billy Bibbit e como foi que começou. As palavras chegam até mim como se passassem através de água, de tão espessa está a neblina. Na realidade é tão parecida com a água que faz com que eu flutue, saindo da minha cadeira, e não sei onde fica o teto durante algum tempo. Flutuar faz com que de início eu me sinta um pouco enjoado. Nada consigo ver. Nunca esteve assim tão espessa a ponto de me fazer flutuar desse jeito.

As palavras ficam abafadas e altas, somem e reaparecem, enquanto vou flutuando. Mas, por mais altas que fiquem, tão altas, às vezes, que sei que estou bem do lado de quem está falando, continuo sem nada ver.

Reconheço a voz de Billy, gaguejando mais do que nunca porque está nervoso.

– … ex – ex – expulso da universidade po – po – porque abandonei o Serviço Militar. Não c – c – conseguia suportá-lo. S – s – s – sempre que o oficial de serviço da tropa fazia a chamada, e chamava "Bibbit", não conseguia responder. A gente devia dizer ahh-ahh-ahh… – Ele está engasgado com a palavra, como se tivesse um osso na garganta. Eu o escuto quando engole e começa de novo. – A gente devia dizer "aqui, senhor", e eu nunca consegui fazer isso sa – sair.

A voz dele vai ficando velada e aí a voz da Chefona vem cortante da esquerda.

– Pode lembrar-se, Billy, de quando foi que teve problemas de fala pela primeira vez? Quando foi que gaguejou pela primeira vez, você se lembra?

Não sei dizer se ele está rindo ou não.

– Pri – primeira vez que gaguejei? Primeira vez que gaguejei. A primeira palavra que eu disse ga – gag – gue – jando foi m – m – m – mamãe.

Então a conversa desaparece por completo; nunca vi isto antes. Talvez Billy também se tenha escondido na neblina. Talvez todos afinal e para sempre se tenham juntado e recuado para dentro da neblina.

Uma cadeira e eu passamos flutuando um pelo outro. É a primeira coisa que vejo. Ela vem surgindo gradualmente para fora da neblina, bem à minha direita, e por alguns segundos fica bem ao lado do meu rosto, apenas fora do meu alcance. Ultimamente me tenho habituado a deixar as coisas em paz quando elas aparecem na neblina. Fico sentado imóvel e não tento agarrá-las. Mas desta vez estou com medo, da maneira como eu costumava ficar. Tento com todas as minhas forças empurrar-me até a cadeira e agarrá-la, mas não há nada em que me apoiar para tomar impulso e tudo que consigo é me agitar no ar, tudo que posso fazer é ver a cadeira tornar-se mais clara, mais clara do que nunca, a ponto de eu poder até distinguir a impressão de um dedo onde um trabalhador tocou o verniz antes que estivesse seco. Aparece gradualmente por alguns segundos, para então desaparecer aos poucos. Nunca vi as coisas flutuarem desse jeito. Nunca vi a neblina tão espessa assim, a tal ponto que, se eu quiser, não consigo descer para o chão, ficar de pé e andar. É por isso que estou com tanto medo; sinto que desta vez vou sair flutuando para algum lugar, para sempre…

Vejo um Crônico surgir, flutuando, um pouco abaixo de mim. É o velho Coronel Matterson, lendo a escrita enrugada daquela mão longa e amarelada. Eu o observo com cuidado porque acho que é a última vez em que o verei. O rosto dele está enorme, quase maior do que posso suportar. Seus cabelos e suas rugas estão grandes, como se eu estivesse olhando para ele através de um microscópio. Ele se mostra com tanta clareza que vejo toda a sua vida. O rosto tem 60 anos de bases do Exército do sudoeste, sulcado pelas rodas de ferro das carretas de munição, gasto até os ossos por milhares de pés em marchas forçadas.

