"Margarita e o Mestre" - читать интересную книгу автора (Mikhail Bulgakov)A sétíma prova— Sim, eram cerca de dez horas da manhã, meu caro Ivan Nikolaevitch — disse o professor. O poeta passou a mão pela cara, como um homem que acabasse de voltar a si, e viu que caíra a noite no lago do Patriarca. A água do lago escurecera, e um pequeno barco deslizava sobre ela. Ouviu-se um chapinhar de remos e o riso de uma cidadã no barco. Havia agora pessoas nos bancos das álcas, mas apenas de três lados do quadrado, e não daquele em que se encontravam os nossos interlocutores. O céu sobre Moscovo como que empalidecera, e no alto via-se com toda a nitidez a Lua cheia, ainda não dourada, mas branca. Tornara-se muito mais fácil respirar, e as vozes sob as tílias eram agora mais suaves, como o são à noite. “Como foi que não me dei conta de que ele conseguiu inventar uma história daquele tamanho?… “, pensou Bezdomni com espanto. “Pois se já é de noite! Ou talvez ele não tenha contado, talvez eu tenha simplesmente adormecido e sonhado!” Mas era de crer que o professor contara a história, pois de outro modo haveria que admitir que Berlioz sonhara a mesma coisa, porque este disse, olhando com atenção o rosto do estrangeiro: — O seu relato é extremamente interessante, professor, embora não coincida em nada com os relatos evangélicos. — Perdão! — respondeu o professor, sorrindo condescendentemente. — O senhor deve saber melhor que ninguém que nada daquilo que está escrito nos Evangelhos aconteceu realmente. E se começamos a citar os Evangelhos como fonte histórica… — sorriu de novo, e Berlioz calou-se, porque fora aquilo mesmo que ele dissera a Bezdomni, quando caminhavam pela Bronnaia em direcção ao lago do Patriarca. — Assim é — observou Berlioz —, mas receio que ninguém possa confirmar que aquilo que o senhor nos contou tenha realmente acontecido. — Oh, não! Isso pode ser confirmado! — respondeu o professor com extrema convicção, falando num russo macarrónico, e acenando misteriosamente aos dois amigos para que se aproximassem. Estes inclinaram-se para ele, cada um de seu lado, e ele, já sem qualquer sotaque que, vá lá o Diabo saber porquê, ora desaparecia, ora aparecia, disse: — O caso é que… — aqui o professor lançou um olhar receoso em redor e começou a falar num murmúrio — … é que eu presenciei pessoalmente tudo isso. Estive no balcão de Pôncio Pilatos, no jardim, quando ele falou com Caifás, e na plataforma, mas em segredo, incógnito, digamos assim, e por isso lhes peço que não digam nem uma palavra a ninguém, o mais completo segredo!… Psiu! Fez-se silêncio, e Berlioz empalideceu. — O senhor.. há quanto tempo está em Moscovo? — perguntou com voz trémula. — Mas eu acabo de chegar neste instante — respondeu o professor, confuso. E só então os dois amigos se lembraram de lhe observar devidamente os olhos e descobriram que o esquerdo, verde, era completamente louco, e o direito estava vazio, negro e morto. “Ora aí está como tudo se explica!”, pensou Berlioz, confuso. “Vem para aqui um alemão maluco, ou que acaba de enlouquecer aqui mesmo no Patriarca. Vejam só que história!” Sim, com efeito, tudo se explicava: o estranhíssimo pequeno-almoço em casa do falecido filósofo Kant, a conversa idiota acerca do óleo de girassol de Annuchka, e as predições de que a cabeça lhe seria cortada, e tudo o resto. O professor era louco. Berlioz percebeu imediatamente o que havia a fazer. Recostando-se no banco, piscou o olho a Bezdomni, nas costas do professor, como quem diz: “Não o contraries”. Mas o poeta, desconcertado, não compreendeu esses sinais. — Sim, sim, sim — dizia Berlioz, agitado. — Tudo isso é possível, aliás! É mesmo muito possível. Pôncio Pilatos, o balcão, e tudo o resto… E o senhor velo sozinho, ou com a sua esposa? — Sozinho, sozinho, eu ando sempre sozinho — respondeu amargamente o professor. — E onde estão as suas coisas, professor? — perguntou Berlioz de modo insinuante. — No Metrópole? Onde se hospedou? — Eu? Em parte nenhuma — respondeu o alemão louco, passeando o seu olho verde, melancólico e feroz, pelo lago do Patriarca. — Como? E… onde vai viver? — No seu apartamento — respondeu subitamente e sem cerimónia o louco, e piscou o olho. — Eu… eu terei muito gosto — balbuciou Berlioz —, mas, realmente, em minha casa não será muito cómodo para si… E no Metrópole os quartos são excelentes, é um hotel de primeira classe… — E o Diabo também não existe? — perguntou o doente, subitamente alegre, a Ivan Nikolaevitch. — E o Diabo… — Não o contraries! — sussurrou Berlioz por entre dentes, inclinando-se por trás das costas do professor e fazendo trejeitos. — Não existe nenhum Diabo! — gritou Ivan Nikolaevitch, desnorteado com toda aquela frioleira, e dizendo aquilo que não devia. — Ora o castigo! Acabe com essas parvoíces. Neste momento o louco soltou uma tal gargalhada que um pardal voou da tília sob a qual eles estavam sentados. — Mas isto é extremamente interessante — disse o professor, sacudido pelo riso. — Não sei o que se passa aqui, o que quer que eu diga parece que nada existe! — Parou de súbito de rir e, o que é perfeitamente compreensível nas