"Um Estranho No Ninho" - читать интересную книгу автора (Kesey Ken)PARTE II Bem pelo canto do olho posso ver aquele rosto branco-esmaltado na Sala das Enfermeiras, oscilando sobre a mesa. Eu o vejo a se empenar e fluir, enquanto tenta retomar sua forma. Os outros também estão observando, embora tentem agir como se não estivessem. Estão tentando agir como se ainda estivessem com os olhos presos unicamente naquela TV desligada na nossa frente, mas qualquer um nota que estão lançando olhares de soslaio para a Chefona, ali atrás do seu vidro. Pela primeira vez, ela está do outro lado do vidro, experimentando contudo a sensação de como é que é ser observada quando o que você quer mais do que tudo é poder puxar uma cortina verde entre seu rosto e todos os olhos dos quais você não pode fugir. Os internos, os crioulos, as enfermeiras, eles também a observam, esperando que ela vá pelo corredor quando chegar a hora da reunião do pessoal que ela mesma convocou; esperando para ver como é que vai agir, agora que é sabido que se pode fazer com que ela perca o controle. Ela sabe que a estão observando, mas não se move. Nem mesmo quando eles começam a se dirigir para a Sala do Pessoal sem ela. Percebo que toda a maquinaria dentro da parede está parada, como se estivesse esperando que ela se movesse. Não há mais neblina em nenhum lugar. De repente, lembro-me de que eu deveria limpar a Sala do Pessoal. Eu sempre limpo a Sala do Pessoal durante essas reuniões, tenho feito isso há anos. Mas agora estou com medo demais para sair da minha cadeira. O pessoal sempre me deixa limpar a sala porque não pensavam que eu não pudesse ouvir, mas agora que me viram levantar a mão quando McMurphy me disse para fazê-lo, será que não saberão que posso ouvir? Será que não descobrirão que estive ouvindo durante todos esses anos, ouvindo segredos que só eram para ser ouvidos por eles? Que é que eles farão comigo naquela Sala do Pessoal se souberem disso? Entretanto, eles ainda esperam que eu esteja lá. Se não estiver, saberão com certeza que posso ouvir, estarão muito adiante de mim, pensando, "você vê, ele não está aqui limpando, isso não o prova?" É evidente o que deve ser feito… Estou apenas recebendo a força total dos perigos aos quais nos expusemos quando deixamos que McMurphy nos atraísse para fora da neblina. Há um crioulo encostado na parede perto da porta, os braços cruzados, a língua cor-de-rosa a dardejar de um lado para o outro sobre os lábios, observando-nos ali sen-tados diante do aparelho de TV. Seus olhos também dardejam de um lado para o outro, como a língua, e se detêm em mim, e vejo suas pálpebras de couro se levantarem levemente. Ele me observa durante muito tempo, e sei que está curioso a respeito da maneira como agi na sessão. Então ele se solta da parede com uma guinada brusca, rompendo o contato, vai até o armário de vassouras e traz um balde de água com sabão e uma esponja, levanta meus braços e pendura a alça do balde, como se estivesse pendurando uma chaleira num pau de uma lareira. – Eu não me movo. O balde balança no meu braço. Não dou um sinal sequer de ter ouvido. Ele está tentando me apanhar. Torna a me pedir para que eu me levante e, quando não me movo, revira os olhos para o teto e suspira, estende os braços, pega a minha gola e puxa um pouco, e eu me levanto. Enfia a esponja no meu bolso e aponta para a parede onde fica a Sala do Pessoal, e eu vou. E enquanto estou andando pelo corredor com o balde, Do lado de fora, no corredor, sozinho, reparo como tudo está claro – não há neblina em lugar nenhum. Faz um pouco de frio no lugar por onde a enfermeira acabou de passar, e os tubos brancos no teto circulam uma luz congelada como bastões de gelo brilhantes, como serpentinas de refrigeradores armadas para brilharem brancas. Os bastões se estendem até a porta da Sala do Pessoal onde a enfermeira acabou de entrar, na extremidade do corredor – uma porta pesada de aço, como a da Sala de Choque, no Setor Um, exceto que nessa há números impressos, além de um pequeno olho mágico de vidro, na altura da cabeça, para permitir que o pessoal olhe para fora e veja quem está batendo. Quando me aproximo, noto que há luz a escoar-se para fora, através daquele olho mágico, luz verde, amarga como bílis. A reunião do pessoal está prestes a se iniciar, é por isso que há aquele escapamento verde; ele estará cobrindo todas as paredes e janelas quando a reunião estiver lá pela metade, para que eu o limpe com a esponja e esprema no balde, usando a água mais tarde para lavar os encanamentos do banheiro. Limpar a Sala do Pessoal é sempre ruim. As coisas que eu já tive de limpar durante essas reuniões ninguém acreditaria; coisas horríveis, venenos manufaturados diretamente de poros de pele, e ácidos no ar, bastante fortes para derreter um homem. Eu já vi isso. Estive em algumas reuniões em que as pernas da mesa se esticavam e se contorciam, e as cadeiras se embolavam e as paredes se roçavam umas contra as outras, até que se podia torcer o suor para fora da sala. Estive em reuniões em que ficavam falando de um paciente durante tanto tempo, que o paciente se materializava em carne e osso, nu, na mesa de café diante deles, vulnerável a qualquer idéia perversa que eles tivessem; eles o deixariam todo imundo numa sujeira terrível antes que tivessem terminado. É por isso que eles me mantêm nas reuniões do pessoal, porque pode ser um negócio tão imundo que alguém tem de limpar, e uma vez que a Sala de Pessoal só fica aberta durante as reuniões, tem de ser alguém que eles pensam que não será capaz de contar para todo mundo o que está acontecendo. Sou eu. Venho fazendo isso há tanto tempo, passando a esponja, tirando a poeira, e limpando esta sala e a outra antiga de madeira, no prédio velho, que o pessoal, normalmente, nem nota minha presença; ando de um lado para outro cumprindo as minhas tarefas, e eles vêem através de mim, como se eu não estivesse lá – a única coisa de que sentiriam falta, se eu não aparecesse, seria da esponja e do balde de água a flutuar no espaço. Mas desta vez, quando bato e a Chefona espia pelo olho mágico, ela olha bem para mim e leva mais tempo do que de hábito para destrancar a porta para que eu entre. O rosto dela voltou à forma usual, mais forte do que nunca, me parece. Todos os outros continuam pondo açúcar no café e apanhando cigarros, como costumam fazer antes de todas as reuniões, mas há uma tensão no ar. No começo, penso que é por minha causa. Depois, reparo que a Chefona ainda nem se sentou, ainda nem se deu ao trabalho de ir buscar uma xícara de café. Ela me deixa passar pela porta e torna a me apunhalar com os olhos quando passo por ela. Fecha a porta depois que entro e a tranca. Então, vira-se e olha fixa e furiosamente para mim por mais algum tempo. Sei que está desconfiada. Pensei que ela pudesse estar perturbada demais pela maneira como McMurphy a desafiou para prestar qualquer atenção em mim, mas não parece nada abalada. Ela está com a cabeça fria e se perguntando agora como Dou as costas para ela e me afundo no canto com a minha esponja. Levanto a esponja acima da cabeça de forma que todo mundo na sala possa ver como está coberto de lama verde e como estou trabalhando duro; então me inclino e esfrego com mais força do que nunca. Mas por mais duro que eu trabalhe e por mais que me esforce para agir como se não me desse conta de que ela está ali atrás, ainda posso senti-la de pé na porta e perfurando o meu crânio até que dentro de um minuto ela conseguirá penetrar nele. Estou quase a ponto de desistir e gritar e contar tudo a eles, se ela não tirar aqueles olhos de cima de mim. Então ela se dá conta de que também está sendo observada – por todo o resto do pessoal. Da mesma maneira como está curiosa a meu respeito, eles estão curiosos a seu respeito, e o que está planejando fazer a respeito daquele ruivo lá na enfermaria. Estão observando para ver o que dirá sobre ele, e não se importam nem um pouco com um índio idiota qualquer, de quatro, no canto. Estão esperando por ela; assim, ela pára de olhar para mim, vai pegar uma xícara de café e se senta, mexe o açúcar com tanto cuidado que a colher nunca toca a borda da xícara. É o médico quem toma a iniciativa. – Bem, minha gente, que tal começarmos? Ele sorri para os residentes que estão bebericando o café. Está tentando não olhar para a Chefona. Ela está sentada ali tão calada que o faz ficar nervoso e confuso. Tira os óculos, em seguida os põe de novo para olhar para o relógio, no qual começa a dar corda enquanto fala. – Já se passaram 15 minutos. Já passou da hora de começarmos. A Srta. Ratched, como a maioria de vocês sabe, convocou esta reunião. Ela me telefonou antes da sessão da Comunidade Terapêutica e disse que em sua opinião McMurphy viria sem dúvida a constituir um distúrbio na ala. Incrivelmente intuitiva, levando em consideração o que aconteceu há alguns minutos, não acham? Ele pára de dar corda no relógio porque já a deu toda e mais uma volta vai fazê-lo voar em pedaços por toda parte. Fica sentado ali, sorrindo para o relógio, tamborilando as costas da mão com os dedinhos rosados, esperando. Geralmente, mais ou menos a essa altura da reunião, ela assume o comando, mas ela nada diz. – Depois de hoje – continua o médico – ninguém pode dizer que este homem com quem estamos lidando é um homem comum. Não, certamente que não. Que ele Ele lhe lança um olhar suplicante, mas ela ainda nada diz. Ergueu o rosto para o teto, procurando sujeiras, muito provavelmente, e não parece ter ouvido uma só palavra do que ele esteve dizendo. O médico vira-se para a fileira de residentes do outro lado da sala: todos eles têm a mesma perna cruzada e a xícara de café sobre o mesmo joelho. – Vocês, rapazes – diz ele. – Compreendo que ainda não tiveram o tempo adequado para chegar a um diagnóstico bem feito do paciente, mas vocês A pergunta faz com que levantem a cabeça de estalo. Com muita esperteza ele também os colocou na raia. Todos eles olham dele para a Chefona. De alguma forma ela recuperou todo o seu poder anterior em uns poucos minutos. Apenas ficando sentada ali, sorrindo para o teto e sem nada dizer, ela recuperou o controle e fez com que todos percebessem que ela é a força ali dentro que tem de ser respeitada. Se esses rapazes não jogarem bem direitinho, serão capazes de ir acabar o treinamento lá em Portland, no hospital de alcoólatras. Eles começam a sentir-se inquietos, como o médico. – Ele é realmente uma influência perturbadora. – O primeiro rapaz joga no seguro. Todos eles tomam um gole de café e pensam sobre aquilo. Então o seguinte diz: – E poderia constituir um perigo verdadeiro. – É verdade, é verdade – diz o médico. O rapaz pensa que ele talvez tenha encontrado a chave e continua. – Um perigo considerável, de fato – diz ele e chega para a frente na cadeira. – Tenham em mente que este homem praticou ações violentas com o único objetivo de sair da colônia penal e vir para o ambiente comparativamente luxuoso deste hospital. – – É claro, a própria natureza do plano dele poderia indicar que ele é simplesmente um presidiário perspicaz e que não está, de maneira alguma, mentalmente doente. Ele olha em volta para ver como é que ela recebe seu comentário e constata que ainda não se moveu, nem deu qualquer sinal. Mas o resto do