Ele estende aquela mão longa e a coloca diante dos olhos e olha atentamente para ela, levanta a outra mão e sublinha as palavras com um dedo de madeira envernizada que a nicotina tornou da cor de uma coronha. A voz dele é profunda, lenta e paciente, e sinto, quando ele lê, as palavras saírem pesadas sobre os seus lábios quebradiços.

"Agora… A bandeira é… A – mé – rica. América é… a ameixa. O pêssego. A me – lan – ci – a. América é… a jujuba. A semente de abóbora. América é… te – le -visão."

É verdade. Está tudo escrito naquela mão amarela. Posso ler junto com ele.

"Agora… A cruz é… Mé – xi – co." Ele levanta o olhar para ver se estou prestando atenção, e quando percebe que sim, sorri para mim e continua: "O México é… a noz. A avelã. O milho. O México é… o arco-íris. O arco-íris é… de madeira. O México é de ma – deira."

Posso ver aonde é que ele quer chegar. Tem repetido as mesmas coisas durante todos esses seis anos que esteve aqui, mas eu nunca lhe prestei atenção, achava que não passava de uma estátua falante, uma coisa feita de osso e artrite, divagando incoerentemente sem parar sobre aquelas suas definições estúpidas, que não faziam um pingo de sentido. Agora, afinal, entendo o que ele está dizendo. Tento segurá-lo para um último olhar, para me lembrar dele, e isto é o que me faz olhar com atenção suficiente para compreendê-lo. Ele faz uma pausa e torna a erguer o olhar para mim, para se assegurar de que estou entendendo, e quero berrar para ele que sim, que compreendo: o México é como a avelã; é castanho e duro e a gente o sente com o olho e a gente o sente como uma avelã! Você está fazendo sentido, velho, um sentido próprio. Você não é o louco que eles pensam. Sim… eu compreendo…

Mas a neblina obstruiu minha garganta a tal ponto que não consigo emitir um som. Quando ele se vai afastando no ar, eu o vejo tornar a se inclinar sobre a mão.

"Agora… O carneiro verde é… Ca – na – dá. O Canadá é… o abeto. O trigal. O ca – len – dá – rio…"

Forço os olhos para vê-lo enquanto se afasta. Forço tanto meus olhos que eles doem e tenho de os fechar. Quando os abro novamente, o Coronel já desapareceu. Continuo flutuando sozinho outra vez, mais perdido do que nunca.

É dessa vez, digo a mim mesmo. Estou indo para sempre.

Lá está o velho Pete, o rosto como um holofote. Ele está a 50 metros à minha esquerda, mas posso vê-lo tão nitidamente como se não houvesse neblina. Ou talvez ele esteja bem perto e muito pequeno mesmo, não tenho certeza. Fala uma vez comigo e diz como está cansado, e só o fato de ele repetir isso me faz ver toda a sua vida naquela estrada de ferro, esforçando-se para descobrir como ver as horas num relógio, suando enquanto tenta enfiar o botão na casa certa do seu uniforme de ferroviário, dando absolutamente o melhor de seus esforços para ficar à altura de um emprego que é tão fácil para os outros que eles se podem recostar numa cadeira acolchoada e ler histórias de mistério e livrinhos sobre garotas. Não que ele alguma vez tenha pensado em ficar realmente à altura – sabia desde o início que não podia -, mas tinha de tentar, que fosse apenas para continuar a conviver com os outros. Assim, durante 40 anos ele foi capaz de viver, se não dentro do mundo dos homens, pelo menos à margem dele.

Posso ver tudo isso, e ser ferido por isso, assim como fui ferido por ver coisas no Exército, na guerra. Da maneira como fui ferido ao ver o que aconteceu com papai e com a tribo. Pensei que já tivesse passado do ponto de ver tais coisas e me angustiar por elas. Não há qualquer sentido nisso. Nada há que possa ser feito.

– Estou cansado – é o que ele diz.

– Sei que você está cansado, Pete, mas não posso fazer bem nenhum a você em ficar me angustiando e me desgastando por causa disso. Você sabe que não posso.

