"Margarita e o Mestre" - читать интересную книгу автора (Mikhail Bulgakov)PerseguiçãoCessaram os gritos histéricos das mulheres, calaram-se os apitos da milícia, duas ambulâncias levaram uma delas o corpo decapitado e a cabeça cortada para a morgue, a outra a bela condutora ferida por estilhaços de vidro. Varredores de avental branco limpavam os estilhaços dos vidros e cobriam de areia as poças de sangue, e Ivan Nikolaevitch, tal como havia caído no banco, sem alcançar o torniquete, assim ficou. Várias vezes tentou levantar-se, mas as pernas não lhe obedeciam. Bezdomni foi tomado por uma espécie de paralisia. O poeta deitara a correr para o torniquete logo que ouviu o primeiro brado, e vira a cabeça ressaltar no pavimento. Isso enlouqueceu-o a tal ponto que ele, caindo sobre o banco, mordeu a mão até fazer sangue. Esqueceu-se, naturalmente e por completo, do alemão louco e tentou compreender apenas uma coisa: como era possível que ele tivesse acabado de falar com Berlioz e minutos depois… a cabeça… Gente alvoroçada passava a correr pela alameda, junto ao poeta, soltando exclamações, mas Ivan Nikolaevitch não percebia o que diziam. De súbito, duas mulheres chocaram junto dele, e uma delas, de nariz afilado e cabelo despenteado, gritou para a outra mesmo dentro dos ouvidos do poeta: — Annuchka, a nossa Annuchka! Da Sadovaia! Isto é obra dela! Foi comprar óleo de girassol à mercearia e partiu a garrafa no torniquete. Sujou a saia toda… E o que ela praguejou! E ele, coitado, escorregou e foi cair mesmo nos carris… De tudo aquilo que a mulher gritou, o cérebro perturbado de Ivan Nikolaevitch só captou uma palavra: “Annuchka… “. — Annuchka… Annuchka?… — murmurou o poeta, olhando em redor inquieto. — Esperem, esperem… À palavra Annuchka ligaram-se as palavras óleo de girassol e depois, por qualquer razão, Pôncio Pilatos. O poeta rejeitou Pilatos e pôs-se a ligar os elos de uma cadeia, começando pela palavra Annuchka. E essa cadeia estabeleceu-se muito depressa e conduziu imediatamente ao professor louco. “Perdão! Pois se ele disse que a reunião não se realizaria porque Annuchka tinha derramado o óleo. E, vejam lá, a reunião não se realizará! E isso não é tudo: ele disse claramente que uma mulher havia de cortar a cabeça a Berlioz! Sim, sim, sim! E o guarda-freio era uma mulher! Que vem a ser isto? Hem?” Não restava sombra de dúvida que o misterioso consultor conhecia exactamente de antemão todo o quadro da morte horrível de Berlioz. E dois pensamentos atravessaram a mente do poeta. O primeiro: “Ele não é nada louco! Tudo isto é um disparate!”. E o segundo: “Não terá ele planeado tudo isto?!”. “Mas de que maneira, não me dirão? Ali, não! Isso vamos descobri-lo!” Fazendo um grande esforço sobre si mesmo, Ivan Nikolaevitch ergueu-se do banco e voltou ao local onde estivera a conversar com o professor. E verificou que este, felizmente, ainda não se tinha ido embora. Na Bromaia as luzes já estavam acesas, e sobre o lago do Patriarca brilhava a Lua dourada, e à luz do luar sempre enganador, pareceu a Ivan Nikolaevítch que o professor sobraçava, não uma bengala, mas uma espada. O intrigante chantre aposentado estava sentado no mesmo lugar onde pouco antes estivera sentado o próprio Ivan Nikolaevitch. O chantre tinha agora encavalitadas no nariz umas lunetas obviamente desnecessárias, em que faltava uma das lentes e a outra estava rachada. Isto tornava o cidadão das calças de xadrez ainda mais repelente do que antes, quando indicara a Berlioz o caminho para os carris. Com o coração gelado, Ivan aproximou-se do professor e, olhando-o no rosto, verificou que não havia nele nem nunca houvera quaisquer sinais de loucura. — Confesse, quem é o senhor? — perguntou Ivan Nikolaevitch. O estrangeiro franziu o cenho, olhou o poeta como se o visse pela primeira vez, e respondeu com hostilidade: — Não perceber.. não falar russo… — Eles não percebem! — intrometeu-se o chantre lá do seu banco, sem que ninguém lhe tivesse pedido para explicar as palavras do estrangeiro. — Deixe-se de simulações! — disse Ivan. em tom