pessoal permanece sentado ali, olhando fixo para ele com desagrado, como se ele tivesse dito algo terrivelmente vulgar. Ele percebe como saiu dos limites e tenta fingir que foi uma brincadeira. Ri e acrescenta: – Sabem, como "Aquele Que Marcha Fora do Compasso Ouve Um Outro Tambor" – mas é tarde demais. O primeiro residente cai em cima dele depois de ter largado a xícara de café e metido a mão no bolso para tirar um cachimbo grande como um punho. – Francamente, Alvin – diz ele ao terceiro rapaz. – Estou desapontado com você. Ainda que não se tivesse lido o histórico dele, tudo o que se precisaria fazer seria prestar atenção ao comportamento dele na enfermaria para perceber-se como esta sugestão é absurda. Esse homem não é apenas muito, muito doente, creio que é sem dúvida um Agressivo Potencial. Acho que disso é o que a Srta. Ratched estava desconfiando quando convocou esta reunião. Não reconhece o arquétipo do psicopata? Nunca ouvi falar de um caso tão evidente. Esse homem é um Napoleão, um Gengis Khan, um Átila. Um outro se reúne a eles. Ele lembra os comentários da enfermeira a respeito dos Perturbados. – Robert está certo, Alvin. Não viu a maneira como o homem agiu lá fora, hoje? Quando uma das suas tramas fracassou ele se levantou rápido da cadeira, a um passo da violência. Diga-nos, Dr. Spivey, que é que o dossiê dele diz a respeito de violência? – Acusa um acentuado desrespeito por disciplina e autoridade – diz o médico. – Certo. A história dele relata, Alvin, que repetidamente, em diversas ocasiões, ele demonstrou sua hostilidade contra os representantes da autoridade… na escola, no Exército, na – Pare por um minuto e imagine, Alvin – diz ele, as palavras algodoadas de fumaça. – Imagine o que acontecerá com um de nós quando estivermos sozinhos na Terapia Individual com o Sr. McMurphy. Imagine que está chegando a um ponto da pesquisa particularmente doloroso e ele decide simplesmente que já agüentou tudo o que seria suportável da sua, como é que ele o diria?, da sua "porcaria de xeretice idiota de garoto"! Você diz a ele que não deve ficar hostil e ele diz – Então acreditam que seria aconselhável – pergunta o médico – transferi-lo lá para cima, para a Enfermaria dos Perturbados? – Creio que seria pelo menos mais seguro – responde o do cachimbo, fechando os olhos. – Creio que terei de retirar a minha sugestão e concordar com Robert – diz-lhes Alvin. – Quanto mais não seja, para a minha própria proteção. Todos eles riem. Estão todos descontraídos agora, certos de que chegaram ao plano que ela estava querendo. Todos tomam um gole de café para comemorar, exceto o do cachimbo. Ele está às voltas com o acendê-lo, pois se apaga a todo momento. Queima uma porção de fósforos e suga e solta fumaça e estala os lábios. Finalmente o acende da maneira que lhe parece certa, e diz, com um pouco de orgulho: – Sim, Enfermaria dos Perturbados para o velho ruivo McMurphy, eu creio. Sabem o que acho, depois de tê-lo observado esses dias? – Reação esquizóide? – pergunta Alvin. Cachimbo sacode a cabeça. – Homossexual Latente com Formação Reativa? – diz o terceiro. Cachimbo torna a sacudir a cabeça e fecha os olhos. – Não – diz ele, e sorri para todos. – Todos se congratulam com ele. – Sim, creio que há muita coisa indicando isso – diz ele. – Mas qualquer que seja o diagnóstico definitivo, temos de manter em mente uma coisa: não estamos lidando com um homem comum. – O senhor… está muito enganado, Sr. Gideon. É a Chefona. A cabeça de todo mundo se vira para ela num salto – a minha também, mas eu me controlo e disfarço o gesto como se estivesse tentando limpar uma mancha que tivesse acabado de descobrir na parede acima da minha cabeça. Agora, com certeza todo mundo está completamente confuso. Eles haviam imaginado que estavam propondo exatamente o que ela queria, exatamente o que ela mesma estava planejando propor na reunião. Eu também pensei. Já a vi mandar homens da metade do tamanho de McMurphy lá para cima para a Enfermaria dos Perturbados pela única razão de que poderiam cuspir em alguém; agora, ela está a braços com este homem que é um touro, que deu marradas nela e em todo o resto do pessoal, um – Não. Eu não concordo. Absolutamente não. – Sorri para todos eles. – Não concordo que ele deva ser mandado para a Enfermaria dos Perturbados, isto seria simplesmente uma maneira fácil de transferir nosso problema para uma outra ala. E não concordo que ele seja uma espécie qualquer de ser extraordinário… uma espécie de "super" psicopata. Ela espera, mas ninguém está disposto a discordar. Pela primeira vez toma um gole do café; a xícara se afasta de sua boca manchada com aquela cor vermelho-laranja. Olho fixo para a borda da xícara, a despeito de mim. Aquela cor na borda da xícara tem de ser de calor, o toque dos seus lábios fez a beira da xícara ficar em brasa. – Admitirei que a minha primeira impressão, quando comecei a considerar o Sr. McMurphy como a força perturbadora que é, foi de que ele deveria definitivamente ser transferido para a Enfermaria dos Perturbados. Mas agora creio que é tarde demais. Sua transferência desfaria o dano que ele já causou a nossa enfermaria? Não creio que se ele fosse mandado para os Perturbados agora, seria exatamente o que os pacientes esperariam. Ele seria um mártir para eles. Nunca teriam a oportunidade de ver que este homem não é um, como o senhor o define, Sr. Gideon?, "uma pessoa extraordinária". Ela toma mais um gole e coloca a xícara na mesa; a pancada soa como uma martelada; todos os três residentes se empinam nas cadeiras. – Não – continua ela. – Ele não é extraordinário. É simplesmente um homem e nada mais, e está sujeito a todos os medos, e toda a covardia, e toda a timidez às quais qualquer outro homem está sujeito. Se dermos mais alguns dias, tenho a forte impressão de que demonstrará isso, tanto para nós como para o resto dos pacientes. Se o mantivermos conosco tenho certeza de que sua impudência cederá, sua rebelião pessoal se transformará em nada, e – ela sorri, sabendo de alguma coisa que ninguém mais sabe – o nosso herói ruivo se reduzirá a uma coisa que todos os pacientes reconhecerão e da qual perderão o respeito: um fanfarrão e um valentão, do tipo que é capaz de subir numa caixa de sabão e gritar para que os outros o sigam, da maneira como vimos o Sr. Cheswick fazer, e então recuar no momento em que surgir qualquer perigo verdadeiro para ele pessoalmente. – O paciente McMurphy – o rapaz do cachimbo sente que deve tentar defender sua posição e salvar um pouco da aparência – não me parece ser um covarde. Fico achando que ela vai ficar zangada; mas ela apenas lhe lança aquele olhar "vamos esperar para ver" e diz: – Eu não disse que ele era exatamente um covarde, Sr. Gideon; oh, não. Ele apenas gosta muito de alguém. Como psicopata, ele gosta do Sr. Randle Patrick McMurphy demais para sujeitá-lo a qualquer perigo desnecessário. – Ela dirige ao rapaz um sorriso que lhe apaga definitivamente o cachimbo. – Se apenas esperarmos um pouco, o nosso herói, como é que vocês universitários dizem?, vai correr da raia? É isso? – Mas isso pode levar semanas – retruca o rapaz. – Nós temos semanas – diz ela. Levanta-se, parecendo mais satisfeita consigo mesma do que já a vi desde que McMurphy chegou para perturbá-la, há uma semana. – Nós temos semanas, ou meses ou até anos se necessário. Tenha em mente que o Sr. McMurphy está internado. A duração do tempo que ele passará aqui neste hospital cabe inteiramente a nós decidir. Agora, se não há mais nada… A maneira como a Chefona agiu, tão cheia de confiança, naquela reunião, me preocupou durante algum tempo, mas não fez qualquer diferença para McMurphy. Durante todo o fim de semana, e na semana seguinte, ele foi tão duro com ela e com os negros como sempre, e os pacientes estavam adorando aquilo. Ele ganhara a aposta. Fizera a enfermeira perder a cabeça, como disse, e havia recebido o prêmio, mas aquilo não o fez parar de seguir em frente e de agir como sempre agira, gritando pelo corredor de um lado para outro, ridicularizando os crioulos, frustrando todo o pessoal do hospital, indo tão longe a ponto de se aproximar da Chefona, uma vez, no corredor, e lhe perguntar se ela não se importaria de dizer qual era a medida real, polegada por polegada, dos seus grandes peitos, que ela fazia o possível para esconder, mas nunca conseguia. Ela continuou andando em frente, ignorando-o do mesmo modo como preferira ignorar a maneira como a natureza a havia marcado com aqueles atributos exagerados de feminilidade, como se ela estivesse acima dele, e do sexo e de tudo aquilo que é fraco e próprio da carne. Quando ela afixou a distribuição de tarefas no quadro de avisos e ele leu que ela lhe destinara a limpeza das latrinas, foi até o escritório dela, bateu na janela, e lhe agradeceu pessoalmente pela honra, dizendo-lhe que pensaria nela toda vez que limpasse um urinol. Ela lhe respondeu que não era necessário; que apenas fizesse o seu trabalho e aquilo seria o suficiente, obrigada. O máximo que ele fazia neles era passar uma escova pelos vasos uma ou duas vezes, cantando alguma canção o mais alto que podia no ritmo em que passava a escova; então derramava um pouco de detergente ali dentro e pronto, estava acabado. – Está bastante limpo – dizia ao crioulo que viesse atrás dele para espionar a maneira apressada como executava o trabalho. – Talvez não esteja limpo o suficiente para E quando a Chefona cedeu às reclamações do crioulo frustrado e veio examinar pessoalmente o trabalho de limpeza de McMurphy, ela trouxe o espelhinho de um estojo e o colocou sob a borda dos vasos. Foi andando, sacudindo a cabeça e dizendo: – Ora, isto é uma lástima… uma lástima – para cada vaso que examinava. McMurphy ia caminhando bem ao lado dela, piscando o olho e dizendo à guisa de resposta: – Não, isto é uma latrina de banheiro… Mas ela não se descontrolou, nem mesmo deu a impressão disso. Não o deixaria em paz com as latrinas, usando aquela mesma terrível pressão lenta e paciente que usava com todo mundo, enquanto ele ficava de pé, ali na frente dela, parecendo um menino ao ser repreendido, baixando a cabeça e pondo a ponta de uma bota sobre a outra, dizendo: "Eu Uma vez ele escreveu uma coisa num pedaço de papel, numa escrita estranha que parecia um alfabeto estrangeiro, e prendeu com um pedaço de chiclete sob uma daquelas bordas do vaso; quando ela foi até aquela latrina com o espelho, teve um pequeno sobressalto diante do que leu refletido e deixou o espelho cair dentro da latrina. Mas não perdeu o controle. Aquela cara e aquele sorriso de boneca haviam sido forjados na confiança. Ergueu-se de junto da latrina e lançou-lhe um olhar que seria capaz de descascar uma pintura. Disse-lhe que o seu trabalho era de tornar o banheiro Na realidade, não havia muita limpeza, de nenhuma espécie, sendo feita na ala. Tão logo chegava a hora da tarde marcada para faxina, também era hora dos jogos de beisebol na TV, e todo mundo ia e enfileirava as cadeiras diante do aparelho e não saía de lá até a hora do jantar. Não fazia qualquer diferença que a eletricidade estivesse desligada na Sala das Enfermeiras e que não pudéssemos ver nada além daquela tela cinzenta, vazia, porque McMurphy nos divertia durante horas, sentava e falava, contava todo tipo de