Pete flutua da mesma maneira que o velho Coronel.

Aí vem Billy Bibbit, do mesmo modo como Pete veio. Eles estão todos desfilando para um último olhar. Sei que Billy não pode estar a mais de um metro de distância, mas parece tão pequeno que dá a impressão de estar afastado um quilômetro. Seu rosto está virado para mim como se fosse de um mendigo, precisando de muito mais do que qualquer pessoa lhe possa dar. Sua boca move-se como a de uma bonequinha.

– E até quando eu a pedi em ca – casamento, eu estraguei tudo. Eu disse: "Querida, você quer ca – ca – ca – ca -ca -… até que a garota caiu na gar – gargalhada.

A voz da enfermeira, não consigo ver de onde vem:

– Sua mãe me falou a respeito dessa moça, Billy. Aparentemente, ela era muito inferior a você. Que é que você acha que havia nela que o assustava tanto, Billy?

– Eu estava ap – ap – apaixonado por ela.

Eu também nada posso fazer por você, Billy. Você sabe disso. Nenhum de nós pode. Você tem de compreender que tão logo um homem sai para ajudar alguém, ele se torna desprotegido. Ele tem de ser esperto, Billy. Você devia saber disso tão bem como todo mundo. Que é que eu poderia fazer? Não posso curar sua gagueira. Não posso apagar as marcas de gilete dos seus pulsos, ou as queimaduras de cigarros das costas das suas mãos. Não lhe posso dar uma outra mãe. E enquanto a enfermeira estiver montada em você desse jeito, esfregando o seu nariz nas suas fraquezas até que aquele pouco de dignidade que ainda lhe resta se acabe e você se resuma a um nada de humilhação, eu também nada posso fazer sobre isso. Em Anzio, vi um companheiro meu amarrado a uma árvore a 50 metros de mim, berrando por um pouco dágua, o rosto empolado no sol. Eles queriam que eu tentasse sair para ajudá-lo. Eles me teriam cortado pela metade, lá naquela fazenda.

Tire seu rosto daí, Billy.

Eles continuam a passar desfilando.

É como se cada rosto fosse uma placa com uma daquelas "Eu sou Cego" que os gringos acordeonistas em Portland penduram no pescoço, só que estas placas dizem "estou cansado", ou "estou com medo", ou "estou morrendo por causa de um fígado de bêbado", ou ainda "estou amarrado com equipamentos e com pessoas me empurrando o tempo todo". Posso ler todas as placas, não faz qualquer diferença à maneira como as letras ficam minúsculas. Alguns dos rostos estão olhando em volta uns para os outros, e poderiam ler o rosto do outro, se quisessem, mas qual é o sentido? Os rostos passam na neblina voando como confete.

Estou mais no fundo, como nunca estive. É assim que é estar morto. Acho que é assim que é ser um Vegetal; você se perde na neblina. Você não se move. Eles alimentam seu corpo até que finalmente ele pára de comer; então eles o queimam. Não é tão ruim. Não há dor. Não sinto quase nada a não ser um pouco de frio que eu imagino que vá passar com o tempo.

Vejo o meu oficial superior prendendo aviso no quadro de boletim: que é que devemos vestir hoje. Vejo o Ministério dos Negócios Interiores dos EUA caindo, sobre a nossa pequena tribo, com uma máquina trituradora de cascalho.

Vejo papai vir abaixando-se para fora de uma vala e reduzir a marcha para tentar pontaria em um grande gamo com uma galhada de seis pontas, que corre aos saltos entre os cedros. Um tiro atrás do outro saem do cano da espingarda, levantando poeira por toda parte em volta do gamo. Saio da vala atrás de papai e abato o gamo com o meu segundo tiro, justo no momento em que ele começava a subir o penhasco. Sorrio para papai.

Eu nunca vi o senhor perder um tiro assim antes, papai.