ameaçador, sentindo um calafrio no estômago. — O senhor ainda há pouco falava muito bem russo. O senhor não é alemão nem professor! É um assassino e um espião! Os seus documentos! — gritou Ivan, furioso. O misterioso professor torceu enojado a sua já torcida boca e encolheu os ombros. — Cidadão! — insinuou-se de novo o detestável chantre. — Porque incomoda o turista estrangeiro? Hão-de pedir-lhe contas por isso! E o professor suspeito fez uma expressão desdenhosa, virou costas e afastou-se de Ivan. Este sentiu-se embaraçado. Soluçando, dirigiu-se ao chantre: — Eh, cidadão, ajude-me a agarrar o criminoso! Tem esse dever! O chantre animou-se, saltou e berrou: — Qual criminoso? Onde está ele? Um criminoso estrangeiro? Os seus olhinhos cintilavam alegremente. — Ajuda? Se ele é um criminoso, a primeira coisa a fazer é gritar: “ó da guarda!”. Se não ele foge. Vamos lá, ao mesmo tempo! Agora! — E o chantre abriu a goela. Confuso, Ivan obedeceu ao farsante do chantre e gritou: “ó da guarda!”. Mas o outro enganou-o e não gritou. O grito rouco e solitário de Ivan não teve quaisquer resultados positivos. Duas jovens que passavam desviaram-se, e ele ouviu a palavra bêbedo. — Ah, estás então feito com ele?! — exclamou Ivan, irado. Estás a troçar de mim? Sai da minha frente! Ivan precipitou-se para a direita, e o chantre foi também para a direita. Ivan foi para a esquerda, e aquele miserável foi também para a esquerda. — Pões-te à minha frente de propósito? — gritou Ivan, enfurecido. — Hei-de entregar-te à milícia também a ti! Tentou agarrar o patife pela manga, mas falhou e não agarrou absolutamente nada. Era como se o chantre se tivesse sumido pelo chão abaixo. Ivan soltou uma exclamação de raiva, olhou e viu ao longe o detestável desconhecido, que saía já em direcção à Travessa do Patriarca, e não ia sozinho. O mais que suspeito chantre conseguira juntar-se-lhe. Mas isso não era tudo: como terceiro elemento naquela companhia havia um gato, surgido sabe-se lá de onde, um gato grande como um porco, preto como carvão ou como um corvo, e com uns terríveis bigodes de cavaleiro. O trio avançou pela Travessa do Patriarca, caminhando o gato nas patas traseiras. Ivan apressou-se a seguir os malfeitores, mas logo compreendeu que seria muito difícil alcançá-los. O trio percorreu a travessa num instante e chegou à Rua Spiridonovka. Por mais que Ivan. estugasse o passo, a distância entre ele e os perseguidos não diminuía. E antes que o poeta desse por isso, depois da sossegada Spiridonovka, encontrou-se junto à porta Nikitski, onde a sua situação piorou. Ali a multidão era enorme, Ivan foi de encontro a um transeunte, foi insultado. Quanto à súcia de malfeitores, decidiu ainda por cima recorrer ao processo predilecto dos bandidos: dispersou. O chantre saltou agilmente para um autocarro em andamento, que seguia para a Praça Arbat. Tendo perdido um dos perseguidos, Ivan concentrou a sua atenção no gato e viu aquele estranho animal aproximar-se do estribo do eléctrico A, que estava na paragem, empurrar insolentemente uma mulher, que desatou aos gritos, agarrar-se ao varão e até tentar meter na mão da condutora, através da janela aberta por causa do calor sufocante, uma moeda de dez copeques. O comportamento do gato deixou Ivan tão estupefacto, que ele ficou parado, imóvel junto a uma mercearia, à esquina. E mais fortemente ainda o surpreendeu o comportamento da condutora. Esta mal viu o gato subir para o eléctrico, gritou, tão irada que até tremia: — Gatos não! Não é permitido trazer gatos! Fora! Sai, ou chamo a polícia! Nem a condutora, nem os passageiros pareciam surpreendidos com o essencial: não o facto de o gato subir para o eléctrico, o que seria apenas meia desgraça, mas o facto de ele querer pagar o bilhete. O gato mostrou ser um animal não apenas solvente, mas também disciplinado. Logo ao primeiro grito da condutora, ele interrompeu o seu avanço, desceu do estribo e sentou-se na paragem, alisando os bigodes com a moeda. Mas assim que a condutora puxou o cordão e o eléctrico se pôs em andamento, o gato procedeu