histórias, como, por exemplo, como ele tinha ganhado mil dólares em um mês dirigindo um caminhão para uma turma de trapaceiros e depois perdido cada centavo para um canadense num torneio de atirar machado; ou como ele e um companheiro haviam convencido um Batia com o pé no chão e atirava a cabeça para trás, rindo, rindo, enfiando o polegar nas costelas de quem quer que estivesse sentado perto dele, tentando fazer o outro rir também. Houve ocasiões naquela semana em que eu ouvia aquela risada alta e o observava a coçar a barriga, espreguiçar-se e bocejar, inclinando-se para trás para piscar o olho para a pessoa com quem estivesse brincando, tudo aquilo com tanta naturalidade como a respiração, e eu até parava de me preocupar com a Chefona e com a Liga que a apoiava. Pensava que ele era suficientemente forte para ser ele mesmo, que ele nunca recuaria da maneira como ela esperava que o fizesse. Eu pensava que, talvez, ele realmente fosse algo de extraordinário. Ele é o que é, é isso. Talvez isto o torne bastante forte, o fato de ser aquilo que ele é. A Liga não pôde apanhá-lo durante todos esses anos; que é que faz a enfermeira pensar que ela será capaz de fazê-lo numas poucas semanas? Ele não vai deixar que eles o pervertam e o manipulem. E mais tarde, escondendo-me dos crioulos no banheiro, eu olhava para mim mesmo no espelho e me perguntava maravilhado como era possível que alguém pudesse conseguir fazer uma coisa tão enorme como ser o que ele era. Lá estava o meu rosto no espelho, moreno e duro, com as maçãs do rosto grandes e altas como se as bochechas sob elas tivessem sido arrancadas a machadadas, os olhos negros e duros, de expressão maligna, iguaizinhos aos de papai ou aos olhos de todos esses índios de aparência dura e má que a gente vê na televisão, e eu pensava, esse não sou eu, esse não é o meu rosto. Não era eu nem quando eu estava tentando ser aquele rosto. Eu não era nem eu realmente, naquela época; eu estava apenas sendo do jeito que eu aparentava ser, do jeito que as pessoas queriam. Não me parece que eu jamais tenha sido eu. Como é que McMurphy consegue ser ele mesmo? Eu o estava olhando de maneira diferente de quando ele chegou; estava vendo mais coisas nele do que apenas mãos grandes e costeletas ruivas e um sorriso de nariz quebrado. Eu o via fazer coisas que não combinavam com o seu rosto ou com suas mãos, coisas como pintar na Terapia Ocupacional com tintas de verdade, num papel em branco sem traços ou números para lhe dizer onde pintar, ou como escrever cartas para alguém com uma bela caligrafia, toda floreada. Como podia um homem com a cara dele pintar quadros ou escrever cartas para pessoas, ou ficar aborrecido e preocupado, como o vi ficar uma vez, quando recebeu uma resposta? Este tipo de coisas era as que se esperavam de Billy Bibbit ou de Harding. Harding tinha mãos que aparentemente deveriam ter feito quadros, embora elas nunca os tenham feito. Harding prendia as mãos e as forçava a serrar tábuas para casas de cachorros. McMurphy não era assim. Ele não deixara que sua aparência dirigisse sua vida de uma maneira ou de outra, da mesma forma como não deixaria a Liga triturá-lo para o encaixar onde queriam que ele se encaixasse. Eu estava vendo uma porção de coisas de maneira diferente. Imaginei que a máquina de neblina se tivesse quebrado dentro das paredes quando eles a ligaram com força demais para aquela sessão na sexta-feira, de forma que agora não podiam fazer circular a neblina e o gás, e distorcer a aparência das coisas. Pela primeira vez em anos, eu via as pessoas sem nada daquele contorno preto que elas costumavam ter, e uma noite até consegui ver do lado de fora das janelas. Como já expliquei, em quase todas as noites, antes de me levarem para a cama, eles me davam aquele comprimido, que me fazia dormir e me mantinha inconsciente. Ou, se alguma coisa saía errada com a dose e eu acordava, sentia meus olhos sem vida, e o dormitório, cheio de fumaça, os fios nas paredes carregados ao limite máximo, contorcendo-se e soltando fagulhas de morte e de ódio no ar – tudo demais para que eu suportasse, de forma que eu enfiava a cabeça debaixo do travesseiro e tentava dormir de novo. Toda vez que eu dava uma olhadela para fora, havia um cheiro de queimado no ar e um chiado como o de um pedaço de carne numa grelha quente. Mas nessa noite, umas poucas noites depois da grande sessão, acordei e vi que o dormitório estava limpo e em silêncio; exceto pela respiração suave dos homens e do negócio a chocalhar solto sob as costelas frágeis dos dois velhos Vegetais. Um silêncio de morte. Uma janela estava aberta, e o ar no dormitório estava puro, e havia um gosto nele que fez com que eu me sentisse tonto e inebriado. Deu-me aquele impulso repentino de me levantar da cama e fazer alguma coisa. Saí de debaixo dos lençóis e fui andando descalço pelos ladrilhos frios entre as camas. Senti os ladrilhos sob os meus pés e me perguntei quantas vezes, quantos milhares de vezes, eu havia passado o esfregão por esse mesmo chão de ladrilhos, sem nunca tê-lo realmente sentido. Aquelas limpezas me pareciam um sonho, como se eu não pudesse realmente acreditar que todos aqueles anos de trabalho haviam acontecido realmente. Só aqueles ladrilhos frios sob os meus pés eram reais naquele momento. Andei em meio dos homens amontoados em longas fileiras brancas como montes de neve, tomando cuidado para não esbarrar em ninguém, até que cheguei à parede com as janelas. Fui andando pelas janelas até uma em que a cortina oscilava suavemente para dentro e para fora com a brisa, e encostei a testa na grade. O arame estava frio e penetrante, e rolei a cabeça contra ele de um lado para outro para senti-lo no rosto. E senti o cheiro da brisa. É o outono chegando, pensei, posso sentir aquele cheiro agridoce dos silos, batendo no ar como um sino – cheiro causado por alguém que andou queimando folhas de carvalho, deixando-as arder durante a noite, por estarem muito verdes. É o outono chegando, continuava pensando, outono chegando; como se aquilo fosse a coisa mais estranha que jamais aconteceu. Outono. Lá fora bem perto, lá estava a primavera há pouco tempo, então era verão e agora é outono – esta realmente é uma idéia curiosa. Percebi que ainda estava com os olhos fechados. Eu os havia fechado quando encostei o rosto na tela, como se estivesse com medo de olhar para fora. Agora eu tinha de abri-los. Olhei para fora pela janela e vi pela primeira voz como o hospital ficava afastado, no campo. A lua brilhava baixa no céu sobre a pastagem que se estendia cheia de marcas e de arranhaduras, no ponto em que se libertava do emaranhado de cerrados de carvalhos e de urzes, no horizonte. As estrelas no alto, perto da lua, estavam pálidas; mostravam-se mais brilhantes e mais fortes à medida que se iam afastando do círculo de luz dominado pela lua gigantesca. Fez com que eu me lembrasse de como havia notado exatamente a mesma coisa quando saí para caçar com papai e os tios e me deitei enrolado nos cobertores que vovó tecia, um pouco afastado do lugar em que os homens se achavam reunidos em volta da fogueira, enquanto bebiam uma jarra de aguardente de cacto, num círculo silencioso. Fiquei observando aquela grande pradaria do Oregon, a lua acima de mim empalidecendo todas as estrelas. Fiquei acordado, observando, para ver se alguma vez a lua ficava menos brilhante ou se as estrelas, mais luminosas, até que o orvalho começou a cair no meu rosto e tive de cobrir a cabeça com um cobertor. Alguma coisa se moveu no chão, embaixo da minha janela, lançando uma longa sombra parecida com uma aranha pela grama, enquanto corria para fora de minha visão atrás de uma cerca. Quando voltou correndo, vi que era um cachorro, um vira-lata novo e magro, certamente fugido de casa para descobrir as coisas que aconteciam depois que escurecia. Farejava buracos de esquilos, não com o intuito de cavar e ir atrás de um, mas apenas, quem sabe, para ter uma idéia do que eles faziam àquela hora da noite. Passava o focinho por um buraco, o empinava alto no ar. sacudindo o rabo, saía correndo atrás de um outro. A lua cintilava em torno dele na grama molhada; e quando corria deixava rastros como manchas de tinta escura respingada na superfície brilhante do gramado. Correndo de um buraco para o seguinte, ficou tão entusiasmado com o que estava descobrindo – a lua lá em cima, a noite, a brisa cheia de cheiros tão selvagens que fazem um cachorro jovem ficar bêbado – que teve de se deitar de costas e rolar. Ele se torceu e se remexeu como um peixe, as costas arqueadas e a barriga empinada, e quando se levantou e se sacudiu um borrifo saiu do seu pêlo sob o luar, como escamas de prata. Farejou mais uma vez todos os buracos, rápido, um depois do outro, para guardar bem os cheiros. Então, de repente, ficou imóvel, paralisado, com uma pata levantada e a cabeça inclinada, na escuta. Eu também fiquei ouvindo, mas não consegui escutar nada, a não ser o bater da cortina na janela. Fiquei na expectativa durante muito tempo. Então, de muito longe, ouvi um grasnado agudo, gargalhante, indistinto, mas cada vez mais perto. Gansos canadenses, emigrando para o sul para o inverno. Eu me lembrei de todas as caçadas e de todo o rastejar sobre a barriga que já tinha feito, tentando matar um ganso, sem nunca ter conseguido. Tentei olhar na mesma direção que o cachorro para ver se conseguia descobrir o bando, mas estava escuro demais. O grasnar foi chegando cada vez mais perto, até que parecia que eles deviam estar voando bem por dentro do dormitório, bem em cima da minha cabeça. Então atravessaram o luar – um colar negro ondulante, armado como um V, na frente o ganso líder. Por um instante o líder ficou bem no centro do círculo, maior do que os outros, uma cruz negra se abrindo e fechando. Depois, ele tirou o seu V do ponto em que ficava à vista e foi novamente para dentro do céu. Eu os ouvi irem – afastando-se, até que tudo que podia ouvir era a lembrança do som. O cachorro ainda pôde ouvi-los por muito tempo depois de mim: ainda se mantinha de pé com a pata levantada; não se tinha movido nem latido quando eles passaram. Quando ele também não pôde mais ouvi-los, começou a correr na direção em que eles se tinham ido, na direção da estrada, trotando num passo regular e solene, como se tivesse um encontro. Prendi a respiração e consegui ouvir o bater das suas patas na grama enquanto ele ia trotando; então ouvi um carro fazer uma curva a toda velocidade. Os faróis surgindo gradualmente sobre a ladeira e iluminando a estrada adiante. Observei o cachorro e o carro que se dirigiram para o mesmo ponto no asfalto. O cachorro estava quase atingindo a cerca de arame, na extremidade do terreno, quando senti alguém atrás de mim. Duas pessoas. Não me virei, mas sabia que era o crioulo, chamado Geever, e a enfermeira com a marca de nascença e o crucifixo. Senti o começo de um zumbido de medo na minha cabeça. O crioulo segurou meu braço e me puxou, fazendo com que me virasse. – Está frio aí na janela, Sr. Bromden – disse-me a enfermeira. – Não acha que é melhor voltar para a sua cama gostosa? – Ele não escuta – disse-lhe o crioulo. – Eu o levo. Ele está sempre desamarrando o lençol e rodando por aí. E eu me movo e ela dá um passo para trás e diz: – Sim, por favor, leve-o. Está