A vista se foi, filho. Não consigo manter a mira. O que eu via na minha arma ainda há pouco estava tremendo como um cachorro a cagar caroços de pêssego.

Papai, estou lhe dizendo: aquela cachaça de cacto do Sid vai fazer você ficar velho antes da hora.

Um homem que bebe aquela cachaça de cacto do Sid, menino, já está velho antes da hora. Vamos estripar aquele animal logo, antes que as moscas o devorem.

Isto não está acontecendo agora. Vocês vêem? Nada há que se possa fazer quanto a um acontecimento do passado como esse.

Olhe aqui, meu velho…

Ouço murmúrios, crioulos.

Olhe ali aquele velho idiota, o Vassoura, acabou dormindo.

É isso aí, chefe Vassoura, é isso mesmo. Fique dormindo e não se meta em confusões. Assimmm.

Não estou mais com frio. Acho que acabei conseguindo. Estou longe, onde o frio não me pode alcançar. Posso ficar aqui fora para sempre. Não estou mais com medo. Eles não me podem alcançar. Só as palavras me alcançam, e elas vão desaparecendo.

Bem… uma vez que Billy decidiu abandonar a discussão, alguém mais tem um problema que queira apresentar ao grupo?

Para falar a verdade, dona, de fato há uma coisa…

Este é McMurphy. Ele está muito longe. Ainda está tentando arrancar as pessoas para fora da neblina. Por que é que ele não me deixa em paz?

– … se lembra daquela votação que fizemos há um dia ou coisa assim… a respeito do horário da TV? Bem, hoje é sexta-feira e pensei em apresentar a proposta de novo, só para ver se mais alguém arranjou um pouco de coragem.

– Sr. McMurphy, o objetivo desta sessão é a terapia, terapia de grupo, e não estou certa de que essas queixas mesquinhas…

– Sim, sim, pro inferno com isso, já ouvimos tudo isso antes. Eu e alguns dos outros caras decidimos…

– Um momento, Sr. McMurphy, deixe-me fazer uma pergunta ao grupo: alguém aqui acha que o Sr. McMurphy está, talvez, impondo demais seus desejos pessoais sobre alguns de vocês? Estive pensando que talvez ficassem mais satisfeitos se ele fosse transferido para uma outra enfermaria.

Ninguém se manifesta durante um minuto. Então alguém diz:

– Deixe que ele faça a votação, por que não deixa? Por que fica querendo mandá-lo para a Enfermaria dos Perturbados só porque ele quer fazer uma votação? Que é que há de tão errado em trocar o horário?

– Ora, Sr. Scanlon, se é que me lembro bem, o senhor se recusou a comer durante três dias até que permitimos que ligasse a televisão às seis horas em vez de às seis e meia.

– Um homem tem de ver as notícias do mundo, não tem? Deus, eles podiam bombardear Washington e levaria uma semana antes que soubéssemos.

– Sim? E como é que se sente com relação a abrir mão de suas notícias do mundo para ver um bando de homens a jogar beisebol?

– Não podemos ter as duas coisas, hem? Não, acho que não. Bem, que diabo… não creio que eles nos bombardeiem esta semana.

– Vamos deixar que ele faça a votação, Srta. Ratched.

– Muito bem. Mas eu acho que há provas suficientes do quanto ele está incomodando alguns dos pacientes. Que é que o senhor está propondo, Sr. McMurphy?

– Estou propondo uma nova votação a respeito de assistir à TV à tarde.

– O senhor está certo de que mais uma votação vai satisfazê-lo? Temos coisas mais importantes…

– Vai me satisfazer. Eu apenas gostaria de ver quais desses caras têm um pouco de coragem e quais não têm.

– É este tipo de conversa, Dr. Spivey, que faz com que eu me pergunte se os pacientes não ficariam mais felizes se o Sr. McMurphy fosse transferido.

– Deixe que ele faça a votação, por que não deixa?