como qualquer um que é expulso do eléctrico, mas que de qualquer modo precisa de chegar ao seu destino. Deixando passar o eléctrico e os dois atrelados, o gato saltou para a parte traseira do último atrelado, agarrou-se com a pata a um tubo de borracha que passava para o exterior, e lá foi, poupando assim os dez copeques. Preocupado com o miserável gato, Ivan por pouco não perdeu o mais importante dos três: o professor. Mas, por sorte, este ainda não conseguira escapar-se. Ivan avistou o boné cinzento no meio da multidão, no princípio da Bolchaia Nikitskaia, ou da Rua Herzen. Chegou lá num abrir e fechar de olhos, mas sem êxito. O poeta acelerou o passo, começou mesmo a correr a trote, empurrando os transeuntes, sem conseguir aproximar-se do professor nem um centímetro. Transtornado como estava, Ivan surpreendia-se, no entanto, pela velocidade fantástica com que decorria a perseguição. Não tinham passado vinte segundos quando, depois da Porta Nikitski, Ivan Nikolaevitch era já ofuscado pelas luzes da Praça Arbat. Mais alguns segundos e aí estava uma qualquer ruela escura, com os passeios cheios de covas, onde Ivan Nicolaevitch caiu e se magoou num joelho. De novo uma artéria bem iluminada, a Rua Kropotkine, depois uma ruela, depois a Rua Ostojenka e outra ruela, triste, imunda e mal iluminada. E foi ali que Ivan Nikolaevitch perdeu definitivamente aquele que tanto precisava de agarrar. O professor tinha desaparecido. Ivan Nicolaevitch ficou confuso, mas não por muito tempo, porque de súbito soube que o professor devia estar necessariamente no prédio número 13, e de certeza no apartamento número 47. Irrompendo pela entrada, Ivan Nikolaevitch correu ao primeiro andar, encontrou imediatamente o apartamento e tocou à campainha, impaciente. Não teve que esperar muito: uma rapariguinha dos seus cinco anos abriu a porta e, sem perguntar nada ao visitante, desapareceu de imediato. Na sala de entrada, enorme, pessimamente conservada, mal iluminada por uma minúscula lâmpada de carbono, sob o tecto alto, negro de sujidade, havia uma bicicleta sem pneus pendurada na parede, no chão um enorme baú chapeado de ferro, e numa prateleira por cima do cabide havia um gorro de Inverno, com as compridas abas para as orelhas pendendo. Por trás de uma das portas uma voz forte de homem gritava, irritada, num aparelho de rádio, qualquer coisa em verso. Ivan Nikolaevitch não se embaraçou nada com o ambiente desconhecido e encaminhou-se directamente para o corredor, pensando: “Oh, claro, escondeu-se na casa de banho”. O corredor estava escuro. Depois de chocar contra as paredes, Ivan lobrigou uma ténue réstia de luz por debaixo de uma porta, procurou o puxador às apalpadelas e fê-lo girar com suavidade. A lingueta saltou e Ivan. encontrou-se precisamente na casa de banho, e pensou que tinha tido sorte. Essa sorte não foi porém a que devia ser! Ivan sentiu um bafo húmido e quente e, à luz das brasas que ardiam na caldeira, viu grandes tinas penduradas na parede, e uma banheira cheia de horríveis manchas negras devido ao esmalte estalado. E nessa banheira estava uma cidadã nua, de pé, toda ensaboada e com uma esponja na mão. Olhou o intruso com olhos míopes e, tomando-o ao que parece por outra pessoa, disse em voz baixa, alegremente: — Kiriuchka![4]Acabe com essa brincadeira! Que é isso, você está doido? Fiodor Ivanovitch está a chegar. Sala daqui imediatamente! — E agitou a esponja em direcção a Ivan. A confusão era óbvia e o culpado era, é evidente, Ivan Nikolaevitch. Mas não queria admiti-lo e, exclamando em tom de censura: “Ah, depravada!”, achou-se de imediato na cozinha. Não estava ali ninguém. Sobre o fogão, na semi-obscuridade, havia cerca de uma dezena de fogareiros apagados. Um raio de luar, infiltrando-se através da janela poeirenta, que não era lavada há anos, iluminava fracamente o canto onde estava pendurado, entre pó e teias de aranha, um ícone esquecido, de cujo caixilho pendiam dois cotos de velas nupciais. Por baixo do grande ícone estava um outro mais pequeno, de papel, pregado com alfinetes. Ninguém