mexendo na corrente que traz em volta do pescoço. Em casa, ela se tranca no banheiro, onde ninguém a vê, tira a roupa e esfrega aquele crucifixo por toda aquela mancha que desce do canto de sua boca, numa linha fina, pelos ombros e seios. Ela esfrega, esfrega e implora a Maria que faça um milagre, mas a mancha fica. Ela olha no espelho e vê que está mais escura do que nunca. Finalmente, pega uma escova de arame, usada para raspar a tinta dos barcos, e esfrega a mancha eté que desapareça, põe uma camisola sobre a pele esfolada e gotejante e vai para a cama. Mas ela está cansada demais daquele negócio. Enquanto dorme, ele sobe pela sua garganta, escorre por aquele canto da boca como um cuspe vermelho e lhe desce pelo pescoço sobre o corpo. De manhã, ela vê como está manchada de novo e de alguma maneira imagina que realmente aquilo não vem de dentro dela – como poderia? uma boa moça católica como ela? – e conclui que é porque trabalha durante a noite numa enfermaria cheia de gente como eu. É tudo por nossa culpa, e ela vai vingar-se de nós por causa disso, nem que seja a última coisa que faça. Gostaria que McMurphy acordasse e me ajudasse. – Amarre-o na cama, Sr. Geever, e eu vou preparar uma medicação. Nas Sessões de Grupo estavam surgindo rompantes de mau humor que haviam ficado reprimidos durante tanto tempo que se reclamava de coisas que já haviam sido até modificadas. Agora que McMurphy estava ali para apoiá-los, todos começaram a reclamar de todas as coisas que já haviam acontecido na ala e de que eles não gostaram. – Por que é que os dormitórios têm de ficar trancados durante os fins de semana? – perguntava Cheswick, ou alguma outra pessoa. – Será que um – Sim, Srta. Ratched – diria McMurphy. – Por quê? – Se os dormitórios forem deixados abertos, nós já aprendemos por experiências anteriores, vocês todos voltariam para a cama depois do café. – E isso é um pecado mortal? Quero dizer, gente – Vocês estão aqui neste hospital – dizia ela como se estivesse repetindo aquilo pela centésima vez – por causa da incapacidade comprovada de se ajustarem à sociedade. O médico e eu acreditamos que cada minuto passado na companhia de outras pessoas, com algumas exceções, é terapêutico, enquanto que cada minuto passado remoendo as coisas, sozinhos, apenas aumenta o isolamento de vocês. – É por essa razão que tem de haver pelo menos oito – Exatamente. – Quer dizer que é doença querer estar sozinho? – Eu não disse que… – Quer dizer que, se eu for ao banheiro para me aliviar, eu devo levar junto pelo menos uns sete companheiros, para me impedirem de ficar remoendo os pensamentos sentado no vaso? Antes que ela pudesse responder àquilo, Cheswick se levantava de um salto e gritava para ela: – Sim, é isso o que quer dizer? E os outros Agudos, sentados ali em volta, participando da sessão, começavam a perguntar: – Sim, sim, é isso o que quer dizer? Ela esperava até que todos eles se acalmassem e a sessão ficasse novamente tranqüila. Então, dizia com calma: – Se vocês puderem acalmar-se o bastante de forma a se comportarem como um grupo de adultos numa discussão, em vez de crianças num Todo mundo sabia o tipo de resposta que o médico daria e, antes mesmo que ele tivesse uma oportunidade, Cheswick disparava com uma outra reclamação. – Então como é que ficam os nossos cigarros, Srta. Ratched? – Sim, como é que ficam? – ecoavam os Agudos. McMurphy virou-se para o médico e fez a pergunta diretamente a – Sim, doutor, como é que ficam os nossos cigarros? Como é que ela tem o direito de ficar com os nossos cigarros. O médico virou a cabeça de forma a poder olhar para a enfermeira através dos óculos. Ele não sabia que ela se havia apossado dos cigarros extras para acabar com o jogo. – Que é que há a respeito de cigarros, Srta. Ratched? Não creio que tenha tomado conhecimento… – Doutor, eu acho que três, quatro e às vezes cinco maços de cigarros por dia são absolutamente demais para um homem fumar. Foi isto que pareceu estar acontecendo na semana passada, depois da chegada do Sr. McMurphy, e foi por isso que eu achei que talvez fosse melhor apreender os pacotes que os homens compram na cantina e distribuir apenas um maço por dia para cada homem. McMurphy inclinou-se para a frente e cochichou alto para Cheswick: – Vai ouvir dizer que a próxima decisão dela será a respeito das idas à latrina; não apenas um E tornou a se recostar na cadeira e riu tanto que mais ninguém pôde dizer coisa alguma durante quase um minuto. McMurphy se estava divertindo um bocado com o tumulto todo que estava criando, e acho que fiquei um pouco surpreendido porque ele não estava sendo alvo, também, de muita pressão do pessoal, especialmente surpreendido de que a Chefona não tivesse mais nada a lhe dizer senão o que lhe dizia. "Eu pensei que aquela velha escrota fosse mais dura na queda do que está sendo", disse ele a Harding depois de uma sessão. "Talvez tudo de que ela precisasse para endireitá-la fosse uma boa derrubada. O negócio é que – ele franziu o cenho – ela age como se ainda estivesse com todas as cartas escondidas naquela sua manga branca." Ele continuou divertindo-se com aquilo, até mais ou menos quarta-feira da semana seguinte. Então descobriu por que a Chefona estava tão segura do seu jogo. Quarta-feira é o dia em que eles carregam todo mundo que não tem nenhum tipo de doença e levam para a piscina, quer a gente queira quer não. Quando a neblina estava ligada na enfermaria, eu costumava esconder-me nela para não ir. A piscina sempre me assustou; eu sempre tive medo de que fosse entrar e perder o pé e me afogar, ser sugado pelo encanamento abaixo e ser lançado no mar. Eu costumava ser um bocado corajoso na água, quando menino, em Columbia; andava pelo andaime em volta da cachoeira, com todos os outros homens, com dificuldade, com a água rugindo numa torrente verde e branca a minha volta, e a névoa fazendo arco-íris, sem nem ao menos ter sapatos de tachas como os outros homens. Mas, quando vi papai começar a ficar com medo das coisas, também fiquei com medo, fiquei de tal maneira que não podia suportar nem um laguinho raso. Nós saímos do ginásio e a piscina estava ondulante, cheia de homens nus; a algazarra e a gritaria ecoavam no teto alto, como sempre acontece em piscinas cobertas. Os crioulos nos levaram lá para dentro. A água estava morna, agradável, mas eu não queria afastar-me da borda (os crioulos andam pela borda com longos bastões de bambu para afastar da beirada quem tenta agarrar-se nela). Assim, fiquei perto de McMurphy, porque eu sabia que eles não tentariam fazê-lo ir para o fundo se ele não quisesse. Ele conversava com o salva-vidas, eu fiquei de pé a pouca distância. McMurphy devia estar num buraco porque tinha de agitar as pernas para flutuar, enquanto eu apoiava os pés no fundo. O salva-vidas estava de pé na borda da piscina; tinha um apito e vestia uma camiseta com o número de sua enfermaria impresso. Ele e McMurphy trocavam idéias a respeito da diferença entre o hospital e a cadeia; e McMurphy comentava como o hospital era muito melhor. O salva-vidas não tinha certeza. Eu o ouvi dizer a McMurphy que, para começar, ser internado não é como ser sentenciado. – Você é condenado e sentenciado à prisão, e você tem uma data à sua frente, quando sabe que vai ser solto – disse ele. McMurphy parou de espadanar na água como vinha fazendo. Nadou devagar até a borda da piscina e se segurou ali, olhando para o salva-vidas. – E se você for internado? – perguntou depois de uma pausa. O salva-vidas levantou os ombros num movimento e deu um puxão no apito pendurado no pescoço. Era antigo jogador profissional de futebol, com marcas na testa, e sempre que saía da sua enfermaria um emissor se ligava atrás de seus olhos e seus lábios começavam a cuspir números e ele caía de gatinhas na posição de um jogador pronto para um ataque e saltava em cima de uma enfermeira qualquer que passasse, metia o ombro no traseiro dela, bem a tempo de deixar o médico passar correndo pelo espaço atrás dele. Era por isso que ele estava lá em cima na Enfermaria dos Perturbados; sempre que não estava trabalhando como salva-vidas era capaz de fazer alguma coisa assim. Ele tornou a encolher os ombros para a pergunta de McMurphy, olhou em seguida para trás e para a frente, para ver se algum crioulo estava por perto, e se ajoelhou perto da borda da piscina. Estendeu o braço para que McMurphy olhasse. – Está vendo este gesso? McMurphy olhou para o braço grande do outro. – Você não tem gesso nenhum nesse braço, companheiro. O salva-vidas sorriu. – Bem, esse gesso está aí porque eu tive fratura feia no último jogo com os Castanhos. Não posso voltar ao campo até que a fratura se consolide e eu tire o gesso. A enfermeira diz que está curando meu braço em segredo. É, Ele apoiou os punhos fechados no ladrilho molhado, colocou-se numa posição de jogo de três pontos para testar o braço. McMurphy o observou por um minuto e então perguntou-lhe há quanto tempo ele esperava que o braço ficasse bom para que pudesse sair do hospital. O salva-vidas levantou-se devagar e esfregou o braço. Agiu como se estivesse magoado por McMurphy ter perguntado aquilo, como se tivesse sido acusado de ser fraco e ficar lambendo as feridas. – Estou internado – disse ele. – Já teria saído daqui antes, se fosse por mim. Talvez não pudesse jogar no primeiro time, com este braço ruim, mas poderia ficar dobrando toalhas, não poderia? Poderia fazer Virou-se e foi andando até a cadeira como um gorila drogado, e olhou para baixo, para nós, o lábio inferior estendido para fora. – Fui apanhado por embriaguês e desordem, e estou aqui há oito anos e oito meses – disse ele. McMurphy afastou-se da borda da piscina e foi flutuando, agitando as pernas, e ficou pensando a respeito daquilo: ele havia sido condenado a uma pena de seis meses na colônia penal, com dois meses já cumpridos, faltando cumprir mais quatro – e quatro meses era o máximo que queria ficar trancado em qualquer lugar. Já estava há quase um mês naquele hospício e bem que podia ser muito melhor do que uma colônia penal, com boas camas e suco de laranja no café da manhã, mas não era tão melhor a ponto de fazer com que quisesse passar dois anos ali. Nadou até os degraus na extremidade rasa da piscina e sentou-se ali durante o resto do tempo, puxando aquele pequeno tufo de pêlos vermelhos no pescoço e franzindo o cenho. Observando-o sentado ali, concentrado em si mesmo, lembrei-me do que a Chefona dissera durante a reunião, e comecei a sentir medo. Quando soou o apito para que saíssemos da piscina e todos nós fomos em fila para o vestiário, encontramos o pessoal de uma outra enfermaria, que vinha para seu período de piscina, e na bacia de lavar os pés no chuveiro, por onde se tinha de passar, estava o tal garoto da outra enfermaria. Ele tinha a cabeça grande e esponjosa e quadris e pernas estufados – como se alguém agarrasse um balão de gás cheio de água e o apertasse no meio – e estava deitado de lado na bacia de lavar pés; fazia ruídos como uma foca sonolenta. Cheswick e Harding o ajudaram a ficar de pé, mas ele tornou a se deitar na bacia. A cabeça balançava-se no desinfetante. McMurphy os observou levantarem-no de novo. – Que diabo é que ele é? – perguntou. – Ele tem hidrocefalia – disse-lhe Harding. – Uma espécie qualquer de