doenças mentais, depois do riso caiu no outro extremo. Irritou-se e gritou, áspero: — De modo que, por conseguinte, não existe mesmo? — Acalme-se, acalme-se, acalme-se, professor — murmurou Berlioz, receando excitar o doente. — Fique aí um pouco sentado com o camarada Bezdomni, que eu vou num instante ali à esquina fazer um telefonema, e depois acompanhamo-lo para onde quiser ir. O senhor não conhece a cidade… Deve-se reconhecer que o plano de Berlioz era acertado: havia que correr à cabina telefónica mais próxima e comunicar ao Serviço de Estrangeiros que, ao que parece, um consultor estrangeiro acabado de chegar se encontrava no lago do Patriarca em nítido estado de loucura. Era por isso necessário tomar medidas, pois, caso contrário, criar-se-ia uma situação absurda e desagradável. — Telefonar? Pois sim, vá lá então telefonar — concordou o doente com tristeza, e de súbito pediu ardentemente: — Mas imploro-lhe, na despedida, ao menos acredite que o Diabo existe! Já não lhe peço mais nada. Tenha em conta que existe uma sétima prova disso, e a mais segura! E essa prova vai-lhe ser agora apresentada. — Está bem, está bem — disse Berlioz com fingida amabilidade e, piscando o olho ao perturbado poeta, a quem não agradava nada a ideia de ficar de guarda ao alemão maluco, dirigiu-se à saída do lago do Patriarca na esquina da Bronnaia com a Travessa Ermolaev. E o professor imediatamente pareceu recompor-se e alegrar-se. — Mikhail Alexandrovitch! — gritou ele para Berlioz. Este estremeceu, voltou-se, mas tranquilizou-se com a ideia de que o professor conhecia o seu nome e patronímico através de algum jornal— E o professor gritou, pondo as mãos em concha: — Não quer que mande já um telegrama ao seu tio de Kiev? — E Berlioz estremeceu de novo. Como sabia aquele louco da existência do tio de Kiev? Isso por certo nunca foi mencionado em nenhum jornal. Eli, eli, terá Bezdomni razão? E se os documentos são falsos? Que sujeito mais estranho. Telefonar, telefonar! Imediatamente! Tudo se esclarecerá num instante! E, sem querer ouvir mais nada, Berlioz continuou. junto à saída para a Bronnaia, o mesmo cidadão que, horas antes, à luz do Sol, parecera surgir do intenso calor, levantou-se de um banco e foi ao encontro do editor. Agora, porém, não era já feito de ar, mas vulgar, de carne e osso, e, no crepúsculo, Berlioz discernia claramente que o bigode do homem parecia de penas de galinha, os olhos eram pequenos, irónicos e meio ébrios, e as calças de xadrez eram tão curtas que deixavam ver as meias brancas e sujas. Mikhail Alexandrovitch até recuou, mas tranquilizou-se à ideia de que aquilo era uma estúpida coincidência e de que naquele momento não tinha tempo para pensar nisso. — Procura o torniquete, cidadão? — perguntou o tipo das calças de xadrez numa voz rachada de tenor. — Por aqui, se faz favor! Siga em frente, e há-de chegar onde deseja. Por esta indicação bem podia dar-me qualquer coisa para beber um copo… para me recompor.. antigo chantre! — E o sujeito, fazendo trejeitos, tirou num gesto largo o boné de jóquei. Berlioz não deu ouvidos à pedinchice nem aos maneirismos do chantre, correu para o torniquete e deitou-lhe a mão. Virou-o e preparava-se já para atravessar os carris, quando recebeu no rosto um jorro de luz vermelha e branca: na caixa de vidro acendeu-se a inscrição: “Cuidado com o eléctrico!”. E no mesmo instante surgiu o eléctrico, virando pela nova linha da Ermolaev para a Bromaia. Depois de virar e de entrar na recta, o eléctrico iluminou-se subitamente no interior, uivou e acelerou. O cuidadoso Berlioz, embora estivesse em lugar seguro, decidiu voltar para trás da barreira. Colocou novamente a mão no torniquete e deu um passo atrás. E nesse momento a mão escorregou e falhou, o pé deslizou irresistivelmente, como que no gelo, pela calçada em declive até aos carris, o outro pé ergueu-se no ar e Berlioz foi atirado para a via. Tentando agarrar-se a qualquer coisa, caiu de costas. Bateu ligeiramente com a nuca na calçada, e ainda teve tempo de ver, lá no alto, sem compreender já se à esquerda ou à direita, a Lua dourada. Conseguiu virar-se de lado, ao mesmo tempo que, num movimento frenético, erguia os joelhos sobre o ventre, e, ao virar-se, vislumbrou o rosto completamente branco de horror e a braçadeira escarlate da condutora do eléctrico que avançava sobre ele com uma força irresistível. Berlioz não gritou, mas à sua volta toda a rua se encheu dos gritos desesperados de mulheres. A condutora puxou bruscamente o travão eléctrico, o carro afocinhou no chão, depois saltou instantaneamente, e os vidros das janelas voaram com estrondo em estilhaços. Nesse momento, no cérebro de Berlioz, alguém gritou desesperadamente: “Será possível?… “. Mais uma vez, a última vez, a Lua brilhou, mas desfazendo-se já em estilhaços, e depois tudo escureceu. O carro eléctrico apanhou Berlioz, e um objecto escuro foi projectado pela rampa empedrada, para junto da grade da alameda do lago do Patriarca. Rolando pelo declive, foi saltitando pelo empedrado da Bromaia. Era a cabeça cortada de Berlioz. |
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