sabe que ideia se apoderou então de Ivan, mas antes de sair a correr pelas traseiras, pegou numa das velas e no ícone de papel. Com esses objectos abandonou o apartamento desconhecido, murmurando qualquer coisa, perturbado com a ideia daquilo por que acabava de passar na casa de banho, tentando involuntariamente adivinhar quem seria aquele descarado Kiriuchka e se não seria dele aquele nauseabundo gorro de orelhas. Na ruela triste e deserta o poeta olhou em volta, procurando o fugitivo, mas este não estava visível. Então, Ivan disse firmemente para si mesmo: “Pois claro, ele está no rio Moskva! A caminho!”. Seria talvez caso para perguntar a Ivan Nikolaevitch por que razão ele supunha que o professor estava precisamente no rio Moskva e não em qualquer outro lugar. O pior é que não havia ali ninguém que lhe perguntasse. A imunda ruela estava completamente deserta. Daí a pouco Ivan Nikolaevitch podia ser visto nos degraus de granito do anfiteatro junto do rio Moskva. Tirando as roupas, confiou-as a um simpático barbudo que fumava um cigarro enrolado à mão, sentado ao lado de uma blusa tolstoiana branca e esfarrapada, e de uns sapatos cambados e sem atacadores. Agitando os braços para se refrescar, Ivan atirou-se à água, num salto de anjo. A água estava tão fria que lhe cortou a respiração e ocorreu-lhe mesmo a ideia de que não conseguiria voltar à superfície. Conseguiu, no entanto, emergir e, resfolegando e fungando, com os olhos arregalados de pavor, começou a nadar na água negra que cheirava a petróleo, entre os ziguezagues quebrados das luzes dos candeeiros da margem. Quando Ivan, encharcado, subiu aos saltinhos os degraus até ao lugar onde deixara as roupas à guarda do barbudo, verificou que não só aquelas, mas também este, ou seja, o próprio barbudo, tinham desaparecido. No mesmo sítio onde estivera o monte da sua roupa ficaram umas ceroulas às riscas, a blusa tolstoiana rota, a vela, o ícone e uma caixa de fósforos. Ameaçando com o punho alguém ao longe, numa raiva impotente, Ivan vestiu-se com aquilo que restava. Neste momento duas preocupações começaram a atormentá-lo: a primeira era que lhe desaparecera o cartão da MASSOLIT, do qual nunca se separava, e a segunda era se conseguiria atravessar Moscovo, naquele traje sem ser incomodado. Afinal, estava em ceroulas… É verdade que ninguém tinha nada com isso, mas mesmo assim, sempre havia a possibilidade de alguma chacota ou embaraço. Ivan arrancou os botões das ceroulas junto aos tornozelos, esperando que talvez assim passassem por calças de Verão, pegou no ícone, na vela e na caixa de fósforos e partiu, dizendo para si mesmo: “Para a Griboedov! É lá que ele está, sem dúvida nenhuma”. A cidade vivia já a sua vida nocturna. No meio da poeira, num tilintar de correntes, voavam os camiões, em cuj as caixas, sobre sacos, havia homens deitados de barriga para o ar. Todas as janelas estavam abertas. Em cada uma dessas janelas havia um candeeiro com um quebra-luz cor de laranja, e de todas as janelas, de todas as portas, de todos os vãos, dos telhados e das águas-furtadas, das caves e dos pátios vinha o rugido rouco da polonesa da ópera Eugénio Onegin. Os receios de Ivan Nikolaevitch confirmaram-se inteiramente: os transeuntes olhavam-no e viravam-se. Por esse motivo, decidiu abandonar as ruas principais e seguir pelas ruelas, onde as pessoas não são tão importunas, onde havia menos possibilidades de que molestassem um homem descalço, mortificando-o com perguntas acerca das ceroulas, que teimavam em não parecerem calças. E assim fez, embrenhando-se no labirinto misterioso das ruelas de Arbat. Começou a deslizar ao longo das paredes, espreitando ansioso, olhando em redor a todo o instante, escondendo-se de vez em quando nos portais e evitando os cruzamentos iluminados, as entradas luxuosas dos palacetes das embaixadas. E em todo este difícil trajecto sentiu-se indescritivelmente atormentado pela omnipresente orquestra, que acompanhava um baixo forte cantando o seu amor por Tatiana. |
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