– Certamente, Sr. Cheswick. A votação está sendo apresentada ao grupo agora. Um levantar de mãos seria adequado, Sr. McMurphy, ou o senhor vai insistir em escrutínio secreto?

– Quero ver as mãos. Quero ver as mãos que não se levantam também.

– Todo mundo a favor de trocar o horário da televisão para a tarde levante a mão.

A primeira mão que se levanta, posso dizer de quem é, é a de McMurphy, por causa das ataduras onde aquelas alavancas do painel o feriram quando tentou levantá-lo. E então lá longe, ladeira abaixo, eu as vejo, outras mãos que se erguem para fora da neblina. É como… se aquela mão vermelha de McMurphy se estivesse enfiando na neblina e descendo até lá embaixo e arrastando os homens para cima pelas mãos, arrastando-os estonteados para o campo aberto. Primeiro, uma, então uma outra, logo a seguinte. Seguindo por toda a fileira de Agudos, ele os arrasta para fora da neblina até que saiam dela. Todos os 20 levantam as mãos não apenas para ver TV, mas contra a Chefona, contra a tentativa de ela mandar McMurphy para a Enfermaria dos Perturbados, contra a maneira como ela falou e agiu e os derrotou durante anos.

Ninguém diz uma palavra. Posso sentir como todo mundo está estarrecido, tanto os pacientes quanto o pessoal. A enfermeira não consegue entender o que aconteceu; ontem, antes que ele tentasse levantar aquele painel, não havia mais do que quatro ou cinco homens que poderiam ter votado. Mas, quando ela fala, não deixa que transpareça em sua voz o quanto está surpreendida.

– Eu conto apenas 20, Sr. McMurphy.

– Vinte? Bem, por que não? Vinte somos todos nós aqui – a voz dele pára, quando percebe aonde ela quer chegar. – Ora, espere só uma droga dum minuto, dona…

– Temo que sua proposta tenha sido derrotada.

– Espere só um porra dum minuto!

– Há 40 pacientes na enfermaria, Sr. McMurphy. Quarenta pacientes, e apenas 20 votaram. O senhor tem de ter maioria para modificar uma norma da enfermaria. Acho que a votação está encerrada.

As mãos estão descendo pela sala. Todos sabem que foram derrotados. Estão tentando esgueirar-se de volta para a segurança da neblina. McMurphy continua de pé.

– Bem, puta que me pariu! Está querendo me dizer que é assim que vai trapacear? Contando os votos daqueles caras velhos ali também?

– Não explicou o procedimento de votação a ele, doutor?

– Temo que… a maioria seja indispensável, McMurphy. Ela está certa. Ela está certa.

– A maioria, Sr. McMurphy; está no regulamento.

– E creio que a maneira de modificar o maldito regulamento é com uma votação por maioria. De todas as titicas de galinha que eu já vi na minha vida, por Deus, esta ganha disparado!

– Sinto muito, Sr. McMurphy, mas vai encontrar escrito no regulamento se quiser que eu…

– Então é assim que vocês controlam essa merda de democracia… diabo do inferno!

– O senhor parece tão perturbado, Sr. McMurphy. Ele parece perturbado, doutor? Quero que tome nota disso.

– Não me venha com essa conversa, dona. Quando um cara está sendo enrabado ele tem o direito de berrar. E eu fui muito bem enrabado.

– Talvez, doutor, em vista do estado do paciente, devêssemos dar por encerrada esta sessão mais cedo, hoje…

– Espere! Espere um minuto, deixe-me falar com alguns desses velhos.

– A votação está encerrada, Sr. McMurphy.

– Deixe-me falar com eles.

Ele atravessa a enfermaria, vindo em nossa direção. Fica cada vez maior, e seu rosto está ardendo, vermelho. Estende a mão para dentro da neblina e tenta arrastar Ruckly até a superfície, porque Ruckly é o mais jovem.