distúrbio linfático, acho. A cabeça se enche de líquido. Dê uma mãozinha aqui para levantá-lo. Eles soltaram o garoto, e ele tornou a deitar-se na bacia de lavar os pés; a expressão de seu rosto era paciente, indefesa e obstinada; a boca se inflou e soprou bolhas na água leitosa. Harding repetiu seu pedido a McMurphy, para que lhes desse uma ajuda, e ele e Cheswick se inclinaram para o garoto. McMurphy os afastou, passou por eles, saltou por cima do garoto e entrou no chuveiro. – Deixem que ele fique aí – disse enquanto se lavava no chuveiro. – Vai ver que ele não gosta de água funda. Eu podia prever o que estava por vir. No dia seguinte ele surpreendeu todo mundo: acordou cedo e limpou o banheiro até que brilhasse, e em seguida foi trabalhar no assoalho do corredor quando os crioulos lhe pediram para ir. Surpreendeu todo mundo, menos a Chefona: ela agiu como se aquilo não fosse de modo algum surpreendente. E naquela tarde, na sessão, quando Cheswick disse que todo mundo havia concordado em que devia haver uma solução definitiva qualquer sobre o caso dos cigarros, dizendo "não sou nenhuma criança para que me controlem os cigarros como doces! Queremos que se faça alguma coisa a respeito disso, não está certo, Mack?" e esperando que McMurphy o apoiasse, tudo que obteve foi silêncio. Olhou para o canto de McMurphy. Todo mundo olhou. McMurphy estava lá, examinando o baralho de cartas que deslizava, sumindo e aparecendo em suas mãos. Ele nem ergueu o olhar. Fez-se um terrível silêncio; só se ouviam o bater das cartas engorduradas e a respiração pesada de Cheswick. – Quero que se Ele nunca havia parecido grande; era baixo e gordo demais, e tinha uma área careca na parte de trás da cabeça que ficava à mostra como um dólar cor-de-rosa, e de pé ali, sozinho, no meio da enfermaria, daquele jeito, ele parecia minúsculo. Olhou para McMurphy e não recebeu sequer um olhar de volta, e foi olhando para a fileira de Agudos, procurando ajuda. Cada vez que um homem desviava o olhar e se recusava a responder, o pânico aumentava em seu rosto. Seu olhar finalmente se deteve na Chefona. Ele bateu o pé mais uma vez. – Quero que se Os dois crioulos maiores agarraram-lhe os braços por trás, e o menor lançou uma correia em volta dele. Ele desabou como se tivesse levado um tiro, e os dois grandes o arrastaram lá para cima, para a Enfermaria dos Perturbados; podia-se ouvir as batidas surdas do corpo dele subindo os degraus. Quando eles voltaram e se sentaram, a Chefona virou-se para a fileira de Agudos do outro lado da sala e olhou para eles. Nada havia sido dito desde que Cheswick saíra. – Há mais alguma dúvida – disse ela – quanto ao racionamento de cigarros? Olhando para a fileira de rostos sem vida, pendurados na parede do outro lado da sala, meus olhos finalmente encontraram McMurphy na sua cadeira no canto, concentrando-se em aprimorar o corte de baralho com uma só mão… e os tubos brancos no teto começam a bombear aquela luz refrigerada… posso sentir os raios vindo até o interior do meu estômago. Depois que McMurphy deixou de nos defender, alguns dos Agudos discutem e dizem que ele ainda está passando a Chefona para trás, que ele foi avisado de que ela estava prestes a mandá-lo para a Enfermaria dos Perturbados e decidiu afrouxar um pouco o laço, não lhe dando motivos. Outros concluem que ele a está deixando descontrair-se e que vai aprontar alguma novidade para ela, algo ainda mais violento e mais maléfico. A gente pode ouvi-los a discutir em grupos, tentando adivinhar. Mas eu, eu Então, uma manhã todos os Agudos também descobrem, sabem qual é o verdadeiro motivo de seu recuo e que as razões que eles tinham estado imaginando eram apenas mentiras para se enganarem a si próprios. Ele nunca disse algo sobre a conversa que teve com o salva-vidas, mas eles sabem. Imagino que a enfermeira tenha anunciado isso durante a noite, através de todas as linhas no chão do dormitório, porque eles souberam todos de uma vez. Posso ver pela maneira como olham para McMurphy naquela manhã, quando entra na enfermaria. Não como se estivessem zangados com ele, ou mesmo desapontados, porque eles podem compreender, da mesma forma que eu, que a única maneira que ele tem para conseguir que a Chefona suspenda sua internação é agindo como ela quer. Mas, ainda assim, todos olham para ele como se desejassem que as coisas não fossem daquele jeito. Até Cheswick pôde entender isso e não guardou rancor contra McMurphy por não ter ido em frente e criado um caso por causa dos cigarros. Ele voltou da Enfermaria dos Perturbados no mesmo dia em que a enfermeira transmitiu a informação para as camas. Ele disse a McMurphy, ele mesmo, que compreendia sua atitude e que certamente era a coisa mais sensata a fazer, levando tudo em consideração, e que, se ele tivesse pensado no fato de que Mack havia sido internado judicialmente, nunca o teria posto em dificuldades como fizera no outro dia. Disse isso a McMurphy enquanto todos nós estávamos sendo levados para a piscina. Mas, assim que chegamos lá, ele acrescentou que, realmente, apesar de tudo, desejava que Lá na frente, adiante de mim na fila do almoço, vejo uma bandeja saltar no ar, uma nuvem de plástico verde chovendo leite, ervilhas e sopa de legumes. Sefelt está saindo agitadamente da fila, saltando num pé só, os braços erguidos no ar, cai para trás num arco rígido, e o branco de seus olhos surge ao meu lado, de cabeça para baixo. A cabeça dele bate no ladrilho com um ruído como o de rochas sob a água, e ele continua arqueado, como uma ponte, a contorcer-se, tremendo. Fredrickson e Scanlon saltam para ajudar, mas o crioulo grande os empurra para trás e arranca uma vareta achatada do bolso de trás, enrola uma fita na vareta, que fica coberta por uma mancha marrom. Ele abre a boca de Sefelt e enfia a vareta entre seus dentes, e ouço a vareta se partir com a mordida de Sefelt. Posso sentir o gosto das lascas. As convulsões de Sefelt diminuem, vão ficando mais fortes, aumentam mais ainda, provocam grandes saltos que o erguem numa ponte, para cair em seguida. Levanta e cai, cada vez mais devagar, até que a Chefona entra e fica de pé junto a ele e ele se desaba frouxamente por todo o chão numa poça acinzentada. Ela une as mãos diante de si, só faltava estar segurando uma vela, olha para o que resta dele a se esvair pelas aberturas das calças e da camisa. – Sr. Sefelt? – diz para o crioulo. – Isso mesmo… – E o Sr. Sefelt me tem garantido que O rosto dela está sorridente, compassivo, paciente e triste, tudo de uma vez – uma expressão treinada. McMurphy nunca tinha visto uma coisa assim. – Que é que há de errado com ele? – pergunta. Ela continua olhando para a poça, sem se virar para McMurphy. – O Sr. Sefelt é epilético, Sr. McMurphy. Isto significa que ele pode estar sujeito a ataques, como este, a qualquer momento, se não seguir a orientação médica. Ele acha que sabe muito. Nós o havíamos avisado de que isto aconteceria quando ele não quis tomar os remédios. Entretanto, ele insistiu em agir estupidamente. Fredrickson sai da fila com as sobrancelhas eriçadas. Ele é um cara forte, pálido, de cabelo louro, sobrancelhas grossas e maxilar grande, e de vez em quando age com rudeza como Cheswick costumava fazer – grita, esbraveja e xinga uma das enfermeiras, diz que vai Ele se aproxima da enfermeira brandindo o punho contra ela. – Ah, é assim? É assim, hem? Vai crucificar o Seef como se ele estivesse fazendo isso para Ela põe uma mão confortadora no braço dele, e o punho se abre. – Está tudo certo, Bruce. Seu amigo vai ficar bom. Ao que parece ele não tem tomado o Dilantin. Eu simplesmente não sei o que ele tem feito com os comprimidos. Ela sabe tão bem como todo mundo; Sefelt fica com os comprimidos na boca e depois os dá a Fredrickson. Sefelt não gosta de tomá-los por causa do que ele chama "efeitos colaterais nocivos", e Fredrickson gosta de uma dose dupla porque tem um pavor mortal de ter um ataque. A enfermeira sabe disso, pode-se perceber pela sua voz, mas olhando para ela ali, tão simpática e gentil, poder-se-ia pensar que ignorava qualquer combinação entre Fredrickson e Sefelt. – Siimm – diz Fredrickson, mas ele não consegue reativar o seu ataque. – Sim, bem, não precisa agir como se fosse simplesmente um caso de tomar o negócio ou não. A senhora sabe como Seef se preocupa com a aparência pessoal e como as mulheres vão pensar que ele é feio, e tudo isso, e sabe que ele acha que o Dilantin… – Eu sei – diz ela e toca novamente o braço dele. – Ele também culpa a droga pela queda de cabelo. Pobre velho diabo. – Ele não é tão velho assim! – Eu sei, Bruce. Por que é que fica tão – Ora bolas! – diz ele e enfia os punhos nos bolsos. A enfermeira se abaixa e limpa um lugarzinho no chão. Ajoelha-se nele e começa a tornar a dar alguma forma a Sefelt. Diz ao crioulo para ficar com o coitado do sujeito que ela vai mandar uma cama Gurney para ele; para depois levá-lo para o dormitório e deixá-lo dormir o resto do dia. Quando ela se levanta, dá uma palmadinha no braço de Fredrickson, e ele resmunga: – É, eu também tenho de tomar Dilantin, sabe. É por isso que eu sei o que Seef tem de enfrentar. Quero dizer, é por isso que eu… ora bolas… – Eu compreendo, Bruce, o que vocês dois devem ter de passar, mas você não acha que qualquer coisa é melhor do que isso? Fredrickson olha para onde ela aponta. Sefelt está voltando mais ou menos ao normal, inchando e encolhendo numa respiração ofegante e úmida. Há um galo no lado de sua cabeça onde bateu no chão, e uma espuma vermelha em volta da vareta, no ponto em que ela entrou em sua boca, e os olhos estão começando a voltar ao branco. As mãos dele continuam estendidas para os lados, com as palmas viradas para cima, abrindo-se e fechando-se convulsivamente do mesmo jeito como eu vi os homens terem convulsões no Tratamento de Choque, amarrados na mesa em forma de cruz, a fumaça da corrente subindo das mãos. Sefelt e Fredrickson nunca foram submetidos ao Tratamento de Choque. Eles foram feitos para gerar a sua própria voltagem, armazená-la na coluna vertebral, e pode ser ligada por controle remoto do painel de aço da Sala das Enfermeiras, se saírem da linha – podem estar bem no meio de uma piada suja e se contraem como se o choque os atingisse num ponto das costas. Poupa o trabalho de se ter de os levar para aquela sala. A enfermeira dá uma sacudidela no braço de Fredrickson, como se ele tivesse pegado no sono e repete: – Mesmo levando-se em consideração os efeitos nocivos do remédio, não acha que é melhor do que Enquanto olha fixo para o chão, as sobrancelhas de Fredrickson se levantam como se estivesse vendo pela primeira vez – Não sei Não é como se ele quisesse uma resposta; é mais uma espécie de conscientização de que ele não consegue descobrir uma razão. Ele torna a estremecer e começa a esgueirar-se, afastando-se do grupo. McMurphy vai até ele e pergunta, em voz baixa, o que – Dilantin, McMurphy, um anticonvulsivo, se interessa saber. – E não funciona, ou coisa assim? – Sim, eu acho que funciona direito… se você tomar. – Então qual é o problema de tomar ou não tomar? – Olhe, se é que lhe interessa! Aqui está a porcaria do problema sobre tomá-lo ou não. – Fredrickson levanta a mão e agarra o lábio inferior com o polegar e o indicador, puxa para baixo para mostrar as gengivas feridas, vermelhas e brancas em volta dos dentes compridos e brilhantes. – As gengivas – diz ele segurando o lábio – Dilantin apodrece suas gengivas. E num acesso você range os dentes. E você… Há um ruído no chão. Eles olham para onde Sefelt está, gemendo e arquejando, no exato momento em que o crioulo lhe arranca dois dentes junto com a vareta. Scanlon pega a bandeja e se afasta do grupo dizendo: – Um inferno de vida. Fodido se fizer e fodido se não fizer. Bota um homem num diabo dum beco sem saída. McMurphy diz: – Sim, eu compreendo o que você quer dizer. – Olha para baixo, para o rosto de Sefelt, que se vai recompondo, o rosto dele começou a tomar aquela mesma expressão cansada e confusa do rosto do chão. O que quer que tenha pifado na engrenagem acabaram de consertar. O funcionamento calculado e limpo está voltando: seis e meia, fora da cama; sete horas, no refeitório; oito, vêm os quebra-cabeças para os Crônicos e as cartas para os Agudos… na Sala das Enfermeiras posso ver as mãos brancas da Chefona flutuarem sobre os controles. Às vezes eles me levam com os Agudos, às vezes não. Quando eles me levam junto com eles até a biblioteca, eu caminho até a seção de livros técnicos, fico ali olhando para os títulos dos livros sobre eletrônica, livros que reconheço daquele ano que passei na universidade; lembro-me de que, por dentro, os livros estão cheios de desenhos esquemáticos, equações e teorias – coisas difíceis, exatas e seguras. Tenho vontade de folhear um dos livros, mas tenho medo. Estou com medo de fazer qualquer coisa. Sinto-me como se estivesse flutuando no ar amarelo, empoeirado, da biblioteca, a meio caminho do fundo, a meio caminho do topo. As fileiras de livros oscilam acima de mim, ziguezagueando loucamente, correndo em todos os ângulos diferentes, de um para outro. Uma prateleira de livros se inclina um pouco à esquerda, outra para a direita. Algumas delas se estão inclinando sobre mim, e não sei como os livros não caem. Vão subindo, subindo, até que se perdem de vista, as estantes de livros em perigo de desmoronar, presas com ripas e pedaços de madeira, levantadas por bastões, encostadas em escadas, por todos os lados em volta de mim. Se eu tirasse um livro, Deus sabe que coisa terrível poderia acontecer. Ouço alguém chegar, e é um dos crioulos da nossa ala e a esposa de Harding está com ele. Estão conversando e rindo quando entram na biblioteca. – Olha aqui, Dale – grita o crioulo para Harding. que está lendo um livro. – Olhe só quem veio visitar você. Eu disse a ela que não era hora de visitas, mas você sabe como ela fala macio e acabou me convencendo a trazê-la até aqui, de qualquer maneira. – Ele a deixa de pé diante de Harding e sai, acrescentando misteriosamente: – Agora, não vá esquecer, viu? Ela atira um beijo para o crioulo, vira-se para Harding, num movimento de quadris para frente. – Alô, Dale. – Querida – diz ele, mas não faz qualquer movimento para dar os dois passos que o separam dela. Ele olha em volta, para todo mundo que está observando. Ela é tão alta quanto ele. Usa sapatos de salto alto e carrega uma bolsa, não pela alça, mas segurando-a como se fosse um livro. As unhas dela são vermelhas como gotas de sangue, contra o preto brilhante da bolsa de verniz. – Ei, Mack – grita Harding para McMurphy, que está sentado do outro lado da sala, lendo uma revista de histórias em quadrinhos. – Se você puder privar-se de suas pesquisas literárias por um momento, apresento você à minha cara-metade. Eu poderia ser banal e dizer, "à minha melhor metade", mas creio que esta expressão indica uma espécie de divisão basicamente igual, não acha? Ele tenta rir, e seus dois dedos finos de marfim se enfiam no bolso da camisa para pegar os cigarros, remexem, desajeitadamente, tirando o último maço. O cigarro treme quando ele o coloca entre os lábios. Ele e a esposa ainda não deram um passo na direção um do outro. McMurphy se levanta da cadeira e tira o gorro enquanto se aproxima. A esposa de Harding olha para ele e sorri, levantando uma das sobrancelhas. – Boa tarde, Sra. Harding – diz McMurphy. Ela lhe dá um sorriso mais largo ainda e diz. – Eu detesto Sra. Harding, Mack; por que não me chama de Vera? Os três se sentam no sofá onde Harding se encontrava, e ele conta à esposa coisas sobre McMurphy e como McMurphy levou a melhor sobre a Chefona. Ela sorri e diz que aquilo não a surpreende nem um pouco. Enquanto Harding está contando a história, ele se entusiasma e se esquece das mãos, e elas fazem uma trama no ar diante dele, num quadro suficientemente claro para que se possa vê-las – Dale, quando é que você vai aprender a rir em vez de dar esse guinchado de rato? É a mesma coisa que McMurphy disse sobre o riso de Harding naquele primeiro dia, mas de alguma forma é diferente; enquanto que o fato de McMurphy dizê-lo acalmou Harding, o fato de ela dizer o mesmo o tornou mais nervoso do que nunca. Ela pede um cigarro, e Harding torna a enfiar os dedos no bolso e o sente vazio. – Estão sendo racionados – diz ele, dobrando os ombros magros para frente como se estivesse tentando esconder o cigarro fumado pela metade que está segurando: – um maço por dia. Isso não parece deixar qualquer margem de cavalheirismo para um homem, Vera, minha querida. – Oh, Dale, você nunca tem o suficiente, não é? Os olhos dele assumem aquela expressão maliciosa, caprichosa e febril enquanto olha para ela e sorri. – Estamos falando simbolicamente, ou ainda estamos lidando com os cigarros concretos de aqui e agora? Não importa; você sabe a resposta à pergunta, qualquer que seja o sentido que lhe tenha querido dar. – Eu não quis dar nenhum sentido, exceto exatamente o que disse, Dale… – E você não quis dar – Está bem! Chega! Eu quis dizer nos dois sentidos. Eu quis dizer de qualquer maneira que você queira compreender. Eu quis dizer que você nunca tem o suficiente de nada, ponto parágrafo! – O suficiente de – Você, Mack, que tal você? Será que pode lidar com uma coisinha simples como oferecer um cigarro a uma garota? O maço dele já está no colo. Ele olha para o maço como se desejasse que não estivesse ali. Então, diz: – Claro, eu sempre tenho cigarros. A razão é que sou um malandro. Eu filo sempre que surge uma oportunidade, é por isso que o meu maço dura mais que o de Harding. Ele só fuma os dele. Assim, pode ver como é mais provável que ele fique sem cigarros do que… – Você não precisa desculpar-se pelos meus defeitos, amigo. Isso não combina com o seu caráter e não favorece o meu. – Não, mesmo – diz a moça. – Tudo que você tem de fazer é acender o meu cigarro. E ela se inclina tanto para a frente, em direção ao fósforo, que até do outro lado da sala eu posso ver por dentro do decote da blusa. Ela fala mais um pouco sobre alguns amigos de Harding que ela desejaria deixassem de aparecer em casa procurando por ele. – Você conhece o tipo, não é, Mack? – diz ela. – Os rapazes barulhentos, de lindos cabelos compridos, bem penteados, e de punhos frouxos que sacodem com graça. – Harding pergunta-lhe se era só a ele que os rapazes pretendiam ver, e ela responde que qualquer homem que apareça para vê-la sacode mais do que seus malditos punhos frouxos. Ela se levanta de repente e diz que está na hora de ir. Segura a mão de McMurphy e lhe diz que espera vê-lo novamente, numa outra ocasião, e sai da biblioteca. McMurphy não pode dizer uma palavra. Ao bater dos saltos altos dela a cabeça de todo mundo se levanta, e eles a observam pelo corredor, até que ela vira, saindo de vista. – Que é que você acha? – diz Harding. McMurphy tem um sobressalto. – Ela tem um belo par de tetas – é tudo em que ele pode pensar. – Grandes como os da Velha Dama Ratched. – Não quis dizer fisicamente, amigo, quis dizer o que é que você… – Que diabo, Harding! – berra McMurphy de repente. – Eu não sei o que pensar! Que é que você quer que eu seja? Um conselheiro matrimonial? Tudo que sei é isso: para começar ninguém é grande mesmo, e me parece que todo mundo passa a vida inteira arrebentando com as outras pessoas. Eu sei o que você quer que eu pense; você quer que eu sinta pena de você, que pense que ela é realmente uma cadela. Bem, você não a fez se sentir como uma rainha, tampouco. Você que se foda com o seu "que é que você acha?" Tenho meus próprios problemas para me preocupar com os seus. Pare com isso! – Ele lança um olhar furioso pela biblioteca, para os outros pacientes. – Todos vocês! Parem de me Enfia o gorro na cabeça e volta para a sua revista de histórias em quadrinhos, do outro lado da sala. Todos os Agudos se entreolham boquiabertos. Por que é que ele está berrando com Naquela noite, durante o jantar, ele pede desculpas a Harding, e diz que não sabe o que o fez ficar tão furioso na biblioteca. Harding diz que talvez tenha sido a sua esposa; que ela freqüentemente enerva as pessoas. McMurphy, ainda sentado, olhando fixo para o café, diz: – Não sei, – Ora, McMurphy continua sério. – Não sei, Na manhã seguinte, Martini está atrás do painel de controles na Sala da Banheira, brincando como se fosse um piloto de jato. O jogo de pôquer pára, para que os homens riam de sua encenação. – Gira um botão, empurra uma alavanca para frente e se recosta no assento da aeronave. Ele aciona uma manivela até "Força Total", no lado do painel, mas não sai uma gota sequer de água dos bocais espalhados em todo o quadrado de ladrilhos a sua frente. Não usam mais hidroterapia. Ninguém ligou a água. O equipamento cromado, novo em folha, e o painel de aço nunca foram usados. Exceto pelos cromados, o painel e o chuveiro são iguais aos equipamentos de hidroterapia que eles usavam no antigo hospital, há 15 anos: bocais capazes de alcançar partes do corpo de qualquer ângulo, um técnico com um avental de borracha de pé do outro lado da sala, manipulando os controles do painel, dizendo quais os bocais a lançarem o jato, para onde, com que força, a que temperatura – o chuveiro aberto ora suavemente e tranqüilizador, ora forte, penetrante como uma agulha – você pendurado ali, entre os bocais, por tiras de lona, encharcado, frouxo e enrugado, enquanto o técnico se divertia com o brinquedo. – Martini se abaixa, fecha um dos olhos e faz pontaria através do anel de bocais. – Na mira! Pronto… Apontar… Fo… As mãos dele saltam para trás, soltando-se do painel, e ele fica de pé, bem ereto, o cabelo esvoaçando e os olhos arregalados para o chuveiro, tão transtornado e assustado que todos os jogadores de cartas se viram nas cadeiras para ver também o que ele viu – mas nada vêem ali, exceto as fivelas de metal penduradas entre os bocais nas tiras duras de lona bem nova. Martini vira-se e olha direto para McMurphy. Para mais ninguém. – Você não os viu? Não viu? – Vi quem, Mart? Não vejo nada. – Naquelas tiras? Não viu? McMurphy olha para o chuveiro. – Não. Não vejo nada. – Espere um minuto. Eles precisam que você os veja – diz Martini. – Dane-se, Martini, já disse que não posso vê-los! Compreende? Não vejo diabo de coisa nenhuma! – Ah – diz Martini. Ele balança a cabeça concordando e dá as costas para o chuveiro. – Bem, eu também não os vi. McMurphy corta o baralho e o embaralha com um movimento brusco. – Bem… eu não gosto desse tipo de brincadeira, Mart. – Ele corta para embaralhar de novo, e as cartas voam para todos os lados, como se o baralho tivesse