– Você, que é que acha, companheiro? Quer assistir às finais do Campeonato? Beisebol? Jogos de beisebol. É só levantar aquela mão ali…

– Fffffffoda a mulher.

– Certo, esqueça. Você, companheiro, o que é que você acha? Qual era mesmo o seu nome… Ellis? Que tal assistir a um jogo de bola pela TV? É só levantar a mão…

As mãos de Ellis estão pregadas na parede, não podem ser contadas como voto.

– Eu disse que a votação está encerrada, McMurphy. O senhor está apenas fazendo uma cena.

Ele não presta atenção a ela. Vai descendo pela fileira de Crônicos.

– Vam'bora, vam'bora, só um voto de um de vocês, é só levantar a mão. Mostrem a ela que vocês ainda podem fazer isso.

– Estou cansado – diz Pete e sacode a cabeça.

– A noite é… o oceano Pacífico. – O Coronel está lendo a mão, não pode ser importunado com votação.

– Um de vocês, caras, que grite! É aqui que cada um de vocês chega ao final, será que não vêem isso! Nós temos de fazer isso… ou estaremos derrotados! Será que nenhum de vocês, seus babacas, percebe o bastante do que estou falando para nos dar uma mão? Você, Gabriel? George? Não? Você, chefe, que tal você?

Ele está de pé em cima de mim na neblina. Por que é que ele não me deixa em paz?

A Chefona está dobrando os papéis; as outras enfermeiras estão de pé em volta dela. Afinal, ela se levanta.

– Então a sessão está suspensa – eu a ouço dizer. – E gostaria de ver os membros da equipe lá na Sala do Pessoal dentro de uma hora. Assim, se não há mais na…

É tarde demais para parar agora. McMurphy fez alguma coisa àquilo naquele primeiro dia, pôs alguma espécie de feitiço naquilo com a sua mão, de modo que a coisa não funciona da maneira como eu comando. Não há nenhum sentido nisso, qualquer idiota pode vê-lo; eu não o faria sozinho. Só pela maneira como a enfermeira me está olhando fixo, com a sua boca sem palavras, posso ver que estou arranjando problemas, mas não consigo impedi-lo. McMurphy tem fios ocultos que a controlam, levantando-a lentamente, apenas para me tirar da neblina e me levar para campo aberto onde sou uma presa fácil. Ele o está fazendo, fios…

Não. Não é essa a verdade. Eu a levantei sozinho.

McMurphy salta e me põe de pé à força, batendo nas minhas costas.

– Vinte e um! O voto do chefe completa vinte e um! E, por Deus, se isso não é uma maioria, comerei o meu gorro!

– Yippee - grita Cheswick. Os outros Agudos estão vindo, aproximando-se de mim.

– A sessão estava encerrada – diz ela. Seu sorriso ainda está lá, mas o seu cangote, quando ela sai da enfermaria e entra na Sala das Enfermeiras, está vermelho e inchando como se ela fosse explodir a qualquer minuto.


Mas ela não explode, não imediatamente, não até cerca de uma hora depois. Por trás do vidro o sorriso dela está contorcido e estranho, como nunca o vimos antes. Ela apenas fica sentada. Posso ver seus ombros se erguerem e descerem quando ela respira.

McMurphy olha para cima, para o relógio, e diz que está na hora do jogo. Ele está ali, perto do bebedouro com alguns dos outros Agudos, agachado sobre os joelhos, limpando o rodapé. Estou varrendo o armário de vassouras pela décima vez hoje. Scanlon e Harding estão com a enceradeira, subindo e descendo pelo corredor, dando brilho na cera nova, formando oito brilhantes. McMurphy torna a dizer que acha que deve estar na hora do jogo e se levanta. Deixa o esfregão de limpeza onde está. Mais ninguém pára de trabalhar. McMurphy vai andando e passa pela janela, atrás da qual ela se encontra, a olhar fixa e furiosamente para ele, e sorri para ela como se soubesse que agora ele a derrotou. Quando inclina a cabeça para trás, dá-lhe uma piscadela, ela tem aquele pequeno sobressalto de cabeça. Todo mundo continua entregue ao que está fazendo, mas todos observam pelos cantos dos olhos enquanto ele arrasta a poltrona até a frente da TV, liga o aparelho e se senta. Uma imagem surge na tela, de um papagaio, lá no campo de beisebol, que canta um anúncio de lâmina de barbear. McMurphy levanta-se e aumenta o volume para anular o som da música do alto-falante no teto, e arrasta uma outra cadeira para a sua frente e se senta, cruza os pés sobre a cadeira e acende um cigarro. Coça a barriga e se espreguiça.