explodido entre suas mãos trêmulas. Eu me lembro de que foi novamente numa sexta-feira, três semanas depois que fizemos a votação sobre a TV, e todo mundo que podia andar foi levado para o Prédio Um, para, conforme eles nos disseram, uma abreugrafia, para tuberculose, mas eu sei que foi para verificar se o equipamento de todo mundo estava funcionando direito. Ficamos sentados num banco, numa longa fileira, num corredor que leva a uma porta que tem uma placa onde se lê RAIOS X. Perto dessa sala há uma porta onde está escrito OTORRINO. Ali eles examinam a nossa garganta no inverno. Do outro lado do corredor há um outro banco, e ele leva àquela porta de metal. Com a fileira de rebites. E nada escrito nela. Dois homens estão cochilando no banco, entre dois crioulos, enquanto outra vítima lá dentro está recebendo tratamento, e posso ouvi-la a gritar. A porta se abre para dentro com o som de uma rajada de vento, e posso ver os tubos cintilantes na sala. Eles vêm empurrando a vítima para fora, e eu me agarro ao banco onde me encontro sentado para não ser sugado por aquela porta. Um crioulo e um branco arrastam um dos homens do banco e o botam de pé, ele oscila e cambaleia sob o efeito das drogas que tomou. Geralmente nos dão comprimidos vermelhos antes do Choque. Eles o empurram porta adentro, e os técnicos o seguram pelos braços. Por um segundo vejo que ele percebe para onde o levaram, e enrijece os calcanhares contra o cimento do chão, tentando impedir que o empurrem para a mesa. Então a porta é fechada, – Homem, que é que eles estão fazendo lá dentro? – pergunta McMurphy a Harding. – Lá? Ora, é isso mesmo, não é? Você ainda não teve o prazer. Pena. É uma experiência que nenhum ser humano devia deixar de conhecer. – Harding cruza os dedos na nuca e se recosta para olhar para a porta. – Aquilo é a Sala de Choque, de que eu lhe falei há algum tempo, amigo, a TE, Terapia de Eletrochoque. Aquelas almas afortunadas lá dentro estão recebendo uma viagem à Lua de graça. Não, pensando bem, não é completamente gratuita. Você paga pelo serviço com células cerebrais em vez de dinheiro, e todo mundo tem simplesmente bilhões de células cerebrais disponíveis. Você não sentirá falta de algumas delas. – Ele franze o cenho para o homem sozinho, sentado no banco. – Clientela não muito grande, hoje, ao que parece, nada como as multidões do ano passado. Mas, enfim, A porta se abre. Uma cama Gurney sai zumbindo, sem ninguém para empurrá-la, faz a curva em duas rodas e desaparece, soltando fumaça, pelo corredor acima. McMurphy observa levarem o último para dentro e fecharem a porta. – O que eles fazem é – McMurphy ouve um momento – levar um – Esta é uma forma concisa de descrevê-lo. – Mas para – Ora, para o bem do paciente, é claro. Tudo que é feito aqui é para o bem do paciente. Você às vezes pode ter a impressão, por ter vivido apenas na nossa ala, de que o hospital é um vasto mecanismo eficiente que funcionaria muito bem se o paciente não fosse obrigado a viver nele, mas isso não é verdade. A TE não é usada sempre como medida punitiva, como a nossa enfermeira usa, e tampouco é puro sadismo por parte do pessoal. Uma quantidade considerável de supostos irrecuperáveis foi trazida de volta ao contato com choques, exatamente como uma quantidade de outros foi ajudada com lobotomia. O tratamento de choque, tem algumas vantagens; é barato, rápido, inteiramente indolor. Ele simplesmente induz um acesso. – Que vida! – geme Sefelt. – Dão comprimidos a alguns de nós para acabar um acesso, dão choque no resto para começar outro. Harding inclina-se para a frente para explicar a McMurphy. – Foi assim que começou: dois psiquiatras estavam visitando um matadouro, Deus sabe por que razão perversa, e observavam o gado ser morto por uma pancada, entre os olhos, dada com uma marreta. Notaram que nem todos morriam. Alguns caíam no chão num estado que se assemelhava muito a uma convulsão epilética. Scanlon diz que pensava que o – Uma marreta – Jesus, não pensaram que poderiam causar algum dano? O público não fez um escarcéu por causa disso? – Não creio que você tenha compreendido bem o público, meu amigo; neste país, quando alguma coisa não funciona, a maneira mais rápida de consertá-la é sempre a melhor. McMurphy sacode a cabeça. – Que horror! Eletricidade na cabeça. – As razões de ambas as atividades estão muito mais estreitamente relacionadas do que você imagina; ambas visam à cura. – E você diz que não – Calma, Harding. A porta se abre e a cama Gurney torna a surgir com o – Acho que não sou capaz de compreender todo esse negócio que está acontecendo bem na minha cabeça. – Que é? Esse tratamento de choque? – Sim. Não, não apenas isso. Tudo isso… – ele move a mão num círculo. – Todas essas coisas que estão acontecendo. A mão de Harding toca o joelho de McMurphy. – Ponha a sua mente perturbada à vontade, amigo. Segundo todas as probabilidades, você não precisa se preocupar com a TE. Está quase fora de moda e só é usada em casos extremos, que nenhuma outra coisa parece atingir, como a lobotomia. – E essa lobotomia? É cortar fora um pedaço do cérebro? – Você está certo mais uma vez. Está tornando-se muito sofisticado no uso do jargão. Sim, cortar fora o cérebro. Castração do lobo frontal. Creio que uma vez que ela não pode cortar abaixo do cinto, corta acima dos olhos. – Quer dizer a Ratched? – Sim, senhor. – Não pensei que a enfermeira tivesse opinião atuante nesse tipo de coisa. – Pois ela tem sim. McMurphy dá a entender que ficaria satisfeito de parar com o assunto sobre choque e lobotomia e volta a falar da Chefona. Pergunta a Harding o que é que ele imagina que esteja errado com ela. Harding, Scanlon e alguns dos outros têm todo tipo de idéias. Conversam durante algum tempo sobre se ela é a raiz de todos os problemas aqui ou não, e Harding diz que ela é a causadora da maioria deles. A maior parte dos outros também pensa assim, mas McMurphy não tem mais tanta certeza. Ele diz que pensou assim há algum tempo, mas que agora não sabe. Diz que não acha que tirá-la do caminho faria realmente muita diferença; diz que há alguma coisa maior por trás de toda aquela confusão e continua para tentar dizer o que é. Finalmente, desiste, quando não consegue encontrar uma explicação. McMurphy não sabe, mas ele descobriu o que eu percebi há muito tempo já, que não é apenas a Chefona sozinha, mas é a Liga inteira, a Liga de proporções nacionais, que é a força realmente grande, e que a enfermeira é apenas um de seus oficiais de alta patente. Os outros não concordam com McMurphy. Dizem que – Que diabo, prestem só atenção ao que vocês estão dizendo. Só ouço reclamações e reclamações. A respeito da enfermeira, ou do pessoal ou do hospital. Scanlon quer bombardear o negócio inteiro. Sefelt põe a culpa nas drogas. Fredrickson culpa seus problemas de família. Bem, vocês só estão é transferindo o problema. Ele diz que a Chefona é apenas uma velha amarga e sem coração, e que todo aquele negócio de tentar fazê-lo defrontar-se com ela é um monte de merda – que não faria bem a ninguém, especialmente a ele. O fato de se livrarem dela não significa que se livrariam do verdadeiro e profundo distúrbio emocional que está causando as reclamações. – Você acha que não? – diz Harding. – Então, uma vez que de repente você está tão lúcido a respeito do problema da saúde mental, qual – Vou dizer-lhe uma coisa, – Que diabo! É isso aí. Você está designado para fazê-lo, Mack. Você é exatamente o garanhão certo para executar a tarefa. – Eu não. Não, senhor. Você escolheu o – Por que não? Eu pensei que você fosse o supergaranhão com todas aquelas trepadas. – Scanlon, companheiro, eu planejo ficar tão longe daquela velha escrota quanto puder. – Tenho notado isso – diz Harding, sorrindo. – Que é que aconteceu entre vocês dois? Você a controlou durante um período, depois desistiu. Uma compaixão repentina pelo nosso anjo de misericórdia? – Não; eu descobri certas coisas, é por isso. Fiz umas perguntas por aí em alguns lugares. Descobri por que vocês todos vivem lambendo o rabo dela e fazem reverências e bajulam e deixam que ela pise em cima de vocês. Eu descobri para que vocês me estavam usando. – Ah, é? Isto é interessante. – Você disse certo, é interessante. É interessante para mim vocês, malandros, não me terem avisado do risco que eu estava correndo, torcendo o rabo dela daquele jeito. Só porque não gosto dela, isso não quer dizer que vou aporrinhá-la até aumentar a minha sentença por mais um ano ou coisa assim. Às vezes a gente tem que engolir o orgulho e ficar de olho aberto para a velha Número Um. – Ora, amigos, não acham que há alguma verdade nessa conversa de que o nosso McMurphy se submeteu à política apenas para aumentar as possibilidades de ser libertado antes, acham? – Você sabe do que estou falando, Harding. Por que não me disse que ela me podia manter internado aqui até que houvesse por bem me libertar? – Ora, eu tinha – Diabo, pode mesmo apostar que estou ficando esperto. Por que haveria de ser eu a ficar brigando nessas sessões por causa dessas queixinhas insignificantes a respeito de manter a porta do dormitório aberta ou sobre os cigarros na Sala das Enfermeiras? Eu não conseguia entender, no início, por que vocês estavam vindo para mim como se eu fosse uma espécie de salvador. Então, por acaso, descobri que as enfermeiras têm a palavra definitiva quanto a quem é libertado e quem não é. E eu tratei de ficar esperto muito depressinha. Eu disse "ora, esses sacanas traiçoeiros Ele ri, pisca o olho e cutuca Harding nas costelas com um polegar como se tivesse acabado com a discussão, mas sem rancores. É quando Harding lhe diz: – Não. Você tem mais a perder do que eu, amigo. Harding está sorrindo de novo, olhando com aquele olhar escorregadio, de égua nervosa, com um movimento de inclinação e recuo da cabeça. Martini sai da tela de raios X, abotoando a camisa e resmungando "não acreditava se não tivesse visto" e Billy Bibbit vai para trás do vidro preto para tomar o lugar de Martini. – Você tem mais a perder do que eu – repete Harding. – Sou paciente voluntário. Não estou internado. McMurphy não diz uma palavra. Ele tem aquela mesma expressão perplexa no rosto, como se alguma coisa não estivesse certa, alguma coisa que não soubesse definir ao certo. Continua sentado ali, simplesmente, olhando para Harding. O sorriso assustado de Harding desaparece e ele começa a se remexer, porque McMurphy está olhando para ele de um jeito estranho. Ele engole em seco e diz: – Para falar a verdade, só há poucos homens na nossa enfermaria que Então ele pára, a voz sumindo sob o olhar de McMurphy. Depois de um momento de silêncio, McMurphy diz num tom suave: – Você está me sacaneando? – Harding sacode a cabeça. Ele parece assustado. McMurphy se levanta, no corredor, e diz: – Vocês todos estão me Ninguém diz nada. McMurphy anda para cima e para baixo diante daquele banco, passando a mão pelo cabelo espesso. Anda até lá embaixo, no fim da fila, volta até lá na frente, até a máquina de raios X. Ela sibila e cospe para ele. – Você, Billy… você Billy está de costas para nós, o queixo erguido sobre a tela negra, na ponta dos pés. – Não – diz ele para a máquina. – Então Billy nada diz, e McMurphy se vira para os outros. – Digam-me por quê. Vocês reclamam, vocês resmungam durante Eles não discutem. Ele se aproxima de Sefelt. – Sefelt, e você? Nada há de errado com você, exceto que tem ataques. Que diabo, um tio meu tinha acessos de raiva dez vezes piores que os seus e tinha visões do Diabo em pele e osso, mas ele não se trancou num hospício. Você poderia ir-se virando lá fora, se tivesse coragem… – Claro! – É Billy, que se virou da tela, o rosto coberto de lágrimas. – Claro! – grita ele de novo. – Se tivéssemos c-coragem. Eu poderia ir lá para fora hoje, se tivesse coragem. Minha m-m-mãe é uma ótima amiga da S – Srta. Ratched, eu poderia conseguir que me assinassem minha alta hoje de tarde, se tivesse coragem! Ele arranca a camisa violentamente do banco e tenta vesti-la, mas está tremendo demais. Afinal, ele a afasta de si e vira-se para McMurphy. – Você acha que eu que – que – quero ficar aqui? Você acha que eu não queria um con-conversível e uma nah – nah – namorada? Mas alguma vez as pessoas já r – r – riram de você? Não, porque você é tão g – g – grande e Ele começa a chorar e, gaguejando demais para dizer qualquer outra coisa, limpa os olhos com as costas das mãos. Uma das cascas de ferida se solta e, quanto mais ele esfrega os olhos, mais sangue se espalha neles e pelo rosto todo. Então começa a correr cegamente, batendo-se nas paredes do corredor de um lado para o outro, com o rosto transformado numa mancha de sangue, um crioulo bem atrás dele. McMurphy volta-se para os outros e abre a boca para perguntar uma outra coisa qualquer, mas fecha-a quando vê como eles estão olhando para ele. Fica parado ali um minuto, com aquela fileira de olhos a encará-lo, como uma fila de rebites. – Que merda – diz ele afinal, mas de uma maneira assim, meio fraca, e torna a botar o gorro e o puxa com força, voltando em seguida para o seu lugar no banco. Os dois técnicos voltam do café e tornam a entrar na sala defronte, no corredor; quando a porta se abre com um ruído de vento, pode-se sentir um cheiro ácido no ar, como quando eles recarregam uma bateria. McMurphy continuava sentado ali, olhando para aquela porta. – Acho que não sou capaz de entender isso direito na minha cabeça… No caminho de volta para a enfermaria, McMurphy deixou-se ficar para trás no fim do grupo, com as mãos nos bolsos do pijama e o gorro bem enfiado na cabeça, meditando, com o cigarro apagado. Todo mundo se mantinha bem quieto. Haviam acalmado Billy, e ele seguia na frente do grupo, com um crioulo de um lado e o branco da Sala de Choque do outro. Eu fui diminuindo os passos até que fiquei ao lado de McMurphy. Queria dizer-lhe que não se preocupasse, que nada podia ser feito, pois eu notava que ele tinha na cabeça alguma idéia que o incomodava, assim como um cachorro que se preocupa com um buraco sem saber o que há dentro dele, uma voz dizendo "cachorro, este buraco não é da sua conta – é grande e escuro demais, e há um rastro no lugar que lembra um urso, ou algo até pior". E uma outra voz, vindo, como um murmúrio penetrante, longínquo, do atavismo de sua raça, não uma voz esperta, nada de esperto ou dissimulado nela, dizendo Eu queria dizer a ele que não se preocupasse com aquilo, e realmente estava prestes a me expor, quando ele levantou a cabeça, empurrou o gorro para trás e correu para onde o crioulo menor ia andando, deu-lhe um tapinha no ombro e lhe perguntou: – Tive de me apressar para apanhá-los, e a corrida fez meu coração bater num tom alto e excitado. Mesmo na cantina eu ainda ouvia aquele som que meu coração havia batido, ecoando na minha cabeça, embora ele já tivesse voltado a seu ritmo normal. O som me fez lembrar de como eu costumava me sentir de pé, na noite fria de sexta-feira de outono, lá fora no campo de futebol, esperando que a bola fosse chutada e o jogo começasse. O ecoar ia aumentando, aumentando, até que eu achava que não conseguiria mais ficar parado. Então, o chute vinha, o eco desaparecia e o jogo continuava. Senti aquele mesmo ecoar de sexta-feira à noite, naquele momento, e senti a mesma impaciência selvagem batendo num ritmo acelerado. E eu também estava vendo tudo penetrante e aguçadamente, da maneira como eu via antes de um jogo e como vi, ao olhar pela janela do dormitório, há algum tempo: tudo estava bem delineado, claro e sólido. Já me havia esquecido que podia ser. Fileiras de pasta de dentes e cordões de sapatos, fileiras de óculos escuros e de canetas esferográficas com garantia de escrever a vida inteira na manteiga debaixo dágua, todas guardadas contra larápios por uma corporação de ursos de olhos grandes, sentados no alto, numa prateleira sobre o balcão. McMurphy foi andando para o balcão, ao lado, num passo ritmado, e enfiou os polegares nos bolsos. Pediu à vendedora dois pacotes de Marlboro. – Talvez três – disse, sorrindo para ela. – Estou planejando fumar um bocado. O ecoar não parou até a sessão daquela tarde. Eu estava ouvindo sem prestar muita atenção, enquanto eles trabalhavam em cima de Sefelt, para fazer com que ele enfrentasse as realidades dos seus problemas, de forma que pudesse se ajustar ("É o Dilantin! – grita ele afinal. – Ora, Sr. Sefelt, se quer ser ajudado, deve ser honesto – diz ela. – Mas Ele continuou quieto, observando, até que tivessem acabado com o problema de Sefelt; então se virou na cadeira na direção de Fredrickson que, tentando de alguma maneira vingar-se deles por causa do jeito como haviam massacrado o amigo, reclamou em voz alta durante alguns minutos sobre os cigarros serem mantidos na Sala das Enfermeiras. Fredrickson disse tudo o que tinha a dizer e finalmente corou, pediu desculpas, como sempre, e tornou a se sentar. McMurphy ainda não tomara qualquer atitude. Relaxei a mão que estivera presa ao braço da cadeira e cheguei a pensar que me havia enganado. Só restavam mais uns dois minutos de sessão. A Chefona dobrou seus papéis e os colocou na cesta, que em seguida tirou do colo para o chão. Deixou então seus olhos se dirigirem para McMurphy, só por um segundo, como se quisesse verificar se ele se mantinha acordado e ouvindo. Cruzou as mãos no colo, olhou para os dedos e suspirou, sacudindo a cabeça. – Rapazes, pensei muito no que vou dizer. Já falei a respeito disso com o médico e com o resto do pessoal e, por mais que o lamentássemos, todos nós chegamos à mesma conclusão de que deve haver alguma espécie de punição a ser aplicada ante o comportamento intolerável com relação aos trabalhos de limpeza, há três semanas. – Levantou a mão e olhou em volta. – Nós esperamos todo esse tempo para dizer alguma coisa, na esperança de que vocês mesmos tomassem a iniciativa de se desculparem pela maneira rebelde como agiram. Mas nenhum de vocês demonstrou o menor sinal de arrependimento. A mão dela subiu de novo para deter quaisquer interrupções que pudessem surgir – o movimento de um ledor de cartas de Tarot dentro de uma caixa numa arcada de vidro. – Por favor, compreendam. Nós não impomos a vocês certas regras e restrições sem antes pensar muito sobre seu valor terapêutico. Muitos de vocês estão aqui porque não conseguiram ajustar-se às regras da sociedade no mundo exterior, porque se recusaram a enfrentá-las, porque tentaram contorná-las ou evitá-las. Em alguma ocasião, talvez na infância, pode ter sido permitido a vocês saírem impunemente do descumprimento das regras da sociedade. Quando violaram uma regra sabiam disso. Queriam ser punidos, Com um movimento circular de cabeça, percorreu toda a sala. O pesar pela tarefa que tem de cumprir naquele momento está estampado em seu rosto. O silêncio seria completo, se não fosse aquele ecoar febril e delirante na minha cabeça. – É difícil impor disciplina neste ambiente – continuou. – Devem ser capazes de ver isso. Que é que podemos fazer com vocês? Não podem ser presos. Não podem ser postos a pão e água. Devem ver que o pessoal tem um problema; que é que Ruckly teve uma idéia do que eles podiam fazer, mas ela não prestou atenção àquilo. O rosto se moveu com um ruído como o de um relógio, até que as feições assumiram uma outra expressão. Finalmente ela respondeu à própria pergunta: – Temos de tirar-lhes um privilégio. E depois de um exame cuidadoso das circunstâncias desta rebelião, decidimos que haveria uma certa justiça em tirar o privilégio da Sala da Banheira que vocês vêm usando para jogar cartas durante o dia. Isto parece injusto? A cabeça dela não se moveu. Ela não olhou. Mas, um por um, todos os outros olharam para ele, sentado no seu canto. Até os velhos Crônicos, querendo saber por que todo mundo se havia virado para olhar na mesma direção, esticaram os pescoços encarquilhados como pássaros, e olharam para McMurphy – rostos voltados para ele, cheios de uma esperança visível e assustadora. Aquela única nota frágil que ressoava na minha cabeça era como pneus cantando no asfalto. Ele estava sentado bem ereto na cadeira, seu grande dedo vermelho coçava preguiçosamente as marcas dos pontos no nariz. Sorriu para todo mundo que olhava para ele, pegou o gorro pela aba e o levantou polidamente. Em seguida, tornou a olhar para a enfermeira. – Assim, se não há nenhuma discussão quanto a esta decisão, acho que a hora já está quase acabada… Ela tornou a fazer uma pausa, lançou um olhar para ele. Ele encolheu os ombros, suspirando alto, bateu as duas mãos nos joelhos e se levantou da cadeira. Espreguiçou-se, bocejou, tornou a coçar o nariz e começou a andar, atravessando a enfermaria, para onde ela estava sentada, junto da Sala das Enfermeiras. Levantava as calças com os polegares enquanto ia andando. Eu podia ver que era tarde demais para impedi-lo de fazer o que quer que fosse de idiota, que ele tinha na cabeça, e apenas fiquei observando, como todo mundo. Ele andava com passos largos, largos demais, e estava com os polegares enfiados nos bolsos de novo. As chapas de ferro nos saltos das botas arrancavam fagulhas do chão de ladrilho. Era de novo o madeireiro, o jogador gabola, o grande irlandês ruivo, valentão, o vaqueiro saído do aparelho de TV, andando pelo meio de uma rua para enfrentar um duelo. Os olhos da Chefona se esbugalharam à medida que ele se foi aproximando. Ela não esperava que ele fosse fazer alguma coisa. Aquela deveria ser a sua vitória definitiva sobre ele, deveria estabelecer o seu domínio de uma vez por todas. Mas lá vem ele e é grande como uma casa! Ela começou a contrair a boca e a procurar pelos seus crioulos, morta de medo, mas ele parou antes de chegar até ela. Parou diante da janela dela e disse, no seu linguajar mais lento e profundo, como ele achava que bem poderia tirar umas fumaças de um dos cigarros que havia comprado naquela manhã e aí – meteu a mão pelo vidro adentro. O vidro partiu-se como água, caindo em respingos, e a enfermeira apertou as mãos sobre os ouvidos. Ele apanhou um dos pacotes de cigarro, que trazia o seu nome marcado, e tirou um maço, pondo o resto de volta no lugar. Em seguida se virou para a Chefona, sentada ali como uma estátua de giz, e começou a limpar os cacos de vidro da touca e dos ombros dela com muita ternura. – Eu realmente Aquilo levou apenas alguns segundos. Ele, virando-se, deixou-a sentada ali, com o rosto completamente contraído, e tornou a atravessar a enfermaria em direção à sua cadeira. Acendeu um cigarro. O ressoar que havia na minha cabeça havia parado. |
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