– Puxa vida! Cara, tudo que eu preciso agora é de uma lata de cerveja e de uma boa garota.

Podemos ver o rosto da enfermeira ir-se enrubescendo e a sua boca contraindo-se enquanto olha fixo para ele. Ela olha em volta por um segundo e percebe que todo mundo está observando o que ela vai fazer – até os crioulos e as enfermeiras lançam olhares disfarçados para ela, e os residentes começam a aparecer para a reunião do pessoal. Todos a estão observando. Sua boca se cerra. Ela torna a olhar para McMurphy e espera até que acabem os anúncios cantados das lâminas de barbear; aí, levanta-se e vai até a porta de aço onde estão os controles, mexe num interruptor e a imagem da TV torna a ficar cinza. Não há mais nada na tela além de um olhinho de luz focalizado direto sobre McMurphy, sentado ali.

Aquele olho não o incomoda nem um pouco. Para dizer a verdade, ele nem deixa que se perceba que a imagem foi desligada; põe o cigarro entre os dentes e empurra o gorro para a frente, até que tem de se reclinar para ver sob a aba.

E fica sentado daquele jeito, as mãos cruzadas atrás da cabeça, um cigarro soltando fumaça sob a aba do gorro – continua olhando para a tela da TV.

A enfermeira suporta isso o quanto pode. De repente, vai até a porta da Sala das Enfermeiras e grita para ele que seria melhor que ajudasse os homens com a limpeza. Ele a ignora.

– Eu disse, Sr. McMurphy, que a presunção é de que o senhor esteja trabalhando neste momento. – A voz dela tem um guinchado tenso como o de uma serra elétrica ao cortar um pinheiro. – Sr. McMurphy, eu o estou avisando! Todo mundo parou com o que estava fazendo. Ela olha em volta, dá um passo para fora da Sala das Enfermeiras, na direção de McMurphy.

– O senhor está internado, sabe disso. O senhor está… sob a minha jurisdição… do pessoal. – Ela está erguendo o punho, todas aquelas unhas vermelho-alaranjado ardendo na sua palma. – Sob jurisdição e controle…

Harding desliga a enceradeira e a deixa no corredor, vai e puxa uma cadeira para junto de McMurphy, senta e também acende um cigarro.

– Sr. Harding! Volte já para os seus deveres programados!

Penso em como a voz dela soa como se batesse num prego, e isto me parece tão engraçado que quase rio.

– Sr. Har – ding!

Então Cheswick vai e apanha uma cadeira e depois é a vez de Billy Bibbit, em seguida Scanlon e então Fredrickson e Sefelt e finalmente todos nós largamos os nossos esfregões e vassouras e flanelas, e todos vamos apanhar cadeiras.

– Vocês, homens…. Parem com isso! Parem!

E estamos todos sentados ali enfileirados diante do aparelho de TV desligado, olhando para a tela cinzenta, como se pudéssemos ver o jogo de beisebol claro como o dia, e ela esbraveja e grita atrás de nós.

Se alguém entrasse e olhasse, homens assistindo a uma TV desligada, com uma mulher de 50 anos a berrar e guinchar às suas costas, falando sobre disciplina, ordem e fazendo recriminações, pensaria que o bando inteiro